Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Fundamentalismo financeiro e chacina de cartunistas

O massacre de Paris lançou luz sobre diversos aspectos da sociedade e do jornalismo, mas, em meio ao debate que tomou conta das páginas de notícias, um deles merece atenção. Há alguns meses, o nosso Jaguar sentenciava, em entrevista ao Globo (reproduzida neste Observatório), que “hoje em dia, o humor não serve pra nada” (ver aqui). Falava do atual contexto em que o jornalismo comercial-tecnológico se impõe de tal forma que anula outras manifestações jornalísticas, algumas históricas e indispensáveis, como o cartum. Nos dias que se seguiram à chacina, diversos veículos em plataformas diferentes repercutiram o fato com os cartunistas daqui. Lá estavam o mesmo Jaguar, além de Ziraldo, Chico, Ique, Claudius, enfim, alguns dos grandes nomes do cartum nacional, sem dúvida relevantes. O curioso é perceber que ainda são os mesmos que figuram nesse posto há mais de trinta anos. É claro que isso se dá pela qualidade de seu trabalho, mas o lado B da história é a falta de renovação no campo do cartum no país.

Mesmo contando com um dos mais importantes salões de humor do mundo – o Salão de Piracicaba –, os jornais brasileiros não têm aproveitado os jovens postulantes que por lá se expõem. A razão é que faltam vagas para cartunistas, sobretudo na grande imprensa. Os ilustradores vêm assistindo à redução de seu espaço há alguns anos e até os infografistas já começam a sentir esse encolhimento também. Diante da crise, mesmo os jornais europeus e norte-americanos que costumavam contar com uma carteira de colaboradores, andam cortando as cabeças por lá. No Brasil, esse movimento teve início ainda nos anos 1990, quando as duplas ou até trios de cartunistas que se revezavam nas páginas de opinião foram substituídas por solos. O cartum era a porta de entrada dos departamentos de arte dos jornais e também o maior ponto de atração para os pretensos jornalistas ilustradores. Com a redução de espaço, esse encantamento diminuiu.

É possível que o massacre de Paris faça ressurgir o cartum pela redescoberta de sua importância jornalística; porém, para que isso se torne realidade, é preciso se encarar dois desafios. Um deles é a questão tecnológica, que impõe que os artistas se reinventem para as novas plataformas jornalísticas. Ou seja, é preciso pensar o cartum para além do papel, o que pode torna-lo financeiramente viável, independentemente de estar ou não atrelado a um veículo já estabelecido no mercado. O segundo desafio está ligado ao fundamentalismo financeiro: diante da crise econômica, as redações se veem intimidadas pela ameaça de corte na captação de verbas publicitárias que um cartum possa provocar, problema enfrentado pelos poucos jornais satíricos que tentaram se lançar sobretudo dos anos 1990 para cá. Muita gente boa que compartilhou o lema “Je suis Charlie” por aí não colocaria seus tostões numa publicação assim… Talvez uma boa maneira de se homenagear os que morreram e de se preservar a liberdade de imprensa e opinião seja abrir espaço para cartunistas.

******

Ary Moraes é jornalista ilustrador e professor