Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A interpretação dos sinais

‘Sei tudo e não compreendo nada.’ Esta frase tem o gosto de sentença e de autocondenação. Saber tudo e nada compreender apresenta-se como epitáfio-síntese dos dias e anos atravessados que vivemos. Ao alcance das mãos, teclados conectados a computadores ligados à teia da informação virtual conhecida como internet, o mundo do conhecimento se apresenta. E são papiros com séculos de história, teses doutorais recém-saídas do forno, cozidas no fogo brando da academia, trânsito alucinante de rumores cibernéticos, engavetamento planetário de apreensões muito pessoais do que atende pelo nome de realidade metamorfoseada em sítios e blogues, em breves vídeos, em resenhas do muito que já se escreveu.


Saber tudo é como ouvir o galo cantar. Compreender é como saber seu lugar de canto, seu canto de fala. Saber tudo é estar ciente que amanhece o dia. Compreender é ter olhos para apreciar a gradual transição do escuro claro que delimita a fronteira entre noite e dia.


Ter acesso ao mundo da informação é como estocar toneladas de trigo que, no entanto, permanecerão intocadas pela luz da compreensão. Sabemos que é para o feitio do pão, mas não sabemos como prepará-lo para consumo humano. Tal é o dilema que nos oprime e sufoca.


Reter a informação para sua transformação em conhecimento crítico e transformador passa, invariavelmente, pela leitura do mundo e de seus signos, sem o que a leitura da palavra levará a nada. E esta é a civilização dos signos. Não se lêem apenas palavras. A leitura comporta o reino das imagens e dos sinais. Mas há que saber interpretar.


‘Capa transformou-se num viral’


Vejamos, por exemplo, a capa da penúltima edição de Veja (nº 2161, de 21/4/2010). A chamada da capa trazia claridade no enunciado: ‘Serra e o Brasil pós-Lula’. Logo abaixo, como subtítulo-referente, lemos a frase do ex-governador José Serra: ‘Eu me preparei a vida inteira para ser presidente’. 


 


Paremos aqui. O que estas palavras formam? Muita coisa. Exemplo? ‘Serra, presidente do Brasil pós-Lula’. E também: ‘Presidente do Brasil, Serra se preparou (por) toda a vida’. Esquartejemos as construções frasais e teremos: Serra, Brasil, Presidente, Pós, Lula, Vida. Tudo é positivo e, como tal, luminoso. Nada remete à penumbra, à opacidade. É o futuro claro e promissor que a revista apresenta ao Brasil através do olhar de seus milhares de leitores. Mas, ainda assim, o que seria esta capa se contivesse apenas essas 13 palavras? Seria pouco, pois não desvelaria um rosto humano.


É quando entra a imagem. E neste caso a imagem no espelho cativa mais, prende a atenção mais, muito mais que a própria imagem real. Temos o rosto sorridente, manso, terno, de José Serra. Nada de olhos de aço, olheiras, rugas. Ao contrário, a revista optou por uma pose, digamos providencial, em que sua mão direita sustenta o rosto. O detalhe da mão despretensiosa contrastou tanto, ficou tão destoante da imagem que guardamos do político paulista em nossa memória. Ocorre que a foto da capa traz muita similitude com aquelas fotos para segunda orelha de livro de auto-ajuda. Qual seria o título do livro para essa cara?


De qualquer forma, com dois ou três dias da circulação da revista já se encontrava na internet um site reunindo fotos de anônimos imitando a pose de José Serra. O site de Veja estampou: ‘A capa desta semana, com José Serra, transformou-se rapidamente em um `viral´ – nome que se usa na internet para a divulgação espontânea de um tema ou produto. A fisionomia sorridente e descontraída do tucano levou muita gente a imitar sua pose no site.’



A profecia do astrólogo


Se foi um viral meticulosamente planejado, não sabemos, mas captamos a mensagem no sentido de que esforço deveria ser despendido para repercutir mais a capa e, então, por que não aproximar rostos anônimos do rosto do candidato a presidente da República? Foi um estalo. Apesar do deslumbramento de sua equipe editorial com o ‘achado’, há que se informar que esta capa em especial não ganharia prêmio no quesito originalidade: a capa imita a revista Time (19/5/2008) tanto na foto quanto na mensagem francamente simpática. A Time titula sua matéria de capa com Barack Obama com as palavras ‘E o ganhador é…’ A foto do presidente americano arremata a frase. Veja envereda na mesma trilha de sua congênere americana: ‘Serra e o Brasil pós-Lula’.


 


Também não tardaram a espocar teorias conspiratórias na internet dando conta que essa mão no rosto não é a do Serra, que a mão do ex-governador é muito diferente da mão mostrada na capa. Outros saíram em busca de solução para o enigma estilo ‘alguém sabe de quem é esta mão que está segurando o rosto dele?’ E, óbvio, os delírios habituais: ‘O rosto é de outra pessoa, dona da mãozinha, e fizeram uma fotomontagem’.


Quanto ao conteúdo, a editorialização não deixa ponto sem nó. A principal matéria é um primor de satisfação garantida e comprovada: ‘Com a casa em ordem, Serra vai à luta’. Boa seleção de fotos do candidato com direito a dois boxes inusitados. Um para ‘O decálogo do bom governante’, bola levantada para que o candidato Serra elenque ‘os dez mandamentos que, segundo ele, devem nortear a atuação de um bom presidente da República’. E intuo que na falta de melhores opções para utilizar o valioso espaço da revista semanal de maior circulação no Brasil, os leitores encaram box com Oscar Quiroga, o astrólogo preferido de Serra, onde este afirma o que está escrito em suas estrelas: ‘O tucano será o próximo presidente’.


O ranço do passado e a beatitude


É complicado atuar como bom observador da imprensa sem eleger parâmetros ao qual lançar o olho crítico. O fato é que a revista Veja procurou ser equânime com os dois principais candidatos à Presidência da República no próximo mês de outubro – e Dilma Rousseff é a capa de sua edição 2153, de 24/2/2010. Chamada de capa: ‘A realidade mudou, e nós com ela’ e subtítulos ‘A candidata e os radicais do PT’, ‘Entre a ideologia e o pragmatismo’ e ‘O estado e o capitalismo no mundo pós-crise’.


Outro pit stop. Precisamos ordenar melhor os pensamentos. A opção de Veja por frase vazia de sentido, óbvia em seu nada dizer, parece estar ali apenas para cumprir tabela. O que alguém quer dizer quando fala que a realidade mudou e nós com ela? Não seria sempre assim? Quando é que a realidade vai mudar e a gente não? Seremos seres abstratos, avatares agora avermelhados sem qualquer liame ou vínculo com a existência real, palpável?


Veja não descuida de anotar também na capa: ‘Dilma Rousseff a Veja‘. De tantas frases por ela pronunciadas, não teria sido educativo lembrar o episódio de maio de 2008, quando o senador José Agripino Maia achou um absurdo o fato de Dilma Rousseff ter mentido durante as sessões de tortura a que foi submetida nos anos da ditadura militar no Brasil? E o que lhe respondeu a personalidade capa de Veja? ‘Menti sim, senhor senador. Menti, mesmo sob tortura, para salvar a vida de outras pessoas que também lutavam contra os covardes’, Digam-me, leitores deste Observatório, esta frase não seria muito mais positiva que a frase bêbada de significados ‘A realidade mudou, e nós com ela’?


Os subtítulos colocados por Veja têm a sutileza e leveza daquela escada que é bruscamente retirada, às pressas, da personagem da capa: afugenta pelo grau de belicosidade e as incertezas que o futuro nos reserva. É como arrependimento tardio por haver dedicado ao personagem seu mais valioso espaço: sua capa.


 


Vamos à imagem da capa. Temos aqui um rosto em preto e branco emoldurado literalmente por tarja vermelha e com olhar enviesado, como se evitasse a todo o momento nos encarar, face a face, como se plantasse firme recusa em buscar nos nossos olhos o reflexo de seus olhos, se é que me faço entender. Em um mundo que não mais quer ser visto em duas dimensões e já exige que a realidade lhe seja apresentada em terceira dimensão, chega a ser primária a construção da capa da candidata, com seu ranço de passado qual foto envelhecida que é rejuvenescida a toque de caixa. E que contraste com a do candidato em atitude beirando a beatitude em momento em que, pareceu-me, todos os astros estavam em conjunção para parir aquele mágico clique.


O jogo, a árvore e o livro da vida


Que diferença da construção imagética de Veja para o candidato Serra, olhos nos olhos, suavidade, mão milimetricamente posicionada para transmitir segurança, serenidade, proteção ancorando esse cativante sorriso, largo e confiante. Dilma Rousseff não teve que passar as agruras da pensadora que deita platitudes sobre a arte de bem governar. Dilma não desce do Monte Sinai com as tábuas da lei, com seu decálogo para os próximos quatro anos da vida institucional brasileira. Ao contrário, ela é convocada a responder 10 perguntas. Seco assim. O candidato é recepcionado com o vistoso ‘Decálogo para o bom governante’, enquanto a candidata é intimada a responder ’10 perguntas para Dilma Rousseff’. Simples assim.


Para interpretar o mundo é preciso seguir a advertência e conselho dos velhos profetas do Antigo testamento. Há que se ter olhos para ver e ouvidos para ouvir. Podemos olhar a capa e não ver o que ela está passando, mas algo em nossos sentidos a retém e não é à toa que existem ramos da ciência para o estudo de mensagens subliminares. Nos casos que aqui evoco nada há de subliminar. Tudo é claro como o sol a pino.


Não podemos, portanto, abrir mão de discutir, com a família, no ambiente escolar e também no ambiente onde exercemos nossa profissão, o fenômeno da mídia, especialmente a televisão, mas sem descartar a imprensa escrita (jornais, revistas) para, a partir dela, tentar compreender criticamente o mundo. Há que se ler o mundo – também – a partir dos olhares dos outros, mas para isso é fundamental que os leitores aprendam antes a ler o mundo em que vivem por meio da construção de suas próprias narrativas. Só assim será possível a construção do conhecimento, a transformação do leitor em sujeito de sua própria história. A aquisição do pensamento crítico é resultado da inserção e percepção direta do indivíduo como agente mobilizador na sua realidade.


E, caso falhemos nisso, incorreremos na grave falha apontada por Fernando Pessoa, quando ‘o jogo de nossa vida não terá sido jogado’ – e, acrescento mais, nem a árvore de nossa vida terá produzido seus frutos e muito menos o livro de nossa vida terá sido escrito.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter