Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A história da mídia colombiana e o conflito de interesses

Guillermo Cano, editor de El Espectador, o mais antigo jornal da Colômbia, foi assassinado no dia 17 de dezembro de 1986 quando saída do trabalho. Três anos depois, uma bomba do cartel de Medellín explodiu os escritórios do jornal, em Bogotá, no que se imagina que tenha sido uma última represália contra as constantes denúncias de El Espectador sobre gangues da droga. “O país vivia numa ditadura de medo”, relembra Enrique Santos, na época colunista e coproprietário de El Tiempo, o principal concorrente de El Espectador. “Mas o assassinato de Cano também foi um momento decisivo – nós sabíamos que tínhamos que fazer alguma coisa.”

Essa coisa foi o “Kremlin”, um agrupamento secreto dos principais jornalistas do país que juntaram seu trabalho investigativo e coordenaram a publicação simultânea de reportagens anônimas pela mídia de todo o país. “Graças a Deus que esses dias se acabaram”, relembra María Jimena Duzán, coordenadora do El Espectador no “Kremlin” naquela época.

E acabaram mesmo. Na época, a Colômbia estava à beira de um aparente colapso. Menos de 30 anos depois, o país é uma potência econômica emergente – uma transformação notável refletida na imprensa e nos últimos desafios que enfrenta.

É revelador que um dos assuntos mais discutidos no jornalismo colombiano de hoje é menos a questão da sobrevivência do que como administrar os conflitos de interesse que vêm acompanhando a prosperidade recém-descoberta. Entre os cinco colombianos que figuram na lista dos bilionários globais da revista Forbes, os três mais ricos controlam os maiores grupos de mídia do país.

Luis Carlos Sarmiento, que tem uma fortuna de 14 bilhões de dólares (cerca de R$ 30 bilhões), segundo a Forbes, comprou El Tiempo, o jornal de maior circulação da Colômbia. Alejandro Santo Domingo, com 12 bilhões de dólares (cerca de R$ 25 bilhões), é dono de El Espectador, o segundo maior jornal, e da TV Caracol, uma das duas emissoras privadas da Colômbia, que tem acordos de produção com a Univision, dos Estados Unidos, e a Televisa, do México. E Carlos Ardila, com 5 bilhões (cerca de R$ 5,3 bilhões), é dono da emissora de televisão e rádio RCN, a outra rede privada nacional, que tem uma empresa conjunta de capital misto com a News Corp. nos Estados Unidos e lançou, originalmente, o seriado Betty, a Feia.

Num panorama americano, este padrão de propriedade é parecido com o da família Murdoch, que além de controlar a News Corp. também é dona de um conglomerado como a General Electric. A própria ideia parece antiética, se comparada à longa história de jornalismo da Colômbia, que alimentou alguns talentos formidáveis – do prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez, que começou a carreira como repórter, ao editor assassinado de El Espectador, cujo nome é atualmente reverenciado pelo Prêmio de Liberdade de Imprensa Mundial Guillermo Cano, da Unesco.

“Estou muito otimista quanto ao país”, diz María Jimena Duzán. “Tenho menos certeza quanto à imprensa.” Tradicionalmente, a imprensa colombiana sempre foi controlada por famílias da elite que usavam seus princípios liberais como trunfo e, durante décadas, circularam pelo establishment político. A família Santos, proprietária de El Tiempo de 1913 a 2007, é o exemplo mais conhecido. Eduardo Santos foi presidente do país de 1938 a 1942, enquanto Juan Manuel Santos, seu sobrinho-neto, é o atual presidente. Mas a família Santos não é o único clã colombiano com um eixo político-jornalístico.

Dinastias duradouras

Andrés Pastrana, que foi presidente da Colômbia de 1998 a 2002, começou a carreira como jornalista. O irmão de Ernesto Samper, presidente de 1994 a 1998, é Daniel Samper Pizano, um dos colunistas mais famosos do país. Felipe López, publisher da revista Semana, um dos semanários mais críticos da América Latina, é filho de um ex-presidente e neto de outro. O editor de Semana, Alejandro Santos, é sobrinho do atual presidente.

“Nem na África você encontraria este tipo de relação incestuosa!”, exclama o ex-vice-presidente Francisco Santos, também ex-jornalista e que é primo do atual presidente, assim como um de seus críticos mais ferozes – a Colômbia continua sendo um país de contradições e surpresas.

Para algumas pessoas, essas dinastias familiares são um símbolo de um país paradoxal: com a mais longa história de democracia do continente, também tem algumas das elites mais duradouras. No entanto, as recentes mudanças de propriedade na indústria da mídia da Colômbia, que ganha 1,5 bilhão de dólares (cerca de R$ 3,2 bilhões) por ano com a receita publicitária, sugerem que as “elites” do país – uma palavra problemática, pois implica precisão – estão numa mudança contínua e que estas mudanças, embora representem um sinal bem-vindo de mobilidade social, trouxeram novos desafios, principalmente conflitos de interesse.

É verdade que conflitos em potencial não faltam aos novos barões da mídia da Colômbia. Sarmiento é bilionário que se consolidou de seus próprios esforços e cujo Grupo Aval é um conglomerado financeiro com interesses nos crescentes setores de seguros, de bancos, de pensões e de infraestrutura.

Cronologia

Início da década de 1980: Guillermo Cano, editor de El Espectador, lidera ataques aos cartéis de drogas nas colunas e editoriais de seu jornal.

1986: Cano é assassinado em Bogotá por atiradores que obedecem a Pablo Escobar, o famoso líder do cartel de drogas de Medellín.

1989: O cartel de Medellín detona uma bomba do lado de fora dos escritórios de El Espectador. Os jornalistas criam o grupo “Kremlin” para publicar matérias investigativas.

1997: Julio Santo Domingo, cujo grupo de propriedade familiar respondia por 4% do Produto Nacional Bruto do país, compra El Espectador.

2012: Luis Carlos Sarmiento, o homem mais rico da Colômbia, compra El Tiempo, o jornal mais vendido no país, da editora espanhola Planeta.

Santo Domingo chefia o grupo industrial Valorem, que tem interesses em madeira, transporte e cerveja (via a SABMiller, sua holding com sede em Londres que comprou em 2005 a companhia de cerveja da família Santo Domingo, a Bavaria, por 6 bilhões de dólares (cerca de R$ 13 bilhões). E finalmente, Ardila, um empresário que se casou com um negócio de refrigerantes e comidas e cujos outros interesses incluem têxteis, assessórios automobilísticos e o time de futebol Atlético Nacional, de Medellín.

Para se assegurarem, esses magnatas muitas vezes enfatizam seus interesses filantrópicos e patrióticos em ser proprietários de empresas de mídia, embora sua potencial utilidade não possa ser ignorada. Julio Santo Domingo, que morreu em 2011, dizia que ser dono de El Espectador era como “ter uma pistola no bolso: você não quer usá-la, mas é bom tê-la à mão porque nunca se sabe…”. Ele comprou o jornal em 1997, em grande parte para evitar que fosse à falência. “Ele gostava do fato de que El Espectador às vezes mexia com os interesses de amigos seus”, diz um velho amigo seu de negócios. “Divertia-se com isso nos coquetéis.”

Alejandro, filho de Santo Domingo, continua a apoiar financeiramente o jornal. Com uma leitura diária que arrecada 240 mil dólares (cerca de R$ 490 mil), o jornal circula no vermelho, embora espere equilibrar-se no ano que vem. É um jornal que reconhecidamente faz um jornalismo liberal e é muito procurado por estudantes.

Luis Sarmiento Jr., cujo pai comprou El Tiempo após problemas de ordem financeira, sugeriu à editora Planeta que vendesse o jornal em 2012, depois de comprá-lo em 2007, e foi mais explícito. El Tiempo, que tem mais de um milhão de leitores, é lucrativo e tem um próspero negócio de classificados. “Alguém tem que ser dono de El Tiempo. Mas quem pode ser dono do jornal sem ter conflitos de interesse e também muito dinheiro? São entidades que não existem”, declarou ele ao Financial Times pouco depois de fechar o acordo de compra. “Teremos que administrar esses conflitos de interesses como as outras pessoas. Além do mais, há um motivo altruísta, como meu pai lhe explicará.”

Bilionários comprando jornais é, com certeza, sinal dos tempos. No mundo desenvolvido, muitos jornais em dificuldades esperaram pela ajuda de um bilionário com mentalidade filantrópica. Mas na Colômbia, onde o estágio corporativo é menor e a riqueza mais concentrada, o drama é mais novo e, talvez por isso, sentido de maneira mais intensa.

O tema levantou questões sobre qual o melhor modelo de propriedade para o jornalismo – corporativo ou familiar? Numa corporação, se a empresa anunciar no jornal de que é proprietária, seria uma subvenção cruzada? E, caso isso acontecesse, como seriam evitados os conflitos de interesses?

El Espectador, que tem um acordo de reprodução com o Financial Times, publica frequentemente desmentidos quando se trata de reportagens sobre um negócio de Santo Domingo. “É uma política do jornal”, diz Fidel Cano, editor de El Espectador e sobrinho de Guillermo Cano – um sinal de continuidade editorial sob os novos proprietários.

El Tiempo, no entanto, ainda parece estar trabalhando num sistema de divulgação, segundo dizem seus repórteres. Roberto Pombo, diretor de El Tiempo, ressente-se com a ideia de que isso possa comprometer a independência editorial e enfatiza que “nossos colunistas podem escrever o que quiserem – como sempre puderam”. Entretanto, para os adeptos de teorias conspiratórias – que abundam, na Colômbia – a situação está madura para o abuso. Para eles, os poderosos proprietários corporativos da “Nova Colômbia”, que substituíram as poderosas famílias políticas da “Velha Colômbia”, sugerem um país escravizado pelo poder e seus interesses entrincheirados.

Controvérsia crítica

Um recente incidente, tumultuado, envolveu Daniel Pardo, jornalista independente (cujo pais é um ex-ministro de Relações Exteriores). Pardo perdeu seu emprego no portal KienyKe, na internet, depois de ter publicado um texto crítico sobre a empresa de petróleo canadense-colombiana Pacific Rubiales, que comprou espaço para publicidade na mídia do país. Os porquês do caso Pardo são questionáveis, embora María Jimena Duzán tenha comentado em sua coluna na Semana: “Sua saída confirmou uma coisa que já sabíamos: nos veículos em que não existe uma linha nítida dividindo informação, opinião e publicidade, a liberdade de expressão é um mero sofisma.”

No entanto, os jornalistas continuam a expor a corrupção e os escândalos. Por exemplo, inúmeros políticos estão sob investigação por supostos vínculos com grupos paramilitares. O trabalho dos jornalistas continua tornando-os alvos da violência. Em maio, Ricardo Calderón, editor da revista Semana, escapou de uma aparente tentativa de assassinato, perto de Bogotá. E o governo advertiu que existem outros complôs.

Se a necessidade de receita publicitária cria um tipo de autocensura, este também é distante daquele que existe em outros países da América Latina, onde governos controlam com uma chave-mestra os orçamentos publicitários das empresas estatais. No fina, o resultado é uma forma híbrida tipicamente colombiana – que talvez não devesse funcionar, mas funciona. “Sim, a principal mídia da Colômbia pertence às pessoas mais poderosas do país, sejam elas econômicas ou políticas. Mas é difícil perceber como elas afetam a independência da mídia”, diz Jaime Abello, diretor da Fundação do Novo Jornalismo Ibero-Americano – FNPI, uma entidade independente fundada por García Márquez. “Sempre houve uma relação bastante próxima entre o poder e a imprensa neste país, mas ao mesmo tempo também há independência, espaço e uma certa distância crítica.”

De alguma forma, os problemas do panorama da mídia colombiana refletem o sucesso mais amplo do próprio país. O fato de enfrentar o mesmo tipo de conflitos e pressões que a imprensa enfrenta por quase toda parte é um sinal da crescente abertura, globalização, prosperidade e concentração da economia da Colômbia. “A revolução mais poderosa não foram as mudanças de proprietários, mas a ascensão do consumo e a internet”, diz Abello.

Esse é um conflito que os publishers do mundo todo até hoje não descobriram como vencer decididamente, inclusive aqueles intrépidos jornalistas do “Kremlin” que enfrentaram os barões da droga.

A outra mídia da Colômbia

Como navegar pela mídia colombiana? Além de El Tiempo, que tem uma excelente edição impressa, e El Espectador, que tem um website de primeira categoria, existem os jornais regionais de propriedade de famílias. A vigorosa saúde de jornais como El País, em Cali, El Colombiano, em Medellín, e El Nuevo Heraldo, em Barranquilla, com circulações em torno de 200 mil cada um, garante a pluralidade de mídia num país que é sempre rico em matéria de notícias. Para uma análise nítida – e, para muitos, indispensável – das notícias semanais, há a Semana, uma revista com um estilo de reportagem baseado nos semanários Time e The Economist. Agora em seu 30º ano, Semana treinou muitos dos melhores jornalistas da Colômbia.

Além das estações de rádio animadas, como a Blu, relativamente novata nas ondas de Bogotá, existem novas emissoras, ágeis e minuciosas, que buscam notícias de última hora e temas políticos – com muito maior profundidade do que na televisão, onde programas de análise da informação costumam passar de noite, mais tarde.

O site mais importante é La Silla Vacía, apresentado por Juanita León, ex-jornalista de Semana. Fundado em 2009, o site publica textos investigativos, tem cerca de 300 mil usuários únicos, é bastante lido por formadores de opinião e formuladores de políticas e consegue cobrir os custos, ainda que isto se deva em grande parte à ajuda de agências como a Fundação Ford. “O lado comercial foi mais difícil do que eu pensava”, reconhece Juanita León. Para os viciados em informação, há outros sites como o razonpublica.com, que tende para ensaios pesados, e o kienyke.com, que mistura moda com política, numa combinação mais leve.

E finalmente há as redes sociais – principalmente o Twitter. Muito usado pelo ex-presidente Álvaro Uribe, um influente ilusionista com mais de 2 milhões de seguidores, ele desfecha diariamente ataques virulentos às políticas de seu ex-protegido Juan Manuel Santos. Um tema comum ao hiperativo Uribe é um lamento sobre como a segurança na país piorou desde que ele deixou de ser presidente.

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John Paul Rathbone é editor do Financial Times