Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O povo guia a liberdade

O ataque terrorista às Torres Gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001, provocou uma reação imediata da administração de George W. Bush. O presidente, pertencente à extrema direita dos EUA, incitou o povo a lutar contra o terrorismo na “guerra ao terror”,para combateros mentores da tragédia. Invocou uma nova cruzada (!?) contra países (!?) que abrigassem terroristas. Entendeu, para euforia do complexo industrial-militar, que o ato terrorista era um ato de guerra, e reagiria sem restrições. A beligerância explodiu sem controle, e na marra foi criada uma Nova Ordem Mundial. O governo Bush, à época, sufocou questionamentos, ameaçou a liberdade e a privacidade dos cidadãos. Instituiu o Patriot Act. Em sua empreitada no Afeganistão, usou de enorme aparato militar e tecnológico para encontrar os mentores do “evento catastrófico”.Porém, apesar de todo o esforço de guerra da maior potência militar do mundo, somada à alta tecnologia, a caçada ao líder da Al Qaeda, naquele momento, fracassou. Osama Bin Laden, tudo indica, fugiu a cavalo para esconder-se durante dez anos, não em uma caverna, mas em uma mansão em Abbottabad, no Paquistão, onde tranquilamente criava suas galinhas e recebia suas visitas.

Bush, provavelmente queria mais do que ficar caçando o líder terrorista, queria guerra. Então resolveu invadir o Iraque. E para conseguir isso construiu uma farsa ao tentar ligar Saddam Hussein à Al Qaeda de Osama Bin Laden – apesar da CIA e do chefe antiterror dos EUA à época, Richard Clarke, categoricamente afirmarem que “não havia cooperação nenhuma entre os dois” (CLARKE, 2004, p.50). Bush, apesar da negativa de quem mais entendia de antiterrorismo nos EUA, insistiu na mentira.

Jacques Chirac, presidente da França na época da invasão do Iraque, ao rejeitar os argumentos de Bush, decidiu que a França não participaria da coalizão.

 A invasão do Iraque, cheia de imagens contundentes – tais como as das humilhações e torturas na prisão iraquiana de Abu Ghraib –, provocou a indignação de muitos, e também alimentou o fundamentalismo. Pois somou-se a aspectos sectários a justificativa para o emprego da violência extrema. O terror, como forma de resposta propagandística. O contingente existente nos grupos terroristas se amplificou de forma assustadora, haja vista a metástase dos fatos supracitados, traduzida pelo mega aparato do terrorismo atual, denominado Estado Islâmico.

Uma releitura

Bush alegou levianamente haver armas químicas, biológicas e até atômicas no arsenal bélico de Saddam Hussein – apesar da negativa da existência dessas armas, por parte do chefe dos inspetores de armas da ONU no Iraque, Hans Blix, e do diplomata norte-americano Joseph Wilson.

A única arma de Saddam Hussein que Bush encontrou foi uma pistola, que expôs orgulhoso em sala próxima ao Salão Oval.

A beligerância irresponsável alimentou o fundamentalismo radical, e os dois atentaram contra a racionalidade, a paz e a liberdade.

Após o atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo em Paris, no dia 7 de janeiro passado, e da caçada implacável que culminou com a morte dos terroristas, o povo da França foi para a rua reafirmar os ideais republicanos e ressaltar os fundamentos iluministas. As imagens emocionantes da multidão nas ruas de Paris, na Marcha Republicana, mostram que o povo francês sabe distinguir muito bem onde, quem e quando deve atacar para combater o terrorismo, e jamais exigiria uma cruzada contra países, contra etnias, contra povos. A França não foi seduzida pelo discurso pautado na xenofobia da direita radical francesa, liderada por Marine Le Pen, líder da Frente Nacional (FN). Mas nem por isso deixou de enfatizar sua indignação com o ato bárbaro ocorrido.

O presidente FrançoisHollande não vociferou bravatas para intimidar os muçulmanos, não incitou o povo para empreender uma “nova cruzada”. Preferiu caminhar em silêncio para ouvir a voz soberana, na Marcha Republicana, em solidariedade aos mortos.

Os jornalistas e cartunistas do Charlie Hebdo exerciam a sátira extrema, não tinham preferência pelo alvo, o alvo era tudo o que pudesse ser ironizado. Trabalhavam a liberdade de expressão na sátira contra o dogma religioso, a imposição comportamental e a hipocrisia política. George Wolinski, um dos cartunistas assassinados, orgulhoso de seu país disse: “Temos lá um verdadeiro culto à liberdade, e também ao estado laico, que vem da Época das luzes. Nenhum presidente, seja de direita ou de esquerda, proporá uma restrição à liberdade de expressão” (O Estado de S.Paulo, 8/1/2014).

As pessoas civilizadas têm o direito de opinião assegurado pelo Artigo 19, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU. Têm também o direito de escolha religiosa, política e comportamental. Usufruem da liberdade e da independência, não aderindo a nenhuma religião ou a nenhum partido político, se desejarem. Essa liberdade de escolha é um direito inalienável.

A França é um país laico, Um país que não admite cerceamento da liberdade. Lá vivem milhões de muçulmanos honestos e trabalhadores. Mas há também pouquíssimos extremistas radicais, que só prejudicam a maioria pacífica, que indignada com os terroristas assassinos, usou o slogan – preexistente ao evento –, “# Not In My Name”.

Para homenagear o povo da França pela atitude diante da tragédia, fiz este cartum, que é uma releitura do quadro mais famoso do francês Eugène Delacroix, A Liberdade Guia o Povo – em lugar de destaque no Museu do Louvre –, que simbolizou à época, a luta de um povo em busca da liberdade. Nesta releitura inverti o protagonismo da mensagem. Ao invés da liberdade guiar o povo, agora o povo guiou a liberdade na Marcha Republicana, em defesa de seus símbolos Iluministas:a Igualdade, a Fraternidade e a Liberdade.

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Marcelo Csettkey é jornalista, escritor e artista plástico – cartunista