Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O diletante e os dinossauros

Lançada em 1914, a revista norte-americana The New Republic tem como símbolo um barco estilizado navegando em águas turbulentas. A imagem, com base em um poema de Walt Whitman, alude à ideia de que uma jornada pode ser mais interessante do que o próprio destino. Assim, uma publicação pode ter um espírito tão desbravador, genuíno e utópico como uma fragata cortando mares turvos rumo ao desconhecido. Essa era a missão da revista, segundo Herbert Croly, um de seus fundadores, que convenceu um casal de milionários a patrocinar a empreitada editorial.

Por décadas, a TNR, como é conhecida, foi a voz da elite intelectual branca, judia, progressista e liberal na América. Suas resenhas literárias eram primorosas; os perfis de políticos, definitivos; as análises conjunturais, indispensáveis. Era a leitura de presidentes (John F. Kennedy foi fotografado no Air Force One com um exemplar), ministros, secretários e formadores de opinião. Foi nas páginas da revista que ganhadores de Pulitzers e estrelas da profissão começaram suas carreiras – caso de David Remnick, diretor de redação da New Yorker. Para os jornalistas, aTNR não era só um local de trabalho. Era uma causa, um estilo, um ponto de vista, um crachá que os identificava com “tradição”, “legado”, “apuro”. Até o mês passado.

Em um fim de tarde de dezembro, dois assuntos monopolizavam algumas das mesas apinhadas de engravatados do Off the Record, um bar de paredes e estofados de cor vermelho-sangue no porão de um dos hotéis mais caros de Washington. A poucos passos da Casa Branca, é ali que jornalistas, lobistas, políticos e afins encerram a jornada de trabalho. O primeiro assunto era o relatório que revelou técnicas de tortura usadas pelo governo nas investigações contra o terrorismo; o segundo, a debacle da New Republic, que pela primeira vez em 100 anos deixava de circular devido à renúncia coletiva de seus editores e repórteres. À minha direita, um sujeito de barba e bigode parecia ter trabalhado na TNR em algum momento de sua carreira. O outro, ao que a conversa indicava, era um repórter amigo. Ambos diziam coisas como “esses cretinos da internet”.

O sentimento era compartilhado pela categoria. O site The Awl contabilizou mais de quarenta artigos publicados sobre o episódio, nos mais importantes veículos de imprensa do planeta. Ocupando o papel de cretino da internet desta particular hecatombe, estava o milionário Chris Hughes, um jovem de 31 anos que fizera fortuna como um dos sócios fundadores do Facebook – ele e Mark Zuckerberg se conheceram como companheiros de quarto em Harvard. Hughes também ganhara fama ao coordenar a bem-sucedida estratégia digital da primeira campanha de Barack Obama à Presidência.

Formado em história e literatura, leitor de Proust no original, gay, Hughes é socialmente progressista e tem notória ojeriza ao jeito de ser superficial e egocêntrico dos garotos prodígios do Vale do Silício. Desde 2012, ele é o dono da TNR. Ultimamente, entre os coleguinhas de profissão, carrega a pecha de ter destruído a alma da revista. Ninguém ligado a Hughes quis se pronunciar para esta reportagem.

“Ambiente privilegiado”
Nos últimos anos nos Estados Unidos, bilionários da era digital passaram a investir pesado em jornalismo – cujos veículos clássicos, como jornais e revistas, perderam anunciantes e leitores para a internet, inclusive no Brasil. Bem-aventurados e virgens no assunto, eles costumam acreditar que o que dá certo no mundo da tecnologia pode funcionar num negócio cujo motor fundamental é gente de carne e osso.

O dono da Amazon, Jeff Bezos, comprou o Washington Post; Pierre Omidyar, dono do eBay, fundou o First Look Media, que tem como editor de um dos projetos Glenn Greenwald – responsável por publicar os papéis de Edward Snowden; e Jonah Peretti, cofundador do Huffington Post, inventou o BuzzFeed – um site especializado em listas do tipo “As dez coisas que você precisa saber sobre Taylor Swift” ou “Cinco sinais de que você está envelhecendo”, que se tornou um fenômeno digital. No caso de Omidyar, parte de seu projeto azedou antes mesmo de ser lançado. Repercutiu muito mal a demissão do editor Matt Taibbi, que alegou “choque cultural” entre o velho e o novo jornalismo.

A expressão virou lugar-comum na novíssima era da imprensa. Até aqui, o Post parece ser o exemplo mais bem-sucedido porque mantém firme o propósito da grande reportagem. Uma das razões é que o patronato de Bezos se resumiu a investir dinheiro, deixando o jornalismo por conta de seu brilhante editor, Marty Baron.

Na Columbia Journalism Review, a jornalista Ann Friedman – demitida da good, depois que jovens do mercado financeiro compraram a revista – observou que a diferença entre os velhos mecenas do jornalismo e os novos, vindos do mundo digital, é que os segundos se “enchem do assunto muito fácil”. Por isso, frequentemente são chamados de diletantes, e seus jornais e revistas, de seus “brinquedinhos”. “No momento em que grandes editores precisam de tempo e espaço para encontrar a fórmula entre a grande reportagem e o lucro do clique da internet, os donos apressadinhos são um grande problema”, escreveu.

Entre 1974 e 2011, a New Republic esteve nas mãos de Marty Peretz, um professor de Harvard casado com uma herdeira da Singer, o que o fez milionário. Efusivo, temperamental e tido como brilhante, Peretz – que além de dono era também editor-chefe – deu relevância à revista, mas a carimbou com polêmicas. A maior delas foi a publicação de uma reportagem sobre a suposta inferioridade de Quociente de Inteligência na população negra. Além disso, teve que lidar com acusações contra seus repórteres que iam de plágio a matérias publicadas com fontes inventadas.

Sob sua gestão, a TNR sempre foi deficitária, o que nunca lhe pareceu um problema. Certa vez, quando um jornalista lhe perguntou se algum dia pensou que a TNR pudesse dar lucro, ele foi firme: “Jamais.” Atribuía-se ao mecenato o sucesso da revista. A falta de foco no interesse do mercado, especulavam, dava liberdade e independência aos jornalistas. Peretz usava a revista para dar voz a causas que lhe eram caras – como Israel – e para desfrutar do status de ser dono de uma publicação respeitada (o que sempre rende assunto em jantares de lugares marcados).

A relação com seus jornalistas era de respeito intelectual e, com muitos, de arraigada amizade. Polêmico, ferrenho defensor da intervenção americana alhures, com notório desprezo por muçulmanos, era respeitado pela nova e velha guardas. Nos últimos anos de sua gestão – morando em Jerusalém –, ele mal aparecia na sede da revista. Quando o fazia, andava de meias entre as baias caprichando no jeito blasé. A circulação estacionara nos 35 mil exemplares, os anunciantes minguavam e, quando o prejuízo se tornou insustentável – coisa de 3 milhões de dólares ao ano –, ele resolveu colocar a publicação à venda por um valor nunca revelado. A essa altura, a TNR já havia deixado de ser semanal e se tornara quinzenal, além de ter perdido algumas de suas estrelas, como o ensaísta político Hendrik Hertzberg e os repórteres Ryan Lizza e David Grann. A redação viu o negócio com bons olhos.

Antes da chegada de Hughes, o chamado salário-ambiente era o grande motor dos jornalistas da casa. A maioria dos repórteres ganhava pouco – havia até os que trabalhassem de graça, pelo simples fato de estar “entre os bons”. Viagens, só para um furo de reportagem confirmado com dez fontes. Verbas para almoços, só se fosse com o presidente da República. Os exemplos são um tanto exagerados, mas bem poderiam ser verdadeiros. Um fato: certo dia, um dos bebedouros foi retirado para economizar energia e o reportariado posou para uma foto fazendo biquinho de tristeza. Eram solidários na desgraça.

Os colegas de trabalho almoçavam juntos num café na esquina e as festas de fim de ano aconteciam na sala da casa de um dos editores, com cada convidado levando seu farnel de seis latinhas de cerveja. “Era um clima de família unida, misturado a um ambiente intelectual estimulante”, resumiu um dos editores demissionários, que está procurando emprego.

A precariedade da estrutura era compensada pela aura mítica dos anos de glória. As reuniões de pauta, às quintas-feiras, eram como aulas magnas sobre o destino do mundo. Horas de preleção sobre o Cáucaso, os rumos da política norte-americana, a Cisjordânia, a obra de Susan Sontag, os dilemas de David Foster Wallace. Era um prazer ouvir o carismático editor de cultura e crítico literário Leon Wieseltier, 32 anos de casa, com seus cabelos brancos esvoaçantes, como um maestro da Filarmônica de Berlim, discorrendo sobre o Universo. “Estávamos num ambiente privilegiado, distantes do padrão baixo que grassava por aí no jornalismo”, disse-me a editora Judith Shulevitz, uma das que pediu o boné em dezembro.

Reportagens de fôlego

Quando anunciou a compra da TNR, Chris Hughes disse que queria dar continuidade ao legado intelectual da publicação, da qual era assinante desde a adolescência. Deixou claro que estava preparado para os prejuízos vindouros e tempestades. No Washington Post, Hughes foi chamado pelo colunista Dana Milbank de “Walter Lippmann do século XXI”, numa referência ao lendário editor da revista. (Depois da demissão em massa, Milbank escreveu: “A TNR morreu graças a seu dono, Chris Hughes.”) Na época da compra, Andrew Sullivan, ex-editor da TNR, disse no New York Times que o jovem enfim salvara a revista.

Assim que assumiu, Hughes anunciou que escreveria metade dos editoriais e supervisionaria os demais. Ninguém chiou. Rapidamente a força do dinheiro se fez visível. Ele montou um departamento de arte e contratou um diretor criativo que havia trabalhado na Newsweek com a célebre editora Tina Brown. E chamou dois executivos para cuidar das finanças e das operações, além de ter aberto uma sucursal em Nova York, onde ele próprio mantinha seu escritório. A redação detonada e antiga foi substituída por dois andares de salões arejados, com amplos janelões com vista para a National Portrait Gallery, um dos prestigiosos museus de Washington. O número de repórteres dobrou. As viagens internacionais foram retomadas, assim como as verbas para jantares, táxis e livros.

Sem qualquer cerimônia, Hughes demitiu o editor Richard Just, que o havia apresentado a Marty Peretz e ajudara na negociação da compra da revista. Ninguém reclamou na redação. Para o lugar de Just, recontratou Franklin Foer, que havia trabalhado por quinze anos na TNR e saíra em 2010. Observadores atentos perceberam o sinal: se ele convocara o ex-editor é porque queria que a nau seguisse como dantes, o que era ótimo.

Nos cinco anos em que dirigiu a revista, Foer emplacou matérias importantes de política e cultura. Em seu aniversário, em julho, Hughes comandou um brinde dizendo que ele e Foer seriam “parceiros intelectuais por décadas”. Culto, boa-praça e risonho, Foer, de 40 anos, vem de uma família de escritores. Ele estava exausto da polêmica quando nos encontramos em uma casa de chá em Washington. “Nunca imaginei que essa história fosse tomar essa proporção”, comentou.

A primeira capa sob a batuta de Hughes trazia a chamada: “Ataque dos bebês chorões: por que os mandachuvas dos hedge funds se viraram contra Obama.” Hughes tirou o sarcasmo da manchete. Os editores não esbravejaram. Em outra ocasião, o departamento de arte escureceu os dentes da duquesa de Cambridge, Kate Middleton, sob o título “Há algo de podre na Inglaterra”, tratando da crise econômica do país. Hughes protestou: “Isso não é classy”, teria dito, segundo um de seus ex-repórteres. Até então, suas intervenções se restringiam a copidescar a ironia.

Em janeiro de 2013, a New Republic foi relançada com nova diagramação e papel de melhor qualidade. A capa estampava uma entrevista exclusiva com o presidente Barack Obama. Para comemorar a nova fase, Hughes patrocinou duas festas e toda a equipe de Washington voou para Nova York – e vice-versa. “A gente se sentia de novo como numa empresa de verdade. Éramos como uma Condé Nast”, disse uma editora que não quis ter seu nome publicado, referindo-se ao grupo que controla, entre outras, VogueVanity Fair The New Yorker. Naquela edição, Hughes escreveu no editorial que a TNR não era mais só uma revista, mas “uma empresa de mídia”. Na época, ninguém falou nada.

Nos meses seguintes, a New Republic parecia ter recuperado a relevância e a fama de jornalismo engajado e de profundidade. Foi publicada a matéria mais lida da história da revista: “Não mande seu filho para a Ivy League – como as maiores universidades americanas estão transformando os jovens em zumbis“, escrita por William Deresiewicz. À equipe, Chris Hughes disparava e-mails elogiosos.

Até então, repórteres especiais e editores escreviam, em média, quatro grandes reportagens por ano. As estrelas da casa, como Leon Wieseltier, publicavam o que queriam, da forma e do tamanho que bem entendessem. Mandavam em suas editorias como num feudo próprio. A parte digital da revista estava restrita a alguns colaboradores, que escreviam sobre temas diversos, sempre analíticos ou em forma de longas reportagens. O barco deslizava sobre águas calmas e cristalinas.

Trincheiras opostas

Na virada para 2014, Hughes anunciou em uma reunião que, a partir dali, o site da TNR deveria passar dos 2 milhões de visitas únicas por mês para 6 milhões até o final do ano. Quando um dos editores lhe perguntou quantas pessoas ele imaginava contratar para cumprir a tarefa, ele não respondeu. Nessa mesma época, parte da equipe passou a reivindicar ajustes salariais congelados há tempos, mas a resposta do diretor financeiro era sempre “não”. A equipe foi pega de surpresa quando o espaço da redação foi reduzido à metade no final de março. Hughes sublocou um dos andares, pelos quais havia firmado contrato de uso de dez anos.

Sem que qualquer repórter ou editor se manifestasse, a revista começou a investir em “publicidade nativa”, quando surge uma matéria jornalística proposta e patrocinada por um anunciante – o que pode confundir o leitor, mas se tornou fonte de renda de vários veículos de comunicação. Também passou a veicular no site pesquisas promocionais financiadas por bancos, como o Credit Suisse. Uma delas, “O futuro do trabalho”, fazia ao leitor perguntas inimagináveis para o público de outrora: “O que é ser mulher num ambiente predominantemente masculino?”

Para cumprir a meta de aumentar o tráfego online, o site era fermentado com conteúdo extra e reportagens assinadas por colaboradores. Em julho, as visitas únicas haviam mais do que dobrado – saltaram para 4,5 milhões por mês –, segundo me informou a ex-editora digital, Hillary Kelly, que também renunciou ao cargo em dezembro. As assinaturas continuavam estacionadas.

Ainda que renegasse o estilo Vale do Silício, a nova administração nomeada por Hughes lançou ideias que são comuns em empresas industriais e financeiras, mas estranhas ao jornalismo de raiz. O diretor de operações inventou eleger o “funcionário do mês”, concurso que só teve uma edição. Depois foi proposto que os jornalistas formassem um “clube do livro”. “Era uma coisa meio Oprah Winfrey! Meu Deus, para quê? Jornalista lê o tempo todo! Aquela gente não tinha ideia do que era lidar com uma redação!”, disse a ex-editora Julia Ioffe, numa tarde em uma cafeteria de Washington.

Pequenos tropeços e ruídos do choque cultural eram ignorados, como parte de um período de ajuste. Até que um dia, Chris Hughes mandou Leon Wieseltier cortar um artigo, que considerou muito longo. E o mundo começou a cair. “Houve um bochicho no escritório porque era a primeira vez que aquilo acontecia”, comentou Ioffe. Um neófito no métier, um diletante do ramo, editando Wieseltier? Soou mal entre os jornalistas.

No meio do ano, o marido de Hughes, Sean Eldridge – um bonitão que abandonou a faculdade de direito em Harvard –, resolveu se lançar candidato a uma vaga ao Congresso. Em uma tarde recente, o analista político Michael Barone, coautor do celebrado Almanaque da Política Americana e comentarista da Fox News, falou sobre a empreitada em seu escritório no centro de Washington. “Não se pode dizer que tenha sido de propósito, mas havia um plano do casal: um tubarão na mídia e o outro na política”, disse, ajeitando os óculos de aro de tartaruga. “É um casal muito ambicioso”, completou.

Assim que começou a campanha, Hughes se afastou da revista. Além da casa que já tinha no estado de Nova York, ele comprou uma segunda – onde a dupla nunca viveu – apenas para Eldridge ter domicílio eleitoral, uma vez que o distrito onde moravam já tinha um candidato, gay ele também, na frente das pesquisas. Depois de gastar 5 milhões de dólares do próprio bolso na campanha, Hughes viu o marido tomar uma surra nas urnas, perdendo por uma diferença de mais de trinta pontos.

Quando retomou o trabalho, o dono da revista estava diferente, relataram cinco ex-jornalistas da TNR com quem conversei nos Estados Unidos. Parecia distante e irritadiço. “Era como dr. Jekyll e mr. Hyde”, disse Julia Ioffe. Do nada, baixou uma norma proibindo os repórteres de se referirem à revista como “TNR”: deveriam falar e escrever o nome por extenso para “fixar a marca”. Nos corredores, comentava-se que o ano fecharia com 5 milhões de dólares no vermelho.

“É normal o sujeito se cansar de rasgar dinheiro, mas, num negócio como uma revista, prejuízo não é uma novidade”, disse o analista Barone. “E, vamos combinar que ele é muito rico, mas não tem a capacidade de torrar como Bezos ou Omidyar”, afirmou, mencionando os fundadores da Amazon e do eBay. Somadas as despesas da campanha do marido, Hughes contabilizava gastos pesados na revista, sem a perspectiva de novas fontes de receita.

No começo de outubro, sem que Foer ou outro editor soubesse, Chris Hughes inventou o cargo de CEO da revista e contratou para o lugar um ex-editor do Yahoo. Aos 30 anos, Guy Vidra é cria do mundo digital e tecnológico. De cara, foi considerado um corpo estranho no grupo. Pela primeira vez, ouviam-se intramuros palavras como gestão, inovação, estratégia, conceito, produto, compartilhamento, cadeia de valores, modelo de negócio, competitivo, otimização, produtividade, integração.

No segundo encontro com a equipe, Vidra mostrou a que viera. Disse ser preciso repensar a TNR como uma “empresa digital integrada verticalmente” e que ia “mudar tudo”. Usando PowerPoint, também sugeriu que os jornalistas produzissem um conteúdo mais snackable, mais “tira-gosto”, a ser consumido rapidamente. Depois, conclamou os presentes a se reunirem com um grupo de engenheiros – a ser contratado – para juntos bolarem dispositivos para o site da revista. No centro de seu discurso, estava a procura por cliques, o que pode ser conseguido com as famigeradas listas dos dez mais ou coisa do gênero. Cada item, um clique. Cada clique, um ponto a mais na audiência. Ele sugeriu ao veterano e respeitadíssimo editor Michael Kinsley que elencasse as dez razões pelas quais o sistema de saúde não é de livre mercado. Kinsley se negou.

Em determinado momento, cogitou-se oferecer ações da empresa aos repórteres. “Mas foi quando Vidra disse que ia break shit que a coisa passou dos limites”, lembrou a então editora Julia Ioffe. “Eu olhei para a cara do Frank e ele estava atônito”, disse. A partir dali, estava instituída uma novíssima luta de classes. Era o outsider contra os tradicionais; os acomodados contra os modernos; o diletante contra os dinossauros. “O que ele quis dizer com isso? Que tudo o que fizemos antes era shit e ele tinha que romper com tudo o que foi feito? Foi muito desrespeitoso”, comentou a ex-editora Judith Shulevitz.

Ao mesmo tempo, Hughes passou a palpitar em tudo, inclusive em ideias de pautas. Para provar o que dizia, uma ex-editora me mandou uma troca de e-mails entre a cúpula da revista e um repórter. Segundo a mensagem, quando o presidente da Apple, Tim Cook, saiu do armário, o repórter Alex MacGillis quis fazer uma matéria sobre como comportamentos e costumes pareciam arrefecer os pecados da desigualdade na nova era do liberalismo. MacGillis sugeriu escrever que o anúncio da homossexualidade de Cook ganhava mais destaque do que o fato de ele ter lucrado horrores graças a políticas discutíveis de favorecimento a grandes corporações.

Seis minutos depois do e-mail com a sugestão do repórter, Hughes bombardeou a ideia. “A Apple atua dentro da lei. E a lei é foda. De qualquer maneira, você não deve subestimar a coragem de Cook”, escreveu. Meia hora depois, MacGillis enviou a réplica: “Entendido, mas ninguém sabe mesmo se a Apple anda dentro da lei.” E anexou uma reportagem do New York Times sobre o assunto. Passaram-se vinte minutos, e Hughes respondeu: “Estou confuso. Alguém, inclusive nessa matéria do NYT, falou o que a Apple fez de ilegal?”

Seguiram-se outros três longos e-mails, nos quais Hughes defendeu a Apple, as tais “políticas discutíveis” e, sobretudo, a coragem de Cook. Definitivamente, estavam em trincheiras opostas.

Dois conceitos

A equipe preparava a edição comemorativa dos 100 anos da revista. Em paralelo, Chris Hughes organizava os detalhes do baile de gala que ofereceu para 400 convidados famosos. Por um cachê de 50 mil dólares, Bill Clinton fez um discurso; o músico Wynton Marsalis tocou para os convidados; quem fez o brinde foi Ruth Ginsburg, juíza da Suprema Corte. Os jornalistas da revista foram acomodados nas últimas fileiras do auditório. Hughes se encarregou pessoalmente da distribuição de lugares.

No evento, Hughes e Vidra discursaram, ressaltando o sucesso da revista na internet, o aumento no tráfego online e as perspectivas para o futuro. Os repórteres se horrorizaram quando Vidra errou o sobrenome de Franklin Foer, tratando-o de “Foyer”. Quando chegou a sua vez, Leon Wieseltier expressou em tom belicoso o mal-estar que se instalara entre os jornalistas. “Não somos só incubadores e aceleradores”, disse, fazendo troça da linguagem usada por Vidra nas reuniões. “Somos também guardiães e administradores.” Na edição impressa, Wieseltier atacou de novo. Concluía um texto dizendo que “ditadores empregam intelectuais, mas ao final eles temem os intelectuais porque temem que eles revelem suas fraquezas e mentiras. Então, por fim, preferem destruí-los”.

Em Nova York e Washington, começou a circular entre jornalistas que Nick Thompson, editor digital da New Yorker, iria para o lugar de Foer. Uma editora contou ter mandado um e-mail a Hughes perguntando se Foer seria demitido. “Ele respondeu que não, enfático. E eu de propósito repliquei dizendo ‘Ainda bem, porque senão todos os editores sairiam junto’”, disse.

O boato tomava corpo, ainda que parte dos repórteres duvidasse da história. O tráfego na internet pulara para 5,4 milhões de visitas únicas ao mês – praticamente a meta imposta por Hughes. Um colega de Foer que trabalhava na Bloomberg, porém, telefonou de Nova York e disse ter confirmado que ele seria substituído. Contou que Gabriel Snyder – profissional com reputação de competente, ex-repórter da revista Wire e do site Gawker, especializado em fofocas de celebridades – estava convidando jornalistas para trabalhar na New Republic. Quando o editor foi tomar satisfação com Hughes, ouviu do patrão que era isso mesmo.

Franklin Foer anunciou à equipe que estava se demitindo. Mandou uma mensagem para seus subordinados dizendo que os planos dele e de Hughes para a revista “eram incompatíveis”. Aos mais próximos, comentou que Snyder no comando “era como um esquete do Saturday Night Live”. Imediatamente, Leon Wieseltier aderiu. A redação parou. Num discurso emocionado, no qual citou o barco de Walt Whitman, a missão do jornalismo, a arte da escrita, repórteres e editores o aplaudiram. Alguns choraram.

Numa reunião convocada às pressas, Vidra informou que, dali em diante, a revista passaria a ter dez números anuais, em vez de vinte, e que a sede seria transferida para Nova York. E anunciou Gabriel Snyder como novo editor. “Quando ouvimos ‘Gawker’, percebemos claramente, pela primeira vez, o que Chris Hughes queria fazer de sua revista. E aí, estávamos fora”, disse Julia Ioffe. Naquela noite e madrugada adentro, os e-mails e os sms dos profissionais da casa chisparam os ares. Os jornalistas escreveram, em conjunto, uma versão da carta de demissão coletiva, que foi postada no Facebook na manhã seguinte – e a ninguém deve ter escapado a ironia de a velha guarda ter julgado mais eficiente (além de mais em conta) publicar seu J’Accuse! não numa veneranda publicação física, mas no site que originou a fortuna do traidor. Dois terços da redação saíram, incluindo quinze editores e mais de trinta colaboradores.

“A versão que divulgaram é que somos contrários à internet. Isso é absurdo. Não somos dinossauros. Somos contrários à maneira abjeta como tudo isso foi feito”, disse Judith Shulevitz. Segundo a ex-editora, os novos investidores se equivocam enormemente quando imaginam que conseguirão fazer do jornalismo eletrônico uma fonte generosa de dinheiro. Além disso, disse, existe a inversão perversa da ordem das prioridades: o jornalismo passar a entregar o que julga que o leitor vai querer consumir e não o que seria importante que o leitor saiba. “É nivelar por baixo. Saí porque todo mundo que eu respeito foi embora. Essa revista acabou.”

Dias depois da revoada dos jornalistas, Vidra e Hughes (falando pelo Skype de Nova York) comandaram uma reunião com o que sobrou da equipe – menos de dez pessoas. Segundo Ryan Lizza, repórter da New Yorker e ex-colaborador da TNR, Hughes tinha os olhos lacrimejantes. Interlocutores disseram que ele estava arrasado. Aos funcionários, repetiu que não pretendia transformar a revista num site de listas e que, como sempre, prezaria a tradição. De seu lado, Vidra admitiu ter sido inábil na relação com o grupo.

Em um longo artigo no Washington Post, Hughes veio a público dar sua versão. Negou que se comporte como um garoto mimado do Vale do Silício e queira impor a cultura da internet numa revista tradicional. “Eu quero proteger o futuro da publicação criando um negócio sustentável para que nosso jornalismo, seus valores e sua voz – o que nos diferencia – possam sobreviver”, escreveu. Ele se disse frustrado por ter sido interpretado como alguém que queria transformar a revista num compêndio de listas. “Se fosse isso, eu já teria feito há muito tempo.”

Ao britânico The Guardian, Hughes citou como suas referências as inovações digitais no New York Times, o jornalismo explicativo da Vox.com e as longas matérias de fôlego que começaram a ser publicadas pelo BuzzFeed. “São iniciativas que levam um espectro variado de informações aos leitores por meio de canais muito diferentes”, disse.

“Ali era um feudo intocável, cheio de arautos da intelligentsia, pós-poesia, pós isso e aquilo. Jornalistas resistem muito a sair da zona de conforto”, disse Max Fisher, editor de conteúdo da Vox.com, que começou sua carreira como estagiário da New Republic. Aos 30 anos, no comando de um dos veículos mais visíveis entre os que se propõem a renovar o jornalismo americano, ele tinha uma visão particular do episódio. “Aí vem o carinha do Facebook e, de uma hora para outra, fala que você tem que fazer nove posts num blog por dia, tem que escrever textos mais curtos, soa como um desrespeito”, declarou no amplo escritório que ocupa um andar de um prédio moderno do Centro de Washington.

Na avaliação de Fisher, a resistência dos profissionais mais antigos ao mundo digital é puro medo de perder prestígio. “Todo mundo em jornal sempre trabalhou com outros produtos: do layout ao horóscopo, do anúncio às palavras cruzadas – coisas que vendiam jornal. Mas, quando você propõe fazer a versão online de tudo isso, o pessoal surta porque acha que vai ter que fazer algo inferior”, comentou Fisher.

Quando Hughes citou a Vox.com como exemplo de iniciativas de sucesso que conjugam internet e boa apuração, o colunista Joe Nocera, do New York Times, escreveu em tom sarcástico que, ao pesquisar sobre a Vox, deu de cara com uma matéria sobre “pum”. “Adoramos a propaganda gratuita que Nocera fez da gente. E o divertido foi poder publicar um artigo sobre pum no dia em que Washington inteira só falava da TNR. Não nos levamos tão a sério assim”, comentou Fisher, mencionando que recentemente a empresa recebera uma injeção de 46 milhões de dólares de mais um investidor, a poderosa General Atlantic.

Jay Rosen, professor de jornalismo da Universidade de Nova York, defende que os jornalistas devem abrir suas mentes ao conceito de que suas reportagens são “produtos”. Segundo ele, o repórter costuma achar que “produto” é algo menor do que texto brilhante e grandes histórias. “Mas quando o pessoal que veio do mundo tecnológico usa ‘produto’, eles se referem a algo com que o leitor possa interagir”, argumentou. Para Rosen, que comanda o site Pressthink, quem critica a Vox ou o BuzzFeed está errado. “São eles que estão conseguindo colocar o ‘produto’ nos dois conceitos: tanto para repórteres quanto para os investidores vindos do mundo digital.”

Saga dos demissionários

A cinco dias do fechamento da edição de dezembro, Vidra e Hughes foram informados de que não havia material suficiente para editar a revista. Não só os repórteres haviam se demitido como todos haviam proibido que seus artigos fossem publicados. Os diretores decidiram suspender a circulação e arcar com os prejuízos. Uma nova edição só irá para as bancas a partir de 2 de fevereiro.

Muitos dos demissionários já estão empregados ou têm contratos assinados para escrever livros, o que vai lhes ocupar o tempo e trazer dinheiro. Quem ficou no barco foram os mais novos, os estagiários e os que ganhavam pouco. Infelizmente, numa estrutura caótica. Em meados de dezembro, eles foram informados de que poderiam receber um bônus de 2 mil dólares, caso seguissem no emprego.

Os interessados pelo episódio podem acompanhar a saga dos demissionários pelo Twitter, Facebook, Instagram e blogs, onde a maioria postou comentários ácidos, textos raivosos, detalhes de conversas internas, discussões em público com outros colegas de profissão. Está tudo online, disponível em apenas um clique. 

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>> New York Times escreve sobre a rebelião na New Republic

>> O site The Awl contabilizou mais de quarenta artigos publicados sobre o episódio

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Daniela Pinheiro é repórter da piauí