Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Negacionistas do clima e da evolução não são ‘céticos’

Já conta com quase 23 mil assinaturas de cientistas a petição “Negadores não são céticos”, promovida nos Estados Unidos em apelo à imprensa para deixar de chamar de “céticos” os negadores do aquecimento global antropogênico, isto é, provocado pela ação humana e além do efeito estufa natural. Organizada pelo CSI (Comitê para Investigação Cética) em dezembro do ano passado, a iniciativa pretende alcançar 25 mil assinaturas de pesquisadores.

O comitê foi criado em 1976, tendo entre seus objetivos o de “promover a pesquisa por meio da investigação objetiva e imparcial em áreas onde ela for necessária”. O grupo reúne cerca de 100 pesquisadores de projeção internacional, inclusive ganhadores do Prêmio Nobel, como os físicos norte-americanos Murray Gell-Mann (1969), Steven Weinberg (1979) e o químico britânico Harry Kroto (1996). Na petição, os membros do conselho executivo do CSI afirmam:

“…estamos preocupados por as palavras ‘cético’ e ‘negador’ terem sido confundidas pela mídia popular. O verdadeiro ceticismo promove a investigação científica, a investigação crítica e do uso da razão ao examinar alegações controversas e extraordinárias. Ele é fundamental para o método científico. A negação, por outro lado, é a rejeição a priori de ideias sem consideração objetiva.”

Mau uso

A expressão ”céticos do clima” e suas variações passaram a ser usadas mais intensamente a partir de 2001 com o lançamento do livro O Ambientalista Cético, do estatístico dinamarquês Bjorn Lomborg. Em 2003, o Comitê Dinamarquês sobre Desonestidade Científica concluiu que essa obra se enquadrava em seus critérios de má-conduta na pesquisa, pois seus dados argumentos se baseados em pesquisas não foram contrapostos por fontes semelhantes, mas praticamente só por reportagens.

Os autores do abaixo-assinado têm razão ao apontar esse mau uso do termo “cético”. De fato, não há problema em usar a palavra para se referir a pesquisadores que, por razões exclusivamente acadêmicas, e sem ser recorrer a más-condutas científicas, contestam o aquecimento global antropogênico.

Lobbies

O problema é que entre os mais atuantes contestadores da mudança climática tem sido difícil encontrar exemplos de interesse exclusivamente científico, que são minoria na comunidade científica e mal aparecem na imprensa. Desse modo, o rótulo tem sido muito mais aplicado a políticos e também a acadêmicos e especialistas comprometidos com lobbies da indústria do petróleo e de grupos atrasados do agronegócio.

Esses grupos são contrários às ações propostas pelo IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas) para reduzir as emissões de gases estufa, especialmente pelo uso de combustíveis fósseis. Por essa razão eles rejeitam as conclusões cientificas do painel da ONU sobre a origem humana do aumento de 0,85ºC da temperatura média global de 1888 a 2012 e de sua previsão de até 2100 a elevação a partir de agora ultrapassar 2ºC, podendo chegar a 4,5ºC.

Um exemplo desses lobbies é o do American Enterprise Institute, que recebe recursos do grupo Exxon, como mostrou a reportagem “Crescem pedidos de quebra de sigilo de climatologistas dos EUA“, publicada pela Folha de S.Paulo na quinta-feira (19.fev). Entidades que atuam da mesma forma e também têm suporte de empresas petrolíferas são o Energy & Environmental Legal Institute, dos EUA, e a GWPF (Fundação da Política do Aquecimento Global), sediada em Londres, no Reino Unido.

Rótulos

A petição do CSI finaliza dizendo:

“Somos céticos que dedicaram grande parte de nossas carreiras para praticar e promover o ceticismo científico. Pedimos aos jornalistas que tenham mais cuidado ao reportarem sobre aqueles que rejeitam a ciência do clima, e mantenham os princípios da verdade nessa classificação. Por favor, parem de usar a palavra ‘cético’ para designar negadores.”

Na verdade, faltou ao CSI nessa reclamação ser realmente crítico, pois o mau uso condenado pelo comitê não é exclusivo dos meios de comunicação. Além de muitos pesquisadores, inclusive em artigos científicos, até mesmo autoridades das Nações Unidas também têm empregado o rótulo dessa forma, como o próprio secretário-geral Bam Ki-Moon, que em um pronunciamento em setembro do ano passado afirmou:

“Vamos reunir esforços para empurrar para trás céticos e interesses entrincheirados.”

Na língua portuguesa já tem sido usado o neologismo “negacionistas” para designar esses negadores com segundas intenções, entre elas a rejeição às metas de redução da emissão de gases estufa, previstas no protocolo de Kyoto, criado em 1997 no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática e vigente desde 2005.

Muitos jornalistas têm adotado o cuidado de usar aspas ao reportarem sobre negacionistas. Foi o que fiz na segunda-feira (16.fev) ao publicar neste blog o post “O ciclo do carbono e os ‘céticos’ do clima”. Outro recurso também tem sido fazer referência a eles como “os autodenominados” ou “os chamados céticos”.

Filosofia

Além do significado científico apontado pelo CSI, o termo “cético” teve inicialmente um sentido filosófico. O ceticismo é a corrente cujo maior expoente na Antiguidade foi Pirro de Élis (c. 360-275 a.C.), cujo pensamento foi resgatado na obra Hipotiposes Pirrônicas, de Sexto Empírico (c. 160-210 d.C.). Pirro propunha a ataraxia, que em grego significa a imperturbabilidade diante de questões controversas, como explica o professor de filosofia Plínio Junqueira Smith, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo):

“A terapia pirrônica, tal como no-la descreve Sexto, faz-se por meio da oposição de discursos e razões e supõe que os dogmáticos sofrem de precipitação e arrogância, que se manifestariam na adesão apressada a um discurso argumentativo e a uma tese em detrimento da tese e discurso argumentativo opostos. O problema do dogmático não consiste na adoção desta ou daquela tese filosófica, mas numa atitude que se caracteriza pela precipitação e pela arrogância. É essa atitude, segundo Sexto, que deve ser tratada. Além disso, a idéia pirrônica é que essa atitude dogmática é fonte de perturbação e de uma vida pior.” (Plínio Junqueira Smith, “Ceticismo dogmático e dogmatismo sem dogmas”, revista Integração, nº 45, abr/mai/jun 2006, págs. 181-182)

Enfim, os negacionistas não têm nada a ver com o ceticismo, seja no sentido científico ou no filosófico. Além disso, pouco importa para eles que as ações propostas para reduzir as emissões crescentes de gases estufa estão também diretamente relacionadas à prevenção de outros impactos ambientais, como a poluição do ar e das águas e a devastação de áreas de vegetação nativa, que trazem prejuízos cada vez maiores para a capacidade de o planeta atender às necessidades humanas atuais e das futuras gerações.

O pior de tudo é que também existem negacionistas da teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural. E eles já começaram a se autodenominar “céticos da evolução” ou “céticos de Darwin”. Só falta essa impostura ser consagrada pelo uso!

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Maurício Tuffani é jornalista