Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Novos traços da literatura

Obras literárias adaptadas para o formato das histórias em quadrinhos é uma prática editorial que existe no Brasil desde a década de 1930. Mas essa fusão de linguagens – ou de mídias, como preferem alguns – ganhou em dezembro aquela que talvez seja sua experiência mais ousada e ambiciosa: a transposição de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para a linguagem dos gibis, feita pelos artistas Eloar Guazzelli Filho e Rodrigo Rosa. Em um mercado que não se limita mais às bancas de jornal e ganhou definitivamente as livrarias, porém acostumado a preços mais em conta – porque muitos consumidores são crianças, adolescentes e estudantes –, a Biblioteca Azul/Globo Livros colocou o álbum de 180 páginas à venda pelo preço final de R$ 199,00, bem mais que o dobro de obras cultuadas como O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, com mais de 500 páginas e capa dura.

A tiragem também não é modesta: sete mil exemplares, em um setor – o de livros – que se imprime entre mil e três mil exemplares, em média, mesmo no caso de quadrinhos. Soma­se a isso a complexidade da história original, considerada difícil para a maioria dos leitores, mas que se torna mais acessível com o uso de imagens e balões, como se nota na leitura dessa primeira versão da obra. A investida da Globo talvez tenha sido estimulada pelo fato de se tratar de um dos fenômenos mais consistentes da área editorial brasileira nos últimos 15 anos – o da transposição de clássicos literários e obras famosas para a linguagem atraente e de massa das histórias em quadrinhos, uma das preferidas dos leitores mais jovens, mesmo em tempos de leitura digital.

Não são só as vendas ao consumidor que estimulam o negócio. Há mais de uma década, muitos governos municipais, estaduais e federal – por intermédio do Ministério da Educação, com o Programa Nacional do Livro Didático (PNDL) – compram grandes lotes de livros nesse formato. O Prêmio Jabuti, o mais tradicional do país, também deu um empurrão, ao escolher como vencedores alguns ilustradores por essas adaptações. Não por acaso, pelo menos três dezenas de editoras entraram ou se estabeleceram no segmento. São selos de grande porte, como Companhia das Letras (Quadrinhos na Cia.), Zahar, Globo, Abril, Agir, ARX, Saraiva, Companhia Editora Nacional e Ática. E pequenas, muitas delas especializadas em quadrinhos: Conrad, JBC, Veneta, Peirópolis, Opera Graphica, Devir, Escala, Europa, Nemo, Plublikimagem, Panda, HQM, Desiderata, Pallas, Zarabatana e Ygarapé.

A maioria tem apostado em textos de domínio público, livres de direitos autorais. Principalmente de autores como Machado de Assis, José de Alencar e Aluísio de Azevedo, também os mais citados em vestibulares. Esse interesse, aliás, leva a exageros. É difícil, por exemplo, precisar quantos volumes de Dom Casmurro e O Alienista, ambos de Machado, foram lançados neste começo de século. Um termômetro dessa efervescência foi a criação da categoria Adaptação para os Quadrinhos, em 2009, pelo Troféu HQ­Mix, a mais importante premiação de artes gráficas do país. Além dos cinco laureados anuais desde então, outras 24 obras de nada menos que 22 editoras concorreram na edição de 2014 – média de sete finalistas por ano. E novidades não param de surgir.

Em setembro, a espanhola Edições Del Prado lançou nas bancas brasileiras a coleção “Grandes Clássicos da Literatura em Quadrinhos”, em português, claro, anunciada como forma de aproximar crianças e adolescentes de obras literárias consagradas, contra o argumento de que essas edições afastariam a garotada das obras originais. A série é uma parceria com a editora francesa Glénat. Está sendo publicada com o apoio da Unesco e em colaboração com a Federação Internacional dos Professores de Literatura. Na verdade, dos 26 volumes programados para venda semanal, 10 já tinham sido lançados no Brasil, em livrarias, pela L&PM, nos últimos quatro anos. São todas produções estrangeiras e inclui títulos como Dom Quixote (Miguel de Cervantes), A Ilha do Tesouro (Robert Louis Stevenson) e A Volta ao Mundo em 80 Dias (Júlio Verne).

Forma original

O mercado é tão diversificado que até leitores adultos têm sido atendidos pelas editoras. No ano passado, a L&PM começou a republicar clássicos do erotismo adaptados pelo italiano Guido Crepax (1933­2003) nos anos de 1980 e 90, como Vênus das Peles (Sacher­Masoch) e Justine (Sade). O primeiro a sair foi A História de O (Pauline Réage). Interessante também é a premiadíssima coleção “Fábulas”, do selo Vertigo, da DC Comics, em que Bill Willingham recria em quadrinhos os contos de fadas em versão realista para adultos, marcada por violência e lirismo. A Panini acaba de publicar o 19º volume encadernado, com periodicidade bimestral e edições que passam de 180 páginas cada uma. Também lançou seis especiais temáticos, um deles sobre histórias de lobisomens, que está nas bancas.

O editor Levi Trindade, da Panini, explica que esse é um material de nicho e não chega a vender acima da média dos super­heróis. “Mas gostaríamos que mais leitores a descobrissem, pois é fantástica.” Em sua opinião, “Fábulas” se tornou cultuada porque Willingham teve a feliz ideia de recriar os contos de fadas e atualizá­los para os tempos modernos. “Ele soube costurar todas as histórias já conhecidas em uma enorme e complexa – ainda que não hermética – narrativa. E, mesmo com a complexidade da trama, tornou tudo palatável, para que nenhum leitor viesse a se perder pelas árduas trilhas das histórias.” Os prêmios recebidos nos Estados Unidos são mais do que merecidos, conclui o editor. “E pode­se ver claramente a influência de sua HQ em alguns seriados a que assistimos hoje em dia.”

A tendência tem feito também e cada vez mais o caminho inverso da mistura de linguagens. Ou seja, a versão romanceada de narrativas de quadrinhos de sucesso. A Record está no quarto volume da série The Walking Dead, vinda dos gibis de Robert Kirkman, adaptados com sucesso para a televisão – está na quinta temporada. O selo Fantasy, da editora Casa da Palavra, publicou dois romances nessa linha. Wayne de Gotham, de Tracy Hickman, volta à infância de Batman com criatividade e originalidade. Os Últimos Dias de Krypton, de Kevin J. Anderson, recria a origem de Super-Homem antes de ele ser mandado para a Terra.

Mesmo com tanto tempo de experiências em levar literatura para o mundo das artes gráficas, porém, muitas vezes as principais críticas têm sido sobre o resultado, que, às vezes, deixa a desejar. Há uma inegável dificuldade dos artistas não só no Brasil como em vários países no esforço de juntar, misturar ou transpor as duas mídias. Um desafio difícil de vencer tanto para roteiristas quanto para desenhistas. Os empecilhos são diversos, como explica Cassius Medauar, gerente de conteúdo da JBC, especializada em mangás (quadrinhos japoneses). Em seu currículo, ele editou várias adaptações literárias para os quadrinhos na Conrad e na Pixel.

Medauar conta que não passou ainda pela experiência de ter de recusar uma adaptação por causa da qualidade ruim. Mas concorda que há irregularidades em muitos títulos com que teve contato. E sugere um modelo a ser seguido para quem se aventura em uma experiência assim: “A HQ deve conter os elementos básicos do original e conseguir transmitir a ideia do livro. Além disso, o desenho tem de ser bom e condizente.” Na JBC, ele lançou recentemente Rei Lear em mangá. “É um trabalho bacana que introduz um personagem pouco conhecido por aqui e pode fazer as crianças quererem ler os livros originais.” A editora acaba de lançar o mangá Tom Sawyer, inspirado no original de Mark Twain. E estuda novidades para 2015 na linha de clássicos.

Adaptação relevante, para S. Lobo, que foi editor da Desiderata e da Barba Negra (LeYa), é a que o quadrinista tem algo de novo a acrescentar ou faz nova leitura do livro original. “Recusei várias versões, mas nunca por serem adaptações ruins e, sim, maus quadrinhos. Basta ser uma boa história em quadrinhos, bem contada e bem desenhada”, ressalta Lobo, que foi o responsável pelos lançamentos de Cabeleira (Franklin Távora), por Allan Alex, Hiroshi Maeda e Leandro Assis, e Irmãos Grimm em Quadrinhos (diversos quadrinistas nacionais), ambos pela Desiderata.

O veterano Franco de Rosa, com passagens como editor por 12 editoras nos últimos 36 anos, também é roteirista e desenhista e um apaixonado por versões de clássicos em quadrinhos. Tanto que, no momento, prepara com o ilustrador Arthur Garcia os álbuns Kafka (com contos adaptados) e Romeu e Julieta (Shakespeare). “Recebi poucas propostas e nunca recusei nenhuma. Ao contrário: fiz encomendas que nunca foram entregues. Muitas vezes porque o roteirista não conseguiu o resultado que esperava”, lamenta.

Para ele, o problema maior dos artistas brasileiros é a dificuldade em deixar o texto enxuto, bem resolvido, uma vez que a força dos quadrinhos é a imagem. “Costumo ler comparando com o original e percebo que os adaptadores querem respeitar demais o original e se esquecem que se trata de outra mídia, de outra linguagem.” O Guarani, de Alencar, desenhado pela equipe de Edmundo Rodrigues e lançado pela editora O Livreiro na década de 1950, é, para ele, a melhor adaptação de romance brasileiro já feita. “Parece que foi escrito de memória, bastante enxuto e objetivo, com apenas 32 páginas e ritmo.”

A crítica mais comum a esses quadrinhos é, sem dúvida, o excesso de texto. Nobu Chinen, publicitário, professor universitário e doutor em ciências da comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com tese sobre o negro nas histórias em quadrinhos, concorda que há esse excesso de respeito ao original. “Tem­se o receio de mexer em uma obra consagrada e, isso, muitas vezes, acaba fazendo que o adaptador opte por manter muito texto.” Para ele, só o fato de se transpor para outra linguagem já compromete o conceito de fidelidade ao texto, porque sempre haverá uma necessária transformação e não há nada de errado nisso.

Premiado por adaptar A Relíquia, de Eça de Queiroz, para a Conrad, em 2007, Francisco Marcatti Jr, o Marcatti, aponta como desafio maior o que chama de a reformulação da forma. “Enquanto um romance literário constrói imagens dentro do leitor, nos quadrinhos as imagens, que em tese já vêm prontas, devem provocar o leitor para a reconstrução de novas imagens dentro de si com a mesma contundência que em sua forma original.” Assim, prossegue, os desenhos não devem ser ilustrações para texto, mas, ao contrário, conduzi­lo nessa reconstrução. E sempre na busca da perpetuação da grandeza narrativa do original, que, por sua origem, é infinitamente diversa na forma. “Os problemas começam quando quem adapta trata, do ponto de vista mecânico, o original como intocável.”

Segundo Marcatti, quando respeito se confunde com admiração excessiva pela obra ou por seu autor, o quadrinista abre mão das vantagens que a linguagem visual tem sobre a textual. Nessa situação, o artista deixa de avaliar quanto a narração visual pode contribuir para tornar, dentro da linguagem, a leitura mais eficiente e contundente. “Durante o processo de adaptação, o artista deve se colocar como um ‘igual’ ao autor original. Como se dialogasse com ele em busca de, com as ferramentas da sequência gráfica, chegar ao mesmo ponto que a genialidade da origem encontrou através da construção do texto”, diz.

O quadrinista ressalta, no entanto, que uma adaptação jamais substituirá a grandeza em sua forma original. Mas tem por obrigação provocar o leitor, da forma mais simples e estimulante, a buscá­la com apetite e preparo. No momento, ele está envolvido no que talvez seja o maior dos desafios de sua vida. “Com meu modesto olhar gráfico, estou adaptando, para meu traço e minha narrativa, a obra­prima de Victor Hugo.” Nos próximos três anos, tentará desconstruir e reconstruir Os Miseráveis, que deverá sair pela Companhia das Letras, em 2017.

Imaginação medieval

Pela mesma editora, Spacca lançou Jubiabá, de Jorge Amado, em 2009, que lhe rendeu o Troféu HQmix em 2010 como melhor adaptação. Para ele, que veio do cartum e da charge e tem um traço mais humorístico, o desafio maior em levar literatura para os gibis não é só transpor a estrutura da história – a mecânica, quem fez o quê –, mas, sobretudo, captar e conservar o clima do romance? seu humor especial, suas qualidades psicológicas, sua “alma”. Para ele, “isso é recriado tanto por uma escolha cuidadosa dos trechos do original quanto pelo estilo de desenho e pela recriação dos personagens”.

Spacca não vê tantos riscos de dar errado se o adaptador for um bom leitor, sensível, e conhecedor dos recursos de HQ. “É uma questão de querer ser fiel, de querer honestamente levar a essência da obra ao novo leitor.” A experiência o leva a apontar alguns problemas possíveis. Primeiro, na linha de montagem, na qual o desenhista lê apenas o que o roteirista preparou. Para ele, a obra original não apenas deve ser lida pelo desenhista como pesquisada, estudada, para conhecer o contexto histórico, ver as descrições de cenário e personagens – gestos, roupa que estavam usando em cada cena.

Um problema pode ser a limitação de recursos do desenhista. Por exemplo, aquele identificado com uma escola muito marcada, como o mangá. Assim, toda adaptação nesse estilo vira uma “versão mangá” que não se limita apenas ao traço, mas também define a atuação, o acting, enfim. “Nesse caso, as emoções e reações dos personagens também são ‘mangá’ e perdem o espírito original.” Ele ressalva, porém, que algumas narrativas originais são mais abertas, como as histórias bíblicas, e podem se materializar em diversos estilos, inclusive no “mangá”.

No momento, Spacca adapta a biografia do santo católico Padre Pio de Pietrelcina (1887­1968), segundo ele, um caso bem documentado de milagres e fenômenos que se pensavam ser somente mitos ou exageros da imaginação medieval. Fica pronto no fim do ano que vem, promete.

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Gonçalo Junior, para o Valor Econômico