Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As vozes e versões silenciadas

A imprensa, em especial a baiana, tem realizado uma extensa cobertura sobre o que os jornalistas estão chamando de ‘crise na cultura’ da Bahia. O assunto também já foi alvo de reportagens publicadas em jornais do sudeste do país e no domingo, 14/10, circulou em vários periódicos em função de uma crônica do escritor João Ubaldo Ribeiro. Na semana anterior, em entrevistas, ele qualificou de ‘crime’ a falta de repasse de verbas para a Fundação Jorge Amado, que poderia ter seu acervo transferido para uma universidade estrangeira. Se, por um lado, o fato de a cultura ter ingressado na agenda da imprensa é positivo, falta oferecer à sociedade um leque mais amplo de explicações sobre a temática em questão.

Se a cobertura ou o espaço concedido para os artigos não aprofundar a discussão, muitos ficarão sem entender a complexidade da tal ‘crise’ e sequer poderão julgar os dirigentes da cultura e seus ‘cururus’, forma pejorativa pela qual o jornalista e ator Gideon Rosa chamou, em artigo publicado no jornal A Tarde, o ‘bando alçado à condição de especialistas em Cultura’ que, segundo ele, raramente freqüentam as ‘nossas platéias’. Pelo raciocínio, basta freqüentar as platéias para ganhar o título de especialista em cultura. Trata-se de apenas mais um exemplo de como determinadas pessoas explicaram de forma simplória e equivocada a tal ‘crise’ para a sociedade.

Para Rosa, a ‘crise’ também poderia ser explicada como uma estratégia de jogar os artistas do interior contra os da capital. O reflexo seria a criação de um programa semelhante ao Bolsa Família na área da cultura. O governo estadual chama a estratégia de descentralização dos recursos. O governo carlista destinava quase a totalidade do dinheiro para a capital. Outras formas utilizadas para explicar a ‘crise’ foram oferecidas pela diretora de teatro Aninha Franco. Inicialmente, ela disse que fechou o Teatro XVIII porque era contra a política cultural do governo. Logo depois, precisou mudar a sua explicação quando a imprensa ficou sabendo, via governo, que uma nota de 20 mil reais, de uma agropecuária, foi apresentada indevidamente em uma prestação de contas de verbas públicas.

Interior e capital

João Ubaldo Ribeiro, por sua vez, qualificou de ‘crime’ a falta de repasse de verbas para a Fundação Jorge Amado. Enquanto isso, o governo alega estar apenas cumprindo a lei que, segundo interpretação dos procuradores estaduais, impede a concessão de recursos públicos para o pagamento de todas as despesas de uma fundação. A pergunta é: quais das explicações foram mais enfatizadas pela imprensa? Estamos assistindo a uma disputa de poder e o jornalismo vem sendo usado praticamente apenas pelos opositores do governo. Enquanto isso, os beneficiados pela nova política cultural estão calados. Por que?

Os mais apressados culpariam os jornalistas. Embora seja visível o uso político que os meios de comunicação de propriedade da família de Antônio Carlos Magalhães estejam fazendo da situação, acredito que existem várias outras razões para tamanho silêncio. Uma delas pode estar relacionada com a cultura profissional dos nossos jornalistas dos cadernos de cultura que, durante anos e anos, cultivaram as mesmas fontes. Hoje, as fontes costumeiras secaram e outras precisam ser ouvidas. O que sabemos sobre o que está acontecendo no interior do estado na área da cultura? Os jornais possuem estrutura e vontade de cobrir o interior? O que dizem as centenas de pessoas que pagaram R$ 0,50 para ver um espetáculo no Teatro Castro Alves em uma manhã de domingo graças a um projeto do governo para democratizar o acesso à principal sala de espetáculos da capital? O que sabem os leitores dos jornais sobre estas questões? Pouco, quase nada.

‘Aos amigos, tudo, aos inimigos, nada’

A cobertura e o debate sobre a tal ‘crise na cultura’ precisam oferecer à sociedade uma variedade mais ampla de explicações para a problemática. Nos estudos acadêmicos sobre comunicação e política, os pesquisadores enfatizam que qualquer disputa de poder em torno de temas de interesse público passa, necessariamente, por duas instâncias. Primeiro, o político necessita que o seu assunto esteja incluído nas preocupações da sociedade e, por isso, o tema precisa estar na agenda da mídia. Mas apenas estar na agenda não basta. O político deve enfrentar uma segunda disputa e conseguir explicar o tema da maneira como ele deseja. Novamente, o jornalismo desempenha aqui um aspecto central, pois o modo como os jornalistas enquadram o tema em debate vai influenciar boa parte do público em geral e os interessados na questão em particular. É a partir deste enquadramento que as pessoas formarão as suas opiniões sobre o tema em discussão.

Por enquanto, o governo do Estado e os ‘ideólogos da Nova Cultura’ estão perdendo a segunda batalha. Corremos o risco de desperdiçar a oportunidade de realmente modificar a política cultural do Estado, pois aqueles que estavam acostumados a abocanhar quase a totalidade das verbas estão conseguindo impor o seu enquadramento para a questão. Assim, podemos voltar a ter uma política em que cultura se reduz a patrocinar shows no Pelourinho ou de que é aceitável selecionar atores para uma companhia de teatro financiada pelo poder público sem a realização de audições públicas, esta sim a política de ‘aos amigos tudo, aos inimigos nada’. A pergunta que fica é: a ‘crise na cultura’ existe mesmo neste governo ou existia nos governos anteriores e ninguém percebia ou queria perceber?

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Professor universitário e pesquisador do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, da Facom/UFBA)