Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A empatia como limite

“Sátiras a temas religiosos devem ter limites?” “SIM.”

Em nossa cultura, o debate sobre a liberdade para satirizar envolve um paradoxo. A história mostrou que legislações que censuram ou reduzam a liberdade de expressão acabam indo contra a autonomia das pessoas e a democracia.

A convivência em sociedades plurais, que buscam a igualdade e a democracia, mostrou a necessidade de normas que garantam o respeito ao diferente, procurando eliminar ou reduzir discursos que exacerbem o preconceito e a exclusão.

O problema se agrava com a pressão da disputa por audiência e sucesso, que leva articulistas, artistas e chargistas a chocar sempre mais para ganhar mais público.

Nossa posição nesse jogo, depende frequentemente de estarmos entre os que riem da sátira ou os que são objeto do riso alheio. No caso da sátira religiosa, outros fatores se apresentam.

O poder hegemônico e a moral tradicional costumam se valer das religiões mais importantes para sua autolegitimação. Muitos religiosos dirão que essas são alianças espúrias, que adulteram e instrumentalizam a mensagem original. Mas elas realmente existem.

Soa estranho que religiões possam necessitar das mesmas atenções que minorias. Aliás, parece que o discurso religioso é quase sempre uma ameaça às minorias – apesar de ser muitas vezes uma defesa para algumas delas.

Assim, um chargista pode se considerar um defensor do livre pensamento quer esteja ridicularizando poderosos e perigosos detentores do poder econômico e político, quer esteja ridicularizando as crenças de pessoas simples e muito mais frágeis do que ele na hierarquia social.

Além disso, não se percebe que ironizar as convicções de alguém pode ser tão virulento quanto ironizar seu tipo físico ou suas opções sexuais. Talvez porque pensemos em nossas ideias como mercadorias descartáveis, e não como convicções que mostram a dignidade de uma vida.

Força do riso

Existem leis que, em teoria, defendem a dignidade dos cidadãos e das organizações, protegendo-os de difamações, injúrias e outros ataques. Não seria com restrições legais à sátira que resolveríamos os problemas, quer das religiões, quer de outros injustamente satirizados.

Mas é desejável e factível que haja um estabelecimento de limites razoavelmente consensuais sobre o que e como satirizar.

“Razoavelmente” porque, como diz o ditado, toda uniformidade é burra – além de irrealizável – e esse consenso deve ser um ideal de convivência a ser construído, e não uma distopia obscurantista.

Esses limites não podem nascer de regras negociadas entre poderosos. Também não podem ser estabelecidas fora das próprias comunidades de autores nem se tornarem um pacto ditado pelo poder ou uma autocensura determinada pelo medo.

Para serem eficientes e preservarem a liberdade de todos, esses limites devem nascer de uma verdadeira empatia entre diferentes. Devem nascer também da capacidade de nos deixarmos tocar pelo mistério do outro, entrever e compartilhar dentro do possível as dores, anseios, frustações, valores e realizações daquele que é diferente de nós.

É preciso compreender e nos deixarmos fascinar pelo fato de que somos feitos do mesmo barro, ainda que nossas formas sejam tão diversas. O respeito que nasce da tolerância deve ser superado pela compreensão que nasce da empatia.

A empatia como limite não nos privará das sátiras ao poder, da força do riso para desvelar nossas incongruências e hipocrisias. Mas nos ajudará a conviver melhor, a respeitar o fraco e a descobrir caminhos de diálogo.

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Francisco Borba Ribeiro Neto é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP