Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Por que eu sou Charlie

Queria estar na grande marcha de Paris no domingo passado [retrasado, 11/1]. Cogitei seriamente pular num avião sexta à noite, de Nova York; mas não deu.

Nunca gostei de reuniões de massa, nem nos anos 1960. Mas, sem saber bem por quê, pensava que não estar nas manifestações destes dias seria um pouco perder o “trem da história” (justamente nos anos 1960, a gente acreditava que esse trem existia).

De qualquer forma, melhor assim. Estive no pequeno rally de sábado, na Washington Square, em Nova York (por volta de mil pessoas). Foi menos empolgante do que seria a maré humana na Place de la République e, por isso mesmo, pôde ser um momento de reflexão.

Cantei a “Marseillaise” mais vezes numa tarde do que nos últimos 30 ou 40 anos de minha vida, descobrindo que 1) me lembrava de todas as palavras, 2) meu ouvido musical só piorou com os anos.

Cantei como homenagem à França ferida e como hino das ideias que a França encarna para mim, ou seja, não apenas as grandes ideias das luzes do século 18, mas também (se não sobretudo) ideias mais antigas e aparentemente menos nobres: as da tradição libertina e pornográfica e as do espírito gozador da revolta da Fronda (o estilingue) do século 17.

Na Washington Square, chamamos os nomes das vítimas, Charb, Cabu, Wolinski…

Não tinha trazido comigo o cartaz que muitos levavam, “Je suis Charlie”, em várias línguas. Mas tinha um lápis Palomino Blackwing, que ficou na minha mão, apontado para o céu, o tempo inteiro. Caneta, lápis, hidrocor erguidos eram o jeito de dizer que ninguém pararia de escrever ou desenhar livremente.

Na mesma veia, de vez em quando surgia um coro: “Não temos medo” – sobretudo na boca das inúmeras crianças. Era um conforto que houvesse tantas crianças – as crianças europeias e americanas vão (são levadas) para cada tipo de manifestação política, mesmo potencialmente perigosa. Como disse uma vez meu pai, ir a uma manifestação pode ser perigoso para uma criança, mas não seria muito mais perigoso para seu futuro e para seu espírito.

Prova efêmera

Por que eu estava lá? Não sou mais leitor de Charlie Hebdo há tempos. E nunca fui um assíduo. Isso era provavelmente o caso da maioria naquela tarde.

O que nos reunia, então? Um gosto pela sátira? Uma convicção política? Era uma reunião a favor do casamento gay? Por ou contra a descriminalização do aborto ou da maconha? Por ou contra a corrupção? A favor da democracia direta?

Nada disso. A princípio, não tínhamos nada em comum, nada que fosse para todos os manifestantes um valor compartilhado.

Nada em comum – salvo o atentado contra Charlie Hebdo. E Charlie Hebdo é o quê?

Escutei de tudo nestes dias, até alguns (que nunca leram a revista) dizendo que é uma publicação islamofóbica. Charlie Hebdo é uma publicação cretinofóbica porque acha cretino qualquer um que adira a uma crença sem a capacidade de rir dela e de si mesmo enquanto crente. Por isso, seria exato dizer que, para Charlie Hebdo, nada é sagrado.

Por isso, o espírito de Charlie tem a vida difícil diante da sedução dos fundamentalismos, que vendem certezas e sentido pelas nossas ruas.

Agora, será que Charlie peca e cansa por sua descrença generalizada? Suprema acusação: será que Charlie é cínico?

Eu mesmo talvez dissesse que sim, até a reunião da Washington Square – que não era uma reunião de cínicos. Ao contrário, era a reunião dos que acham que nada é sagrado para todos, salvo o princípio de que nada deve ser sagrado para todos. O que não é pouca coisa.

Talvez, no futuro, o atentado a Charlie Hebdo faça história por ser o momento em que a gente começou a entender que o que nos define não é a ausência de valores absolutos, mas é, sim, um valor específico: a recusa de que valores sejam aceitos e reconhecidos como absolutos.

Alguns dizem que sem valores absolutos e intocáveis em comum não há sociedade possível. Pois bem, há uma sociedade possível, constituída ao redor do valor absoluto seguinte: não há valores absolutos para todos.

Agora sei por que fui à manifestação. Ela foi a prova (efêmera, claro) de que é possível se reunir para dizer que só nos reúne a convicção de que, para se reunir, não é preciso que a gente compartilhe uma certeza absoluta. Corrijo: para se reunir, é melhor que a gente não compartilhe uma certeza absoluta.

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Contardo Calligaris é colunista da Folha de S.Paulo