Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Coletânea resgata história da ditadura

O período entre a Campanha da Legalidade e o Golpe de 64, as experiências de repressão e resistência durante os ‘Anos de Chumbo’, a conexão repressiva da Operação Condor, o fim do regime militar e o processo de redemocratização são os temas abordados na coletânea A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): História e Memória. Os quatro livros, que reúnem 40 autores e têm prefácio do escritor Luis Fernando Verissimo, serão lançados na quarta-feira (27), às 19h, no Vestíbulo Nobre da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (Praça Marechal Deodoro, 101 – Porto Alegre), dentro da programação do Fórum Social Mundial 10 Anos.

No evento, que contará com a presença já confirmada de 30 autores, haverá homenagem póstuma ao jornalista João Aveline. Na ocasião ocorrerá, também, o lançamento no Rio Grande do Sul do relatório Direito à Memória e à Verdade, elaborado pela Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos Políticos. Às 20h30, acontecerá o Sarau Especial Vozes da Resistência pela Liberdade, no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa gaúcha. A entrada é franca, com a sugestão de doação de um quilo de alimento não perecível.

O projeto da coletânea A Ditadura de Segurança Nacional é coordenado pela Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan da Assembléia gaúcha e foi realizado em parceria com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A iniciativa surgiu a partir do evento que aconteceu em 31 de março e 1º de abril de 2009 na Casa, ocasião em que se lembraram os 45 anos do Golpe Civil-Militar. Os quatro livros estarão hospedados na Biblioteca Virtual da Assembleia Legislativa.

O presidente da Escola do Legislativo, deputado Adão Villaverde, afirma: ‘Esta obra resgata, com uma riqueza de abordagem inédita, a história recente do Brasil que, durante cerca de duas décadas, conviveu com o período de terror da ditadura, seguido pelo processo fundamental de reconstrução da democracia’.

A concepção

Participaram do evento que deu origem à obra os historiadores da UFRGS Carla Simone Rodeghero, Caroline Silveira Bauer, Claudia Wasserman e Enrique Serra Padrós, além da historiadora da Universidade de São Paulo (USP), Maria Aparecida de Aquino. ‘Após inúmeras reuniões e avaliações sobre o material à disposição, surgiu a idéia de uma coletânea de textos que pudesse apresentar ao público em geral uma visão panorâmica da diversidade de manifestações do que foi o embate político no Rio Grande do Sul, entre 1964 e 1985’, explica Vânia Barbosa, diretora da Escola do Legislativo e uma das organizadoras da obra.

O doutor Enrique Serra Padrós, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação de História da UFRGS adianta que uma das expectativas dos organizadores é de que este trabalho estimule a produção de outros registros de pesquisadores, de memórias e de trabalhos jornalísticos que, em conjunto, ‘permitam, num futuro não muito distante, fazer as grandes sínteses necessárias sobre a história recente’.

As origens do golpe

O Volume 1, intitulado Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964, traz o texto da professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, Claudia Wasserman, com uma análise aprofundada das contradições e disputas em curso na véspera do Golpe, com um panorama das lutas políticas em curso no país e, especialmente, no Rio Grande do Sul.

O deputado Raul Pont recua no tempo até a morte de Getúlio Vargas, em 1954, para analisar questões significativas para a compreensão do contexto que levou a 1964, como a Guerra Fria, o anticomunismo presente nos meios militares, as tentativas anteriores de golpe no Brasil e a falta de preparação, por parte da esquerda, para enfrentar o golpe. O texto do ex-prefeito de Porto Alegre leva o título de ‘Ausências e presenças da resistência na ditadura’.

No texto ‘Capitão, vamos trabalhar juntos?’ o coronel reformado da Brigada Militar Emílio Neme retrata a Campanha da Legalidade. Ele narra como se constituiu, dentro da brigada gaúcha, a rede de apoio que garantiu ao então governador Leonel Brizola as condições para resistir à tentativa de impedimento da posse de João Goulart, em 1961.

O publicitário e jornalista Sérgio Gonzalez, co-autor de Um brasileiro chamado Brizola: tempos de luta, apresenta no artigo ‘Grupos dos Onze: lembranças que contam a verdade histórica’ reflexões acerca da milícia de inspiração guerrilheira organizada em torno da figura de Leonel Brizola, a partir de 1963. A participação no grande comício na Central do Brasil, em março de 1964, é contada pelo jornalista Wladymir Ungaretti em ‘Meu primeiro comício’. Na época, ele iniciava sua militância no PCB. Ungaretti discorre sobre utopias, memórias de companheiros de militância e suas experiências.

O jornalista João Aveline participa da obra por meio de entrevista concedida meses antes de sua morte, em 2005, à pesquisadora Alessandra Gasparotto. Em ‘Memórias de um comunista’ ele fala sobre diferentes momentos de sua história, passando por sua trajetória política e ingresso no PCB, sua prisão e o posterior processo de abertura política. O texto do doutor em Psicologia Social Pedrinho Guareschi traz, em ‘Lições de 1964’, suas lembranças sobre o período e discute o que significa pensar no Golpe mais de 40 anos depois.

O neto de Jango, Christopher Goulart, apresenta no texto ‘Sobre João Goulart’ considerações a respeito da biografia e da trajetória política de seu avô. Ele procura resgatar a história do presidente, debatendo detalhes de seu governo, sua postura de conciliação e o projeto reformista que foi derrotado em 1964. Encerrando o volume, o jornalista Luiz Cláudio Cunha escreve, em ‘Máximas e mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964’, sobre o papel desempenhado por setores da grande imprensa no processo que levou ao Golpe de 1964. Cunha também ressalta o envolvimento de jornalistas e intelectuais nas campanhas patrocinadas pelo complexo IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática), visando manipular a opinião pública contra Jango.

A memória da violência

O Volume 2, Repressão e Resistência nos Anos de Chumbo, inicia-se com artigo do historiador e deputado estadual Raul Carrion, ‘A ditadura não foi uma criação de `homens maus´’, no qual ele traça um panorama da ditadura brasileira, desde sua implantação até seu término. O autor centra a análise na institucionalização da repressão e nos protagonistas da resistência ao governo imposto, mostrando que a ditadura foi instituída para manter a dominação econômica e sufocar as mobilizações sociais.

‘A igreja dos pobres’ traz reflexões do irmão Antônio Cechin sobre o papel dos setores progressistas da Igreja no Brasil durante a ditadura. Em seu depoimento, ele conta sua participação na Conferência de Medellín, em 1968, seu envolvimento com a educação – quando passou a ser considerado ‘subversivo’ –, suas duas prisões e seu trabalho com as comunidades populares. O músico e compositor gaúcho Raul Ellwanger fala do cenário cultural e musical no sul durante os ‘Anos de Chumbo’. Clandestinidade, enquadramento na Lei de Segurança Nacional e exílio estão presentes no texto do autor, intitulado ‘A milonga dos vencidos’.

Em ‘Losada, não olhe para trás’, o sindicalista Antônio Losada explica porque não esqueceu o passado. O autor reflete sobre sua militância na luta armada, considerada por ele a única via possível de resistência naquele momento. Ele e seu irmão José foram os últimos presos políticos a serem libertados no Rio Grande do Sul, em junho de 1979.

O papel da Justiça na resistência à ditadura é analisado pelo pesquisador Dante Guimaraens Guazzelli através da trajetória profissional e política de um o advogado, no artigo ‘Entre o Estado e a oposição: a atuação de Eloar Guazzelli como advogado de presos políticos (1964-1979)’. Conhecido como combatente dos direitos humanos, Eloar Guazzelli foi quem mais defendeu os perseguidos políticos no Rio Grande do Sul.

‘Na guerra com batom’, de Ignez Maria Serpa Ramminger, traz a narrativa dos sonhos e esperanças de uma geração e de como a ditadura tentou quebrá-los. Integrante da VAR-Palmares, Martinha – codinome de Ignez – integrou-se à luta armada no Rio Grande do Sul. Presa pelos órgãos repressivos depois da fracassada tentativa de sequestro do cônsul norte-americano em Porto Alegre, Martinha foi levada para o DOPS e submetida a inúmeras sessões de tortura.

Carlos Alberto Tejera De Ré mescla, em seu depoimento, histórias familiares e acontecimentos políticos, contextualizando fatos históricos. Ele passa pelo movimento estudantil até a luta armada na VPR. Em ‘Você sabe bem o que está fazendo, filho?’, De Ré demonstra a utilização da violência como um dos fatores primordiais da ditadura e revela a resistência daquela geração nos ‘Anos de Chumbo’.

‘Lembrar, lembrar, lembrar… 45 anos do golpe militar: resgatar o passado para transformar o presente’ é o texto de Suzana Keniger Lisbôa, integrante da Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos. A autora passa por temas como o funcionamento dos órgãos de repressão, as torturas e a luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos. É uma história em busca da verdade, do não-esquecimento, da justiça e do fim da impunidade.

O terror de Estado

Conexão Repressiva e Operação Condor é o título do Volume 3 da coleção. No texto ‘Conexão repressiva internacional: o Rio Grande do Sul e o Brasil na rota do Condor’, o doutor em História Enrique Serra Padrós apresenta informações sobre a colaboração regional dos sistemas de segurança no Cone Sul. O avanço de regimes autoritários, assentados principalmente na Doutrina de Segurança Nacional, anuncia a confluência de interesses que amadureceram as condições históricas para a deflagração da Operação Condor, a partir de 1975.

O economista Ubiratan de Souza relata sua trajetória estudantil e seu envolvimento com a VPR. Em ‘O povo deve contar sua própria história’, fala da guerrilha do Vale da Ribeira e do momento em que foi trocado, junto com mais 69 presos políticos, pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher seqüestrado pela guerrilha.

No depoimento que deu origem a ‘Trajetórias’, o sociólogo e ex-deputado estadual Flavio Koutzii desenha as raízes do golpe de 64, conecta o início das organizações operárias com as reformas de base, a Revolução Cubana e a tradição conspiradora da direita brasileira. Koutzii relata suas experiências em partidos de esquerda – PCB, POC e PRT-ERP –, fala de seu cativeiro na Argentina, a sobrevivência, o exílio e o retorno ao Brasil.

O artigo de Cláudio Gutiérrez, ‘O fim das fronteiras policiais entre Brasil e Uruguai’, trata do grau de colaboracionismo entre a ditadura brasileira e o governo ainda constitucional de Pacheco Areco. Exilado em Montevidéu desde 1969, descortina um passado de perseguição e sequestro de cidadãos brasileiros com os quais dividiu horas de infortúnio.

Ex-guerrilheira do movimento guerrilheiro uruguaio Tupamaro, a brasileira Flávia Schilling propõe, em ‘Memória da resistência ou a resistência como construção da memória’, uma reflexão acerca da questão de gênero, tanto dentro da organização a qual pertencia quanto diante da repressão. No artigo ‘Todo está cargado en la memória’, o historiador uruguaio Universindo Rodríguez Díaz oferece um rico painel dos acontecimentos vivenciados por ele, como protagonista central do chamado ‘Seqüestro dos Uruguaios’ em Porto Alegre, em 1978. Analisa as condições políticas no Brasil da década de 70, quando sua organização política decidiu criar uma base de atuação mais próxima da fronteira uruguaia. Universindo fala da experiência de ter sido seqüestrado pela Operação Condor, na capital gaúcha, e de ter conseguido sobreviver, junto com Lilián Celiberti e os dois filhos dela.

O pesquisador Ramiro José Reis centra o texto ‘Lilián, Camilo e Francesca Celiberti: uma família uruguaia na mira do Condor em Porto Alegre’ na dimensão do drama que envolve uma mãe que deve proteger seus filhos em condições tão adversas. O artigo recupera a iniciativa de Lilián em estabelecer uma estratégia para alertar companheiros da sua organização, para denunciar o sequestro e tornar público de que era vítima em Porto Alegre de uma ação repressiva que militares uruguaios faziam habitualmente em Buenos Aires. Em ‘O sequestro de Montoneros no Brasil’, o jornalista e historiador Nilson Mariano apresenta a trajetória dos cidadãos argentinos desaparecidos em território brasileiro, vítimas de práticas de colaboração entre ditaduras. O artigo traz a história de pessoas desaparecidas por um duplo terrorismo de Estado: o brasileiro e o argentino.

A pesquisadora Carolina Silveira Bauer debate a polêmica sobre a morte do ex-presidente João Goulart. No texto ‘De Jango, de Silvio Tendler, aos dias de hoje: uma atualização do debate sobre a morte o ex-presidente João Goulart’, ela parte da análise do filme e reflete sobre as questões ainda sem resposta sobre o fim do político brasileiro ainda exilado na Argentina, expondo as incertezas que persistem há mais de 30 anos de sua morte.

Luz sobre a treva

O Volume 4, intitulado O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratização, é aberto pelo professor de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), José Carlos Moreira da Silva Filho. O autor trata da constituição de políticas de memória e de esquecimento em torno do período da ditadura no Brasil, discutindo o papel da Comissão de Anistia, no artigo ‘Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da comissão de anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade’. A professora de História da UFRGS Carla Simone Rodeghero apresenta discussões sobre o documentário Jango, de Silvio Tendler, analisando o contexto de lançamento da obra ao relacionar o momento do Golpe de 1964 e o ano de lançamento do filme, 1984. Ela mostra, ainda, no texto ‘O documentário Jango, de Silvio Tendler, e a crença no poder do povo na rua’, de que forma as leituras sobre Jango e seu governo se modificaram ao longo do tempo.

Em ‘Movimento Feminino Pela Anistia no Rio Grande do Sul’, a socióloga Lícia Peres apresenta os diferentes personagens e cenários da luta pela Anistia no Rio Grande do Sul e no Brasil. Ex-presidente do Movimento Feminino pela Anistia/RS, a autora conta sobre o processo de formação dos comitês pela Anistia e as dificuldades de atuação de tais movimentos. Deputado federal pelo MDB/PMDB por três legislaturas (1975/1987) e vice-governador entre 1991 e 1994, João Gilberto Lucas Coelho expõe algumas reflexões sobre o precário caminho da redemocratrização. O texto ‘Depoimento sobre o tortuoso processo de abertura política’ traz elementos para pensar a experiência do MDB que, lembra ele, acabou se tornando um dos principais veículos de manifestações contra o regime.

A trajetória do movimento estudantil e da UNE é lembrada pelo deputado Adão Villaverde no texto ‘Resgate histórico e afirmação do movimento estudantil’. O diretor teatral Paulo Flores traz, no depoimento ‘A tribo da resistência’, elementos da cena política e cultural gaúcha no final dos anos 1970 e início dos 1980. Ele mostra um pouco do que significava ser jovem naquele momento e quanto a arte podia ser subversiva aos olhos do regime. A aproximação de um grupo de atores com a preocupação de fundir arte e política é citada pelo exemplo do combativo grupo teatral Oi Nóis Aqui Traveiz.

O jornalista Rafael Guimaraens narra, em ‘A paranoia do emissário’, sua experiência como integrante do Coojornal, o mensário da Cooperativa dos Jornalistas. Reportagens marcantes e episódios que mostram tentativas de controle sobre a imprensa alternativa daqueles anos de ditadura estão presentes no artigo. O ex-governador Olívio Dutra aponta, em ‘O renascimento da luta sindical: a greve dos bancários de Porto Alegre’ fragmentos de sua trajetória pessoal e política ao lembrar a atuação do Sindicato dos Bancários. O depoimento ajuda a compreender o complexo processo de ressurgimento do movimento sindical no final da década de 1970, um momento ainda marcado pela repressão e pela incerteza.

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Prefácio

Luis Fernando Verissimo (*)

A História, segundo um surrado e cínico adágio, é sempre a versão dos vencedores. Uma mentira oficial se instala e se institucionaliza e com o tempo vira verdade. Mas o tempo nem sempre colabora. Com o tempo vem a resignação e a opção por não turvar águas passadas ou reabrir velhas feridas – mas também vem a distância necessária para reexaminar mentiras estabelecidas. O tempo perdoa ou condena, confirma ou desmente. O tempo traz o esquecimento – ou aguça a memória. E nada ameaça mais a versão dos vencedores do que memórias aguçadas.

Depois do fim do regime militar instaurado em 1964 vivemos, no Brasil, num curioso estado de faz-de-conta, exemplificado pela anistia geral dada a vencidos e vencedores. Buscava-se um ‘desarmamento dos espíritos’ (frase muito usada na época, mas inadequada: não foram exatamente espíritos armados que nos dominaram durante 20 anos), mas o verdadeiro objetivo era fingir que nada tinha acontecido. Assim os militares voltaram para as casernas sem remorso ou desculpas, os civis que os apoiaram continuaram suas carreiras políticas sem atos de contrição, as vítimas sobreviventes do regime refizeram suas vidas e – a idéia era esta – não se falava mais nisso.

Mas havia as memórias. Durante estes últimos anos o país conviveu com duas histórias, a oficial, a do deixa-pra-lá, e a da memória das pessoas. Com o tempo este desencontro se agravou. A memória aguçada – assim como a cobrança dos que reivindicam a verdade apenas para saber onde alguém foi enterrado – exige o fim do faz-de-conta.

E afinal, mesmo aceitando-se a realidade de que são os vencedores que contam a história, a exigência não muda. O fim do regime militar foi uma vitória de uma democracia imperfeita e até agora não consolidada, mas democracia.

O que se quer é a versão democrática da história do Brasil.

(*) Jornalista e escritor

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Respectivamente, jornalista, historiador, jornalista e historiadora