Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Depois do atentado à imprensa, corrida ao jornal impresso

Na semana seguinte ao atentado de Paris, que muitos jornais chamaram de “o 11 de setembro francês”, surpreendentes imagens na televisão mostraram leitores disputando o velho e bom jornal de papel. As filas em todos os jornaleiros da França na madrugada do dia 14 de janeiro eram para tentar comprar um exemplar de Charlie Hebdo, mas toda a imprensa saiu ganhando. Quem fez fila por Charlie acabava saindo com outros diários ou revistas semanais de informação. Previsto para sair com 1 milhão de exemplares, o jornal repetiu várias tiragens que acabaram multiplicando por sete a previsão, para atender ao interesse dos que queriam ler e presentear amigos no estrangeiro. Paralelamente, instalou-se um leilão na internet com preços dementes.

Desde a tiragem recorde do jornal France-Soir de 9 de novembro de 1970, anunciando a morte do general Charles de Gaulle (2.200.000 exemplares), a França não vira um jornal alcançar tiragens tão fantásticas quanto os 7 milhões de exemplares da edição de Charlie Hebdo (14/1) que sucedeu ao massacre de 12 jornalistas. Quando o jornal L’Équipe anunciou a surpreendente vitória da França sobre o Brasil na Copa de 1998, o jornal vendeu “apenas” 1 milhão 960 mil exemplares.

A tiragem de 7 milhões é mais espantosa quando se sabe que Charlie vendia em média apenas 50 mil exemplares por semana nos últimos anos. O jornal, que vive apenas do produto da venda em bancas e das assinaturas, estava em graves dificuldades financeiras. Já a tiragem normal do France Soir de 1970 era de 1 milhão e 500 mil exemplares. Charlie teve um aumento de 13.900% em relação às vendas habituais, enquanto o finado France-Soir aumentara de apenas 30% em relação ao que vendia. Eram os áureos tempos do impresso que, como se sabe, vem declinando há alguns anos e para o qual há quem agoure uma morte lenta e inexorável.

Vigilância máxima

Segundo dados do Syndicat de la Presse Quotidienne Nationale, os diários de circulação nacional têm tiragens médias de 600 mil exemplares por dia. No dia que sucedeu o ataque a Charlie Hebdo, esses jornais chegaram a tirar 1 milhão de exemplares, o que mostra que as pessoas querem ler análises, prognósticos, enfim, querem mais do que o rádio, a televisão ou a internet dão em forma de noticiário quente. E há ainda os fetichistas do papel que acham que um jornal impresso é muito mais que uma mídia, é também documento histórico, tem uma realidade material insuperável.

O fenômeno de corrida às bancas de jornal não foi fruto apenas de curiosidade que beira o voyeurismo em leitores que nunca haviam comprado Charlie Hebdo. Isso seria verdade se fosse restrito ao jornal em questão. No entanto, todos os títulos da imprensa francesa lucraram com a corrida às bancas para tentar comprar um ou vários exemplares de Charlie. Havia entre os franceses uma real vontade de ler, de discutir o que se passou, de entender e de tentar enxergar o que muda no cotidiano e com as guerras em que a França se envolveu recentemente no Iraque, no Mali e na África Central.

Em Paris e nas grandes cidades, o que mudou é evidente. O turismo sofreu uma pequena queda ainda que a segurança ostensiva, inclusive com o Exército nas ruas, tenha sido claramente aumentada. Nos principais locais sensíveis como as grandes estações de trem, os museus e os monumentos públicos, além dos locais de culto e escolas da comunidade judaica, os militares e policiais estão mais presentes do que nunca. O plano Vigipirate, que prevê a prevenção de ataques terroristas, foi aumentado para a vigilância máxima. O próprio primeiro-ministro Manuel Vals declarou a jovens, a quem se dirigia na semana passada, que eles deverão se preparar para conviver com a ameaça terrorista por longo tempo.

Cyber-guerra no Le Monde

Na semana passada, foi na internet que uma pequena batalha se travou entre o jornal Le Monde e os hackers do chamado “Exército Eletrônico Sírio”, braço armado do regime de Bachar Al-Assad na web. A conta Twitter do jornal foi pirateada e os assinantes receberam mensagens e imagens entre as quais uma na qual se via um rebanho de carneiros com cartazes “Je suis Charlie”. A legenda dos hackers dizia: “A liberdade de expressão não é melhor que a liberdade de religião”.

Em um longo texto, o Exército eletrônico de Assad denunciava ainda a hipocrisia dos países que vieram à marcha pela liberdade de expressão em Paris, mas “matam, torturam e destroem”. Para o “exército eletrônico”, o Le Monde condena o terrorismo na França mas o apoia na Síria.

O texto fazia alusão ao fato de o jornal ter revelado a utilização de armas químicas pelo regime de Bachar Al-Assad em 2013. Antes de sua conta no Twitter, o próprio jornal online sofrera uma tentativa de ataque que foi neutralizada.

Na ciberguerra, as batalhas contra os jornais e os jornalistas não são mais travadas com Kalashnikovs. São o trabalho de hackers cada vez mais agressivos e perigosos.

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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris