Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Dissonâncias conceituais em nossa mídia

Matéria recém-publicada pela Agência Estado (AE) – ‘Guia mostra 273 espécies de pássaros na metrópole’ – repetiu, já na manchete, um erro (grosseiro) comuníssimo entre nós: empregar a palavra ‘pássaro’, quando o correto seria ‘ave’. Uma chamada ilustrada, acompanhando a foto de uma ave de rapina, insistia no erro: ‘Pássaros colonizam a cidade’. Nas palavras do repórter:

‘Hoje, São Paulo abriga 273 espécies de pássaros, que podem ser vistos nos bairros e parques mais arborizados e nos arredores das reservas florestais. O bem-te-vi, o periquito e o sabiá-laranjeira são as espécies mais comuns.’

Há mais de um problema nesse parágrafo, mas vamos focar na questão inicial: o objetivo da matéria era chamar a atenção do leitor para a publicação de um guia das aves (e não só dos pássaros) encontradas na cidade de São Paulo. O título do livro? Simples: Guia de campo: Aves da Grande São Paulo. O repórter e/ou o editor, pelo jeito, brincaram com as palavras como se elas fossem sinônimos, e não são.

Jornalistas não gostam de ser criticados ou corrigidos, muito menos em público, nem mesmo quando escrevem bobagens e erram. A situação torna-se particularmente irritante (do ponto de vista do jornalista) quando o puxão de orelha parte de um, digamos, ‘acadêmico’ – nesse caso, é comum ouvir do repórter que a matéria na qual ele está trabalhando não será lida apenas por especialistas e coisa & tal.

Em todo caso, é absolutamente incomum ver algum graúdo da mídia brasileira reconhecer e simplesmente pedir desculpas em público por erros (grosseiros) cometidos; ao contrário, há sempre uma desculpa esfarrapada para as maiores barbeiragens ditas ou escritas. (Na transmissão de eventos esportivos, então, a tragédia quase sempre vira comédia…) Como todos (ou quase todos) os profissionais agem assim, a verdade sobre os fatos, inclusive em torno das questões mais polêmicas, torna-se apenas o resultado de uma disputa na base do grito: a ‘verdade’ é o berro de quem grita mais alto, em meio a uma gritaria generalizada. Sem critérios ou parâmetros rigorosos, a coisa toda descamba; assim, dependendo do jornal ou da emissora, chegamos a ouvir versões e comentários diametralmente opostos para um mesmo evento.

No que segue abaixo, aproveito o gancho e listo 12 pares de termos que habitualmente são utilizados de modo inapropriado na mídia. (Alguns, inclusive, aparecem na referida matéria da AE.) Muitos desses erros e mal-entendidos, é bom que se diga, vão parar aonde não deviam: nas páginas de nossos livros didáticos de ciências e biologia.

A lista

1. Ambiente ou hábitat? Hábitat é um lugar no espaço, cujas dimensões podem ser estabelecidas em função de interesses arbitrários do observador e independentemente de um referencial biológico particular. Uma poça d’água, uma praia e uma floresta são exemplos de hábitats. Já a definição de ambiente só faz sentido em função de uma ou outra entidade biológica (um indivíduo, uma população, uma comunidade etc.) que sirva como referencial; o ambiente de um indivíduo, por exemplo, é o conjunto de elementos com os quais ele interage (co-específicos, inimigos naturais, presas etc.) ou que de algum modo o afetam (elementos físicos, como temperatura e água). Assim, embora centenas de milhares de organismos (co-específicos ou não) possam conviver num mesmo hábitat geral (um trecho de floresta, por exemplo), cada um deles tem seu próprio ambiente particular. [Para discussão mais detalhada, ver Lewontin, R. C. 2002. A tripla hélice. SP, Companhia das Letras.]

2. Ave ou pássaro? O primeiro é um nome que se aplica indistintamente a todos os integrantes da classe Aves (vertebrados de corpo coberto de penas), da qual faz parte a ordem Passeriformes, que são chamados de pássaros, passarinhos ou aves canoras. Cerca de metade das 9 mil espécies conhecidas de aves são pássaros. As aves de rapina (águias, caracarás, carrapateiros, falcões, gaviões, urubus) não são pássaros; a ave de rapina escolhida para ilustrar a referida chamada da AE pertence à ordem falconiformes. [Para um panorama geral das aves brasileiras, ver Sick, H. 1997. Ornitologia brasileira. RJ, Nova Fronteira.]

3. Biodiversidade ou natureza? Natureza pode ser definida como a totalidade de objetos físicos (vivos ou não) presentes no universo. Em sentido restrito, a palavra também tem sido empregada para qualificar objetos que não foram construídos ou afetados pela ação humana – quando então passariam a ser classificados como ‘artificiais’. Biodiversidade é um conceito bem mais restrito e localizado: refere-se ao conjunto de objetos vivos existentes no universo e, até onde sabemos, a Terra é o único lugar conhecido habitado por seres vivos – quer dizer, fora daqui, a biodiversidade do universo é igual a zero (ou quase isso). [Ao que tudo indica, as geringonças que americanos e europeus colocaram em Marte não vão alterar essa conclusão; elas servem mais como relações públicas.]

4. Bioma ou ecossistema? Biomas são as grandes ‘paisagens vivas’ existentes no planeta, definidas em geral de acordo com o tipo dominante de vegetação. A Caatinga, o Cerrado e a Floresta Atlântica são exemplos de biomas, não de ecossistemas. Ecossistema é um conceito mais funcional e diz respeito ao conjunto formado por uma comunidade ecológica e a matriz física (elementos do ar, solo e água) na qual a comunidade está inserida. Cada bioma abriga quantidades (a priori) desconhecidas de ecossistemas.

5. Camuflagem ou mimetismo? Em termos ópticos, coloração críptica ou camuflagem é quando o aspecto geral do corpo de um organismo se confunde com algum elemento do fundo, quer o fundo seja ou não um outro ser vivo. Exemplos: um gafanhoto que se confunde com folhas ou uma aranha que se confunde com a areia do chão. Mimetismo é quando o aspecto geral do corpo de um organismo (mímico) torna-o parecido com indivíduos de uma segunda espécie (modelo), a ponto de ambos serem confundidos por um determinado observador (digamos, uma ave predadora). Ao contrário da camuflagem, no mimetismo as espécies envolvidas interagem, havendo benefícios mútuos (mimetismo mülleriano) para as espécies envolvidas ou benefícios apenas para o mímico, com eventuais prejuízos para o modelo (mimetismo batesiano). No mimetismo mülleriano, duas ou mais espécies (co-mímicas), consideradas impalatáveis para um determinado elenco de predadores, convergem para um aspecto semelhante comum. No mimetismo batesiano, um mímico palatável imita (i.e., ‘parasita’) o aspecto de um modelo impalatável, ganhando assim uma certa proteção contra predadores ‘ingênuos’. Em tempo: mimetismo não é um fenômeno restrito ao mundo animal; há casos conhecidos de mimetismo entre flores, por exemplo. [Para outros detalhes, ver Ricklefs, R. E. 2003. A economia da natureza, 5ª edição. RJ, Guanabara Koogan.]

6. Cobra ou serpente? Serpente é o nome que se aplica indistintamente a todos os répteis integrantes da ordem serpentes (= ophidia), répteis escamosos desprovidos de patas funcionais. Em nosso idioma, a palavra ‘cobra’ deveria ser aplicada apenas a algumas serpentes asiáticas, particularmente espécies do gênero Naja. [Para detalhes, ver Amaral, A. 1978. Serpentes do Brasil. SP, Melhoramentos & Edusp; ver ainda Zug, G. R. 1993. Herpetology. San Diego, Academic Press.]

7. Comunidade ou sociedade? O termo comunidade tem uma história de uso bastante flexível na literatura ecológica, quase sempre para caracterizar um agrupamento de espécies que convivem em um mesmo lugar. Sociedade é um termo usado para caracterizar certos tipos de agrupamentos co-específicos. Formigueiros, colméias e vespeiros são exemplos de sociedades.

8. Conservação ou preservação? Enquanto alguns empreendimentos envolvem a conservação efetiva da biodiversidade, outros lidam apenas e tão-somente com a sua preservação. No primeiro caso, a preocupação é garantir a continuidade do processo evolutivo, no qual todas as populações naturais vivem mergulhadas; para alcançar esse objetivo, é preciso proteger comunidades ecológicas inteiras, como acontece, por exemplo, quando resguardamos amostras representativas de hábitats em reservas e parques. Já nas atividades de preservação, a preocupação está mais voltada para o bem-estar imediato de indivíduos ou grupos de indivíduos que estão vivendo fora de seu hábitat natural, como ocorre, por exemplo, em jardins botânicos, aquários, zôos e bancos genéticos, nos quais sementes, gametas e outros materiais biológicos podem ser estocados por períodos prolongados de tempo. No Brasil, a distinção que normalmente se faz entre conservação e preservação tem caráter mais ideológico do que propriamente biológico. Leva-se em conta, por exemplo, a presença ou o tipo de relação que populações humanas mantêm com o lugar, em geral sem preocupação explícita com as implicações evolutivas do empreendimento em questão. Assim, enquanto conservacionistas afirmam ser difícil compatibilizar a proteção integral da vida selvagem com a presença de populações humanas, preservacionistas dizem que questões ambientais e sociais estão definitivamente interligadas e são por isso mesmo indissociáveis. Neste sentido, biólogos e outros profissionais que trabalham no campo tendem a ser adeptos da conservação, enquanto administradores, políticos e outros profissionais de gabinete geralmente falam em favor da preservação. [Para outros detalhes, ver Costa, F. A. P. L. 2003. Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas. Juiz de Fora, Edição do Autor.]

9. Especiação ou evolução? Especiação é um processo de mudança evolutiva, por meio do qual uma espécie dá origem a outras espécies. Evolução envolve especiação, mas não se restringe a ela.

10. Peçonha ou veneno? Aranhas, escorpiões e serpentes são exemplos de animais peçonhentos, não de animais venenosos. Animais peçonhentos são capazes de inocular substâncias venenosas em outros seres vivos – por exemplo, substâncias paralisantes em suas presas. Diz-se que um organismo (planta, animal ou fungo) é venenoso quando partes do seu corpo contêm substâncias que provocam efeitos negativos (envenenamento ou intoxicação) em algum consumidor que tenta abocanhá-lo. Não existem plantas peçonhentas; comigo-ninguém-pode é um exemplo, ao lado de tantos outros representantes do reino vegetal, de uma planta venenosa ou tóxica. Em resumo: peçonha é inoculável, veneno é ingerível. [Para discussão detalhada, ver Amaral, A. 1976. Linguagem científica. SP, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo.]

11. População ou espécie? Uma definição popular entre os biólogos diz que ‘espécies são agrupamentos de populações naturais intercruzantes, reprodutivamente isoladas de outros grupos com as mesmas características’ [Mayr, E. 1978. Populações, espécies e evolução. SP, Cia. Editora Nacional & Edusp]. Populações são coleções de indivíduos de uma mesma espécie, que vivem temporariamente num mesmo lugar.

12. Selvagem ou silvestre? No nosso idioma, a palavra ‘selvagem’ tem uma história de uso mais ampla, no sentido de caracterizar espécies (não-domesticadas) que vivem em seu hábitat natural. O termo ‘silvestre’ está mais atrelado à sua origem etimológica, fazendo referência às espécies (vegetais ou animais) que vivem em hábitats florestais. Ouvimos com freqüência expressões do tipo ‘a onça é um animal silvestre’, por exemplo, mas dificilmente ouvimos algum dizer ‘a baleia é um animal silvestre’. A propósito, uma questão para pensar com o travesseiro: matar baleias (ou tartarugas marinhas, focas etc.) é um (triste) exemplo de caça ou de pesca?

Para encerrar, mais uma questão para pensar em casa: os genes que herdamos de nossos pais constituem nossa ‘carga genética’ ou nosso ‘patrimônio genético’ (= genótipo)? Pois na semana passada o uso inapropriado da expressão ‘carga genética’ apareceu aqui mesmo no OI – por ironia, justamente numa entrevista [ver remissão abaixo] que tratava de divulgação científica…

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Biólogo, autor do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)