Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Malditos repórteres de polícia

A geração de repórteres que hoje produz o incalculável volume de informações disponível minuto a minuto na internet provavelmente nunca ouviu falar de Mário Dias. E por certo pouco sabe também sobre Octávio Ribeiro, Amado Ribeiro, Oscar Cardoso (no Rio) ou Percival de Souza, Josmar Jozimo, em São Paulo, estes ainda na ativa. Pois Mário é um dos titulares do time de grandes repórteres de polícia da outrora soberana mídia impressa.

Mário acaba de lançar um livro que pode ser um ponto de partida para um sobrevoo na profissão cada vez mais essencial nessa nau sem rumo que virou a indústria da informação. Ele é do tempo em que, em vez do Google, as ferramentas de trabalho eram o telefone (ruim de linha toda a vida), o faro e o cultivo das fontes. Mais que isso, do tempo em que havia mais jornalistas nas redações do que nas assessorias de imprensa, quer em órgãos públicos, quer em empresas privadas. E havia mais repórteres na rua do que nas redações. Sim, e não tinha também o Ministério Público, criado pela Constituição de 1988 e hoje um importante e decisivo aliado de repórteres investigadores. Mário é, enfim, do tempo que havia repórteres que não precisavam de pauta. Tinham a própria.

O livro leva um título que entrega o estilo do autor: CTI – Antessala da morte – Um passeio pela vida. Foi imaginado 30 anos atrás, quando Mário teve que passar nove intermináveis dias numa unidade de terapia intensiva em Niterói, onde vive, para se recuperar de um infarto. São 83 capítulos autobiográficos, todos curtos, como pede a moderna linguagem jornalística. Com uma vantagem: não precisa ser lido a partir do começo.

Em qualquer página que o leitor abrir, haverá uma história de no máximo 3 páginas com começo, meio e fim. Todas em estilo de quem sempre praticou a profissão com entusiasmo de iniciante e, mais importante, sem medo de ser carimbado como cascateiro, espécie de depreciação com a qual a categoria estigmatizava repórteres cujas matérias ajudavam a vender jornais (sobretudo os populares) nas bancas. O cascateiro, digamos, trabalhava na mesma raia em que hoje nadam de braçada os portais dos grandes jornais, mesmo os de veículos de qualidade, na ânsia de ganhar audiência na internet, explorando, sem nenhum pudor, o mundo cão de sempre e celebridades sem nenhum conteúdo mas continente abundante. O Big Brother é tempo de farra para esta nova forma de fazer cascata. Todos os sites ganham aumento de audiência que impressionam quem acompanha as métricas do setor.

Fazer a diferença

“Acho que fui autor de umas 2 mil manchetes nesses meus 50 anos de estrada”, diz Mário, orgulhoso do tempo em que carregava o rótulo de cascateiro. “Todas nos jornais por onde passei.” A lista é grande. No Rio, O Dia, A Notícia, O Jornal, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil e Luta Democrática (só O Dia continua na bancas); em Niterói, A Tribuna, Jornal de Icaraí e Diário Fluminense (este, extinto) e em São Gonçalo, O São Gonçalo. Mário foi multiplataforma antes da internet. Trabalhou no rádio, na televisão (Globo e Manchete), em assessorias de imprensa e faz bicos como apresentador.

Em 1992, aos 25 anos de profissão, Mário, que agora está com 72, publicou Malditos Repórteres de Polícia, livro no qual contava, entre outros, o mais rumoroso de seus casos – o mistério das máscaras de chumbo –, tema de duas diferentes edições do extinto programa Linha Direta, da TV Globo, uma conduzida por Hélio Costa e outra por Domingos Meirelles. “O mistério da máscaras de chumbo foi como batizamos as mortes de Miguel José Viana e Manoel Pereira da Cruz, campistas, que tiveram os corpos encontrados no morro do Vintém, em Niterói, onde tinham subido para tentar contato com possíveis extraterrestres. Até hoje a causa das mortes, ocorridas em 1966, não foi identificada”, lembra. Na Wikipedia, o caso soma mais de 200 mil citações.

O livro recém-lançado, de 128 páginas e desprovido de pretensões literárias, funciona como contraponto do cotidiano das redações multiplataformizadas de hoje em dia e serviria muito bem como objeto de estudo comparativo nas escolas de comunicação. Nos áureos tempos dos malditos repórteres de polícia, as redações do impresso pautavam o rádio, que pautava a televisão, que pautava os jornais… num círculo virtuoso com ciclo de horário que facilitava a vida de quem buscava ou precisava de informação. A notícia podia ser a mesma, mas recebia tratamento diferente de cada mídia. Num, ganhava som, no outro, imagem.

Hoje, numa mesma mídia, o leitor pode ver, ouvir e ler sobre um fato, dia e noite. E além de comentários pode até mesmo acrescentar novas informações à notícia. A internet ajudou o rádio, a televisão começa a entendê-la, mas os impressos patinam na relação e convivência com o mundo digital.

Dez anos atrás, na febre da integração das redações, os impressos eram mais do mesmo. Agora, parecem menos do mesmo. A integração, até outro dia um movimento obrigatório, começa a ser colocada em xeque, porque a audiência da internet não se monetiza e o resultado financeiro do impresso (tanto do que vai para as bancas quanto das edições digitais) não para de encolher.

O livro da Mário Dias ensina que, no tempo da notícia impressa, praticar o jornalismo fazia a diferença.

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Orivaldo Perin é jornalista