Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Edição histórica provoca reações no mundo muçulmano

O primeiro exemplar do jornal satírico Charlie Hebdo publicado após o atentado à sua redação, que resultou em 12 mortos, sai nesta manhã cercado de polêmica em comunidades muçulmanas. A capa, em que o profeta Maomé – cuja representação é proibida pelo Islã – aparece às lágrimas, segurando um cartaz “Eu sou Charlie” sob o título “Tudo está perdoado”, provocou protestos e mesmo a ira de muçulmanos, na França e no mundo.

O presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM), Dalil Boubakeur, também reitor da Grande Mesquita de Paris, pregou moderação. “Apelo à comunidade muçulmana da França a manter a calma, evitando reações emotivas ou despropositadas, incompatíveis com sua dignidade e reserva, ao mesmo tempo respeitando a liberdade de opinião”, informou em comunicado.

Nem todos no seio da instituição comungam do espírito pacificador. Abdallah Zekri, dirigente do Observatório Nacional contra a Islamofobia do CFCM, afirmou ter recebido ontem “muitas reações de muçulmanos indignados”. “E eu os compreendo”, disse ao jornal Le Figaro. “Isso vai colocar lenha na fogueira. Maomé, sempre Maomé… Ele morreu há 15 séculos!”

Asmar Lasfar, presidente da União das Organizações Islâmicas da França (Uoif), próxima da Irmandade Muçulmana, tinha dito que recorreria à Justiça no caso de novas representações do profeta: “Nossa divergência com Charlie Hebdo dizia respeito ao divino e ao sagrado, que não devem ser caricaturados. Mas o meio que utilizamos foi o da via jurídica. Os tribunais não nos deram razão. Aceitamos e nos calamos. Se recomeçar, faremos a mesma coisa retomando a via jurídica.”

Em 2006, a Uoif e a Grande Mesquita de Paris processaram o jornal por “injúria pública contra um grupo de pessoas por causa da religião”, mas a Justiça francesa considerou que as caricaturas contestadas não visavam ao Islã, mas aos integristas.

“Nova onda de ódio”

Maomé não é alvo exclusivo das primeiras páginas do Charlie Hebdo e está longe de ser majoritário. Nas últimas capas do semanário, 35 foram dedicadas à política interna francesa, dez à extrema-direita da Frente Nacional (FN), duas à religião católica, uma crítica a Israel e apenas uma para Maomé.

Ainda emocionada pela tragédia, a equipe do jornal procurou manter o bom humor em meio às polêmicas e à tensão. Foi às 21h08m de segunda-feira, aos gritos de “Allahu Akbar!” (“Deus é grande”, em árabe), que a redação celebrou o achado do desenho de capa do exemplar histórico lançado nesta quarta-feira. “O desenho de Maomé era uma ideia que tinha na cabeça, mas não suficiente para capa. Ele chorava. Então, escrevi no alto: ‘Tudo está perdoado’. E chorei. Havíamos achado a capa, que se parecia conosco, e não com os símbolos que nos são impostos nestes últimos dias”, contou Luz, autor da ilustração, em coletiva no oitavo andar da sede do jornal Libération, onde a equipe foi acolhida.

O desenhista definiu os terroristas como “idiotas sem senso de humor”, e acrescentou: “Não era a capa que o mundo queria que fizéssemos. Nem a capa que os terroristas queriam. É Maomé que chora. Eu peço desculpas, desenhamos de novo Maomé. Mas é a capa que nós queríamos fazer. Não existe ‘liberdade de expressão, mas…’, apenas ‘liberdade de expressão, sim’.”

Do Egito, vieram as maiores reações do Islã. A Dar al-Ifta, instituição que representa os islâmicos no país, afirmou, em nota, que “é uma provocação injustificada ao sentimento de 1,5 bilhão de muçulmanos em todo o mundo, que amam e respeitam o profeta”. E conclui que a capa “vai dar oportunidade aos extremistas de ambos os lados para trocar atos violentos que apenas os inocentes vão pagar.” A Dar al-Ifta ainda pediu que o governo francês “anuncie sua rejeição a esse ato racista que busca incitar conflitos religiosos e sectarismo, e aprofundar o ódio”. Shawqi Allam, principal clérigo muçulmano do Egito e um dos mais influentes no mundo árabe, afirmou que “esta edição causará uma nova onda de ódio na sociedade francesa e ocidental e o que o jornal está fazendo não serve para um diálogo entre as civilizações.” Ameaças de morte aos sobreviventes do Charlie Hebdo circulam na internet.

Em Londres, o clérigo radical islamita Anjem Choudary chamou de “ato de guerra” a atual edição do Charlie Hebdo. Ele disse que “ridicularizar” Maomé é “atacar a honra do profeta”. E concluiu dizendo que, sob a sharia (a lei islâmica), a charge acarretaria punição com pena de morte. Já o vice-premier britânico, Nick Clegg, defendeu a capa por ser parte do “combate ideológico para manter uma sociedade livre”. Os EUA também mostraram apoio, modificando posição expressa anteriormente. Em 2006, o governo Bush classificou de “ofensivas” as charges de Maomé publicadas por um jornal dinamarquês e, em 2012, a Casa Branca, já com Barack Obama, afirmou que os cartuns do Charlie Hebdo poderiam ser “inflamatórios”. “Opiniões pessoais à parte, e sei que esse tema altera os ânimos, damos nosso apoio absoluto ao direito de o Charlie Hebdo publicar coisas como essas”, argumentou a porta-voz do Departamento de Estado Marie Harf.

Excepcionalmente, a edição será vendida nas próximas duas semanas, e só então um novo número será produzido. O Charlie Hebdo histórico terá três milhões de exemplares – um recorde na imprensa de informação francesa. Será impresso também na Itália e na Turquia e traduzido em seis idiomas, entre eles o árabe. A distribuição da tiragem histórica – em 27 mil pontos de venda franceses – terá vigilância especial da polícia e a renda obtida será destinada às famílias das vítimas.

A edição contém criações inéditas de Charb, Cabu, Wolinski e Tignous, além de artigos e crônicas de Bernard Maris e Elsa Cayat, todos mortos no massacre do dia 7. Na contracapa, um desenho de Luz mostra terroristas islamistas chegando ao paraíso e um deles perguntando onde estão as 70 virgens prometidas, segundo diz o Islã. A resposta recebida: “Com a equipe de Charlie, idiota”.

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Edição pós-atentado faz ‘Charlie Hebdo’ renascer

[Reproduzido do Globo.com, 14/1/2015]

Como era esperado, a fornada inicial da “edição histórica” do jornal satírico Charlie Hebdo, de número 1.178 – a primeira desde os ataques do dia 7 que vitimaram os principais nomes de sua redação – se esgotou em poucas horas nos 27 mil pontos de venda previstos na França. No primeiro dia de vendas, foram distribuídos 700 mil exemplares de um total de três milhões – dois milhões a mais do previsto inicialmente. Devido à forte demanda, a tiragem foi aumentada uma segunda vez para cinco milhões de exemplares, recorde na imprensa francesa. As bancas, tomadas de assalto pelos clientes, serão abastecidas diariamente nas próximas duas semanas, quando será publicada uma nova edição do semanário. Alguns jornaleiros estavam temerosos: “Sei de colegas que não quiseram vender o jornal, por medo de eventuais represálias”, revelou Lucien, dono de uma banca em Saint Germain des Près.

A edição, com a já famosa capa do profeta Maomé chorando e segurando um cartaz no qual se lê “Eu sou Charlie” – a frase símbolo de protestos mundiais contra o atentado terrorista – sob o título “Tudo está perdoado”, traz também uma freira se masturbando e o papa vestido como um chefe da máfia italiana. Um quadrinho mostra dois terroristas chegando ao céu, com asas de anjo, perguntando: “Onde estão as 70 virgens?” De uma nuvem ao lado vem a resposta: “Com a equipe do Charlie Hebdo, idiotas!”

Na Turquia, o jornal de oposição Cumhuriyet publicou quatro páginas com artigos e caricaturas mais importantes, sem a charge de Maomé. O governo baniu páginas na internet que reproduzam a capa. O vice-premier Yalcin Yakdogan afirmou que “aqueles que publicam imagens do nosso profeta são os que descartam o sagrado. Isto é sedição aberta e provocação”.

Em comunicado, a rádio al-Bayan, do Estado Islâmico, destacou que o Charlie Hebdo novamente publicou cartuns insultando o profeta, num “ato extremamente estúpido”. Do Irã, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Marzieh Afjam, disse que a publicação de outra charge de Maomé “provoca sentimentos de muçulmanos em todo o mundo”.

À beira da falência antes do atentado, o jornal, por causa da tragédia, acabou garantindo sua sobrevivência. “Na última vez em que almocei com Charb (diretor do jornal morto no ataque), ele estava desamparado. Bateu em todas as portas possíveis, até a de François Hollande, para dizer: ‘Nós vamos morrer de boca aberta, somos desprezados, odiados.’ E nenhuma porta se abriu”, contou Zineb El Rhazoui, sobrevivente da equipe.

Desde então, o semanário tem recebido milhões de euros em doações e auxílios. Para o primeiro milhão de exemplares da atual edição, vendido cada um a 3 euros [R$ 9,00], não foram cobradas a distribuição e impressão, garantindo o preço cheio de capa ao jornal. Calcula-se em torno de 8 milhões de euros (R$ 24 milhões] o valor arrecadado com as vendas, parte destinada às famílias das vítimas.

O governo fez uma doação de 1 milhão de euros [R$ 3 milhões] ao semanário. Segundo estimativas, cerca de 1,4 milhão de euros (R$ 4,2 milhões] já foram recebidos por meio de doações de particulares, na França e pelo mundo. O Google colaborou com 250 mil euros [R$ 750 mil], e o eBay reverterá uma comissão na venda de antigos números do jornal via seu site. A Air France comprou 20 mil exemplares para os passageiros. Os correios ofereceram um ano de postagem gratuita para assinantes. Sites propõem doações e vendem camisas e produtos “Eu sou Charlie”, com renda para o jornal.

Na última semana, Charlie Hebdo teve multiplicado o número de seus assinantes: de menos de sete mil para 120 mil. Segundo Patrick Pelloux, também sobrevivente, num jantar com Charb, na véspera do ataque, comemoravam terem somado 50 novos assinantes para o jornal (F.E.).

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Fernando Eichenberg é correspondente do Globo em Paris