Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Entre o plural e a pluralidade

A polêmica artificial em torno do livro didático Por uma vida melhor continua. Cada vez mais artificial.

Apesar de já terem surgido entrevistas e artigos esclarecedores, por vezes nos mesmos jornais e canais que abrigaram críticas apocalípticas, as caras de escândalo e os discursos em defesa do “bom português” reapareceram nesta última semana. Destaco dois exemplos.

Na revista Veja (1º/6/ 2011), entrevista com o professor Evanildo Bechara, membro da Academia Brasileira de Letras. De novo, pretende-se dar como certo que os autores do livro em questão cometeram o crime de ensinar aos alunos a falar e escrever de modo contrário à norma culta, com a intenção malévola de manter esses alunos na ignorância, impedindo-os de crescer humana e profissionalmente. Palavras de Bechara:

“Para conquistar um bom lugar no mercado de trabalho o pré-requisito principal é que elas [as pessoas] não saiam por aí dizendo ‘Nós pega o peixe’, versão ensinada no livro distribuído às escolas pelo Ministério da Educação.”

Pontos comuns

É provável que o eminente gramático, tanto quanto os humoristas do CQC que desceram a lenha na chamada “cartilha do MEC”, não tenha lido na íntegra o capítulo do livro em que se toca a questão da concordância entre palavras. O capítulo está disponível aqui, no site da Editora Global. Quem não teve tempo ou paciência para ler as 17 páginas das quais se retirou a frase do contexto, deveria fazê-lo agora para perceber com que seriedade e responsabilidade os autores abordaram o assunto.

Vejamos um trecho elucidativo:

“Na variedade popular […] é comum a concordância funcionar de outra forma. Há ocorrências como:

Nós pega o peixe.

“nós à1.ª pessoa, plural

“pega à3.ª pessoa, singular

Os menino pega o peixe.

“menino à3.ª pessoa, ideia de plural (por causa do “os”)

“pega à3.ª pessoa, singular

“Nos dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala.”

As duas variantes são a popular e a culta. No mesmo capítulo, explica-se que a norma culta deve, sim, ser ensinada na escola. Talvez o motivo pelo qual deva ser ensinada, segundo esses autores, incomode a quem discorda dos pressupostos da sociolinguística, ou a quem identifica no texto um “ranço ideológico de esquerda”. No entanto, está escrito ali, sem tirar nem pôr, que a norma culta deve ser ensinada, conhecida e praticada:

“Como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário.”

A norma culta é uma variante entre outras. É adequada em determinados momentos e lugares. Pode ser dispensável ou até inconveniente em outros lugares e momentos. Eis, em poucas palavras, o ensinamento linguístico presente no livro didático, ensinamento que tanto incomoda gramáticos como Bechara.

Na própria gramática normativa, no entanto, encontram-se sinais de flexibilidade. A distinção inegociável entre certo e errado pode dar lugar, por um instante, à aceitação de formas divergentes. No caso da concordância, para permanecermos no tema, os gramáticos compreendem a lógica interna de formas como “era tudo flores” e “eram tudo flores”, “passará o céu e a terra” e “passarão o céu e a terra” etc. Compreendem essas possibilidades e as abençoam com tranquilidade.

Sei que se trata de coisas diferentes, mas a intenção é mostrar que linguistas e gramáticos, variacionistas e normativistas podem encontrar pontos em comum, quando deparam com a realidade viva de um idioma.

A gramática extrapolada

O acadêmico Evanildo Bechara reage como normativista. Já o articulista do Estado de S.Paulo Carlos Alberto Di Franco reage como defensor da verdade absoluta, em seu artigo “MEC não quer ensinar” (30/05/2011). Sua visão/versão dos fatos é a seguinte:

“Recentemente, a imprensa noticiou que, para evitar discriminações, o Ministério da Educação (MEC) quer renunciar ao dever de ensinar. Por exemplo, entende que pode promover o preconceito a explicação em sala de aula de que a concordância entre artigo e substantivo é uma norma da língua portuguesa. Dessa forma, o MEC aconselha a relativizar. Segundo o Ministério, a expressão ‘os carro’ também seria correta. A sociedade, quando se deu conta do que o MEC estava propondo, foi unânime na sua indignação. Afinal, a oportunidade de aprender bem a sua língua deve ser um direito de todos.”

Di Franco evita a verdade, ou a distorce para fortalecer sua argumentação. Extrapola a questão gramatical, vendo relativismo moral onde o que há é consciência dos diferentes modos de falar. Induz o leitor a pensar que o MEC, a começar pelo ministro petista, acabará com a educação brasileira…

Replicando falas de “especialistas” da TV Globo como Alexandre Garcia, Di Franco não leu o capítulo do livro que pretendia criticar. E se porventura leu, não entendeu. Para ficarmos apenas com uma frase: “A sociedade […] foi unânime na sua indignação”. Na verdade, não houve unanimidade coisa nenhuma. Aliás, boa parte da sociedade (da sociedade real) sequer se comoveu com o assunto. O que tivemos foi a grita exagerada de uma “mídia diferenciada” que está pronta para atirar primeiro e perguntar depois. Ou nem perguntar. Para que perguntar?

Di Franco não quer saber das vozes que, com bom-senso, e baseadas na leitura do famoso capítulo, comunicaram a incômoda verdade – o livro Por uma vida melhor, destinado a turmas de educação de jovens e adultos (EJA), e não a alunos do ensino básico regular, é uma obra adequada e correta como tantas outras que existem, e foi selecionada (Di Franco não sabe ou omite essa outra verdade) por especialistas da área e não por funcionários do MEC.

Enumero alguns nomes que quebram a unanimidade inventada/desejada por Di Franco: na revista CartaCapital (25/05/2011), Maurício Dias; Eliane Brum para a Época, com um texto cheio de sensatez; Ataliba Castilho, que se define como um linguista-gramático, em entrevista esclarecedora; outra boa entrevista, concedida por Cesar Callegari, do Conselho Nacional de Educação, e, no Terra Magazine, o artigo do professor Sirio Possenti.

O fato é que a quase totalidade dos que criticaram o livro em nome da verdade, da educação, do bem e talvez até dos bons costumes, não o leram. Isso sim deveria escandalizar.