Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Escândalos, relevância, sobrenomes & interesse público

Entre os nomes que compõem as equipes que trabalham no caso SwissLeaks no Globo e no blog do jornalista Fernando Rodrigues, no UOL, este observador identificou dois sobrenomes no mínimo curiosos: Lupion e Berta. Há meio século, portadores dos mesmos sobrenomes estavam no noticiário ou nas colunas de fofocas mundanas em situações nem sempre confortáveis.

Moysés Lupion (1908-1991), governador do Paraná por duas vezes, mandou e desmandou no estado, meteu-se em tantas malfeitorias e mamatas eleitorais que foi cassado no primeiro Ato Institucional do regime militar. Um membro da família Lupion, Bruno, diligente repórter investigativo do UOL em Brasília, foi designado para participar da equipe liderada por Fernando Rodrigues para apurar o caso SwissLeaks. Poderia ser colocado sob suspeição em função dos malfeitos do eventual avô, tio-avô ou bisavô?

Rubem Martin Berta (1907-1966) foi o primeiro funcionário da Varig S.A., em 1927, e em 1942 assumiu a presidência da empresa transformando-a numa das mais importantes companhias de aviação do mundo, sinônimo de excelência em serviços. Pranteado e homenageado quando faleceu, virou nome de avenida, hospital, mas as fofocas grassavam sobre eventuais desmandos que acabaram por levar a empresa à decadência e ruína, três décadas depois. O jovem homônimo que trabalha na força-tarefa do Globo tem razões de sobra para se orgulhar do nome e sobrenome, mas descendentes de funcionários da falida Varig que perderam até suas aposentadorias podem desconfiar das matérias que assina. O que seria uma baita injustiça.

Os dois exemplos são absurdos, impertinentes, impróprios, imaginários, descabidos. Este observador penitencia-se pela exploração abusiva de seus nomes. Mesmo como expediente argumental puramente retórico.

Pressa e desvario

Na verdade estamos assistindo a uma encenação jornalística absurda, desatinada, claramente cínica, hipócrita, ardilosa. O SwissLeaks brasileiro beira a indecência. A lista publicada na segunda-feira (23/3) pelo Globo e pelo blog do UOL com celebridades do show-business misturadas a figuras emblemáticas de nossa cultura desmoraliza o jornalismo investigativo e o jornalismo como atividade com fé pública. Ambos estão na sarjeta.

Tom Jobim morreu há 10 anos, sua conta no HSBC está zerada. Jorge Amado e Zélia Gattai estão mortos há 14 e 7 anos, respectivamente. A conta dos falecidos e de seus herdeiros foi fechada em 2003, há 12 anos. Qual a intenção de enfiá-los no escândalo? Exibir imparcialidade, coragem, estoicismo?

Na entrevista da jornalista argentina Marina Walker Guevara, diretora-adjunta do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, publicada pelo Globo (domingo, 22/3, pág. 12), ela declara:

“Não interessa revelar a conta secreta de pessoas comuns, que são irrelevantes e não influenciam no destino do país nem na opinião. (…) O trabalho do repórter é justamente pegar essa base de dados [a lista dos correntistas] e aplicar sobre ela critérios de interesse público, avaliando que pessoas devem entrar em reportagens e que pessoas não precisam ser expostas” (ver íntegra aqui).

Antes, em 4 de março, a Folha de S.Paulo publicou um texto da mesma diretora da mesma entidade em termos ainda mais claros: “Fomos questionados por não publicarmos as listas completas. Mas somos jornalistas investigativos, não vazadores de dados, ou ativistas, ou um órgão governamental” (ver “Jornalismo e interesse público). Estaria querendo dizer que um eventual ilícito fiscal só interessa quando configura um ilícito legal? Neste caso, está desaprovando o trabalho dos seus parceiros brasileiros.

A mensagem de Marina Walker Guevara, da direção do ICIJ (na sigla em inglês), defende expressamente um “jornalismo lento”, exercido com responsabilidade e precisão, a serviço do interesse público, voltado para intervir em “esquemas sistêmicos”. A técnica da lama no ventilador adotada até agora aponta na direção oposta – pelo primarismo, pressa e desvario, escancara fundadas suspeitas.

Valor maior

O jornalismo investigativo só pode ser exercido junto com o jornalismo independente. Raras são as empresas jornalísticas que conseguem manter-se acima de seus interesses políticos, econômicos ou pessoais. O britânico The Guardian (por ser uma fundação) e o francês Le Monde (por conceder ao coletivo de jornalistas o direito de desobedecer aos acionistas) são gloriosas exceções. No momento em que se associarem em pools locais, aviltam-se.

Independência pressupõe individuação, autonomia, soberania. Esta fatal atração do Globo pela Folha e da Folha pelo Globo tem produzido incríveis aberrações. Atrelados, avacalham-se.

Credibilidade é um atributo que não se compra em tabuleiros de camelô.

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