Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fred Melo Paiva

‘Na quinta-feira passada, o ex-deputado José Dirceu acordou tarde. A noite anterior fora uma empreitada difícil, tanto que ele vinha tentando evitá-la. Mas não teve jeito. Do apartamento em Brasília, assistiu à Câmara cassar seu mandato de deputado logo à 0h01 – 293 votos a favor, 192 contra. Naquele minuto fatal, o ex-ministro-chefe da Casa Civil sentiu-se ‘indignado’. Mas, como considerava o processo ‘mera formalidade’ e via-se como alguém que ‘já estava condenado’ independentemente das provas, foi dormir o sono dos justos. Não acordou tarde porque tenha revirado na cama. O motivo é prosaico: José Dirceu está com uma virose.

Quando ele saiu da cama sem mandato foi primeiro fazer seus exercícios físicos, como sempre. Depois respondeu e-mails, como toda manhã. Vestiu camisa de manga e gravata, como se fosse deputado. Na semana que passou, esteve com lideranças políticas, participou de um ato em Osasco em favor do companheiro de partido e agruras João Paulo Cunha. Assim deseja estar o ex-ministro de 59 anos, ainda que inelegível pelos próximos dez: fazendo política. Não sabe exatamente como – ou, ‘como cidadão’ -, mas diz que ‘começa de novo, de baixo, do zero’. Planeja uma viagem para os Estados Unidos e dois livros com a ajuda de Fernando Morais. Na quinta-feira, recebeu o Aliás (em manga de camisa e gravata) para a seguinte entrevista:

Qual foi o seu sentimento quando ficou decidido que o senhor estava cassado?

Eu já estava preparado e organizando a vida. Mas me senti indignado, porque considero tudo isso uma violência não só política como constitucional – não existe cassação política na Constituição. Houve uma busca desenfreada de provas. Devassaram a minha vida. Não encontraram nada. O processo contra mim foi mera formalidade. Eu já estava condenado.

Sentiu-se aliviado também?

Não, porque vou continuar enfrentando essa discussão pelos próximos anos. Vou lutar para readquirir meus direitos e provar minha inocência. Porque, no meu caso, o ônus da prova cabe a mim. Ao contrário do que já se disse, não desisti do meu mandato. Isso, aliás, é uma questão jurídica que cabe aos meus advogados. Particularmente, não tenho ânimo para recorrer ao Supremo Tribunal Federal nesse momento. Vou escrever o livro com o Fernando Morais, vou montar um escritório de advocacia em São Paulo com uma advogada que já teve escritório comigo. Vou fazer palestras… Se me convidarem, vou percorrer o País para debater seus problemas. Quero discutir o programa do próximo governo. Se o presidente for candidato, o programa dele precisa ser repactuado…

O senhor foi o grande responsável por transformar o partido que vivia de vender estrelinha em um partido profissional. À luz da crise e de sua cassação, valeu a pena?

Transformamos o PT numa instituição, que é o que o Brasil precisa – fortalecer os partidos, ao contrário do que estamos vendo hoje no Congresso, com o fim da verticalização. Fizemos do PT uma grande instituição política, social e cultural, com valores, programas e objetivos. Ele não deixou de ser grande porque cometeu erros. Se fosse assim, os jornais brasileiros não existiriam, porque eles faliram, entraram em crise, mudaram de mãos, sofreram períodos de erros gravíssimos. Teve jornal que apoiou o DOI-Codi! O PT cometeu erros que já está sanando. Ele os assumiu e vai banir o caixa dois de sua prática. Por tudo isso, valeu a pena.

O senhor foi peça fundamental na construção da vitória de Lula. O desfecho de sua história significa que assustava mais os adversários do que o próprio presidente?

Os adversários me escolheram como alvo desde o começo. Mal cheguei ao governo, começaram as tentativas de me desestabilizar. Mesmo na campanha eleitoral já surgiram notícias de que eu seria receptor de recursos de origem ilegal que teriam sido arrecadados em Santo André. O STF arquivou essa representação do Ministério Público de São Paulo porque era leviana. Depois, a partir da crise Waldomiro Diniz, houve CPI, inquérito da Polícia Federal, e também nada se provou contra mim. Mais tarde, quando procurava definir os rumos do governo, encontrei resistência muito grande de alguns setores da oposição e da mídia. Fui escolhido como alvo principal, e agora eles atingiram os seus objetivos: o governo perdeu a maioria no Congresso; as CPIs estão instrumentalizadas para desgastar o governo, para inviabilizar a reeleição do presidente, e não para apurar corrupção; eu estou cassado. Atingiram os objetivos, mas isso não acabou – é um ato de uma peça que vai se desenvolver nos próximos 10, 20 anos. Esses acontecimentos não encerram a minha história, nem a do PT, nem a do governo Lula.

O senhor ainda acha que deveria ter deixado o governo no episódio Waldomiro Diniz?

Não. Coloquei o cargo à disposição, porque é assim que deve fazer um ministro acusado de um ato ilícito. Agora, no final de 2004, avalio hoje que eu deveria, sim, ter saído. Mas em razão de diferenças com muitas questões dentro do governo…

Por divergências com a área econômica?

Não só a economia. Divergências também sobre como formar a maioria no Congresso, sobre o funcionamento do governo. Naquele momento, considerava que era importante eu ir para a Câmara. Mas acabei encontrando resistência na bancada do PT e o próprio presidente tinha opinião contrária. Assim, fiquei no governo até junho de 2005.

O senhor ainda se encontra com Waldomiro Diniz, que era um amigo?

Nunca mais o vi nem falei com ele, desde os acontecimentos de fevereiro de 2004.

Essa crise serviu para moer a imagem de algumas pessoas, entre elas Genoino e Delúbio, que o senhor citou na entrevista que concedeu depois de cassado. Qual seu sentimento em relação a essas pessoas?

De solidariedade, apoio, respeito.

O senhor fica com pena deles?

Não tenho pena de ninguém. Tenho amizade e, na medida do possível, vou apoiá-los. São pessoas que dedicaram toda a vida à luta política e social no País, à construção do PT. Se erraram, estão pagando por isso. Já pagaram no PT e estão respondendo na Justiça. São todas elas pessoas que estão reconstruindo a vida. Pessoas honestas.

O senhor acha que houve contra eles algum tipo de violência?

A vida é assim, cheia de momentos como esse que estamos vivendo. Cada um já está procurando uma solução profissional, já se reencontraram com a família, já recuperaram a auto-estima. O Genoino, se depender de mim, será candidato a deputado federal. Será eleito porque merece.

O senhor é o símbolo de toda uma geração que lutou contra a ditadura e por um mundo melhor. Como essa geração está olhando hoje para o senhor?

A imensa maioria dos meus companheiros de 68 foi solidária comigo. Grande parte da intelectualidade, dos artistas e escritores, também. Tive apoio dos partidos de esquerda, da militância política, da CUT, do MST… Evidentemente, deve haver, em todos esses setores, cidadãos que me condenam. Mas não traí os ideais da minha geração. Não sou hostilizado nas ruas, ainda que manifestações contra sejam naturais. Mas nada que beirasse a violência traiçoeira que sofri esta semana…

O maluco que agrediu o senhor a bengaladas?

Tem nada de maluco, não. O tempo vai dizer o que é isso… Mas o fato é que não sou hostilizado. Toda vez que vou ao cinema, ao restaurante, dou autógrafo, tiro foto.

Em algum momento da crise o senhor se desesperou?

Já passei por momentos mais difíceis e tenho experiência política. Qualquer político como eu sabe gerenciar crises. Claro que esta envolveu todo o PT, o governo, o País – para todos nós, foi uma grande tragédia. Mas em nenhum momento cheguei a me desesperar, a achar que não tinha saída. O momento mais duro foi quando pediram para que eu saísse do Campo Majoritário. De qualquer forma, entendo, mesmo os meus companheiros de 20, 30 anos. Não guardo mágoa.

O senhor é hipertenso, não?

Tomo uma medicação bem leve desde 1998, mas não chego a ser hipertenso. Tenho picos de tensão porque vivo sempre à beira da estafa – costumo trabalhar 14, 16 horas por dia. Mas faço exercícios, tenho uma alimentação balanceada, não fumo, bebo pouco – mais vinho, menos cerveja, quase nunca uísque porque só tomo Jack Daniel’s, e este nunca tem.

Na acareação com Roberto Jefferson, quem o conhece temia pela sua saúde…

Evidente que sofri um desgaste físico e mental muito grande nesses meses. Mas você se reequilibra à medida que descansa, vê filmes, lê. Eu li muito…

O que o senhor leu?

Desde O Vingador, do Frederick Forsyth, até a viagem do Humboldt pela América Latina, um livro que se chama O Cosmos de Humboldt. Desde a biografia do Fidel até a do Arafat – Arafat: o Irredutível, aconselhável para quem quer enfrentar a vida política.

O senhor tem uma vida inteira de dedicação a um projeto político. Quanto desse projeto o senhor realizou?

Quando foi fundado o PT, disse que nós estávamos realizando um sonho da minha geração, que era ter no Brasil um partido de esquerda, de trabalhadores. E que esse partido disputaria o poder, não faria apenas oposição. Nesse sentido, realizamos o projeto porque Lula é presidente. Agora, um partido e um governo têm por objetivo transformar um país. Para isso, temos ainda 10, 20, 30 anos de luta pelo menos – em 10, creio que possamos eliminar dois terços da pobreza que temos. Enquanto eu e outros estivermos vivos, o projeto continua, mesmo que se perca a eleição.

Particularmente, o senhor se sente como alguém que nadou e morreu na praia?

Sinto que acabou o primeiro tempo e vai começar o segundo. Estou no vestiário recuperando as forças. Vou tomar banho, pôr um uniforme limpo e voltar para o jogo. Iludem-se aqueles que acham que estou fora. Posso não ter condições mais, posso não ser aceito. Mas, no que depender de mim, vou participar da política do País nos próximos 10, 20 anos – 30, espero.

O senhor já acalentou o sonho da Presidência da República?

Nunca passou pela minha cabeça. Isso é intriga de alguns tucanos que posam de punhos de renda, mas na verdade são coronéis – coronéis urbanos da política. São os mesmos que disseminaram nos círculos políticos de Brasília que eu organizei a Polícia Federal, a Abin e uma estrutura de recursos para a disputa de 2010. Calúnia típica desses personagens desprezíveis. São pessoas que o convidam para ir à casa deles e depois revelam para a imprensa a conversa que tiveram.

Como o senhor pretende reconstruir seu capital político?

Já reconstruí na própria luta que fiz me defendendo.

Foi uma estratégia?

Foi dever de consciência, dever ético. Tenho responsabilidade com a militância, com os que votaram em Lula, com a minha geração. Não vou aceitar nunca uma condenação sem provas.

A partir de agora, como pretende reerguer-se?

Não estou preocupado com minha carreira pessoal ou com meu capital político. Se atuar nessa perspectiva, vou fracassar. Tenho de atuar como cidadão. Vou começar de novo, de baixo, do zero. A vida é assim. Não vou fazer nada que não seja, nesse momento, à altura do que aconteceu comigo e das minhas possibilidades, que são pequenas.

O senhor já se imaginou indesejável em algum palanque do PT?

Pelas viagens que fiz, pela maneira como fui recebido, acho que isso não vai acontecer. Mas temos de esperar para ver como a sociedade vai julgar minha cassação.

Esse tipo de pergunta o machuca? Porque isso é novo para o senhor, não?

Não. Eu fui considerado terrorista no País durante anos, repudiado pela imensa maioria.

Mas, para você, deve ser diferente ser considerado um corrupto…

Só fico indignado, porque não sou. Por outro lado, tenho a consciência tranqüila.

O que o senhor vai fazer nos Estados Unidos?

É uma viagem pessoal. Vou ficar na casa de uma família em Washington, estudar inglês e conhecer o país. Posso ficar um mês, dois ou três – depende, inclusive da situação política do País nas próximas semanas.

Do que exatamente vai tratar o livro que Fernando Morais escreve com o senhor?

É sobre os 30 meses em que exerci o cargo de ministro-chefe da Casa Civil. Vai tratar dos objetivos do governo, dos problemas e alternativas, da forma como o Estado brasileiro está organizado, das reformas, da relação com o Congresso. Talvez seja escrito em primeira pessoa.

E o resto da sua vida?

O Fernando Morais já está pesquisando para fazer, daqui a alguns anos, o livro completo. Já estou reunindo todo o material que tenho. Estivemos em Cuba, onde filmamos, buscamos documentos, entrevistamos amigos. Mas é um projeto, nada programado para o curto prazo.

O senhor tem medo do ostracismo?

Já vivi anônimo várias vezes na vida. Cheguei a São Paulo com 14 anos e fui ser office-boy. Às vezes vivia numa solidão total… Clandestino, preso, banido. Não tenho nenhum medo do ostracismo. E, em última análise, o que eu sou é um brasileiro. Isso me basta. Tenho certeza de que vou ser feliz do mesmo jeito.’



Carlos Chaparro

‘Jornalismo que não elucida, engana’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 2/12/05

‘O XIS DA QUESTÃO – Tão espantosa quanto a extensão e a complexidade dessa história de corrupção a que chamam de ‘caixa dois’, é a desfaçatez com que os responsáveis maiores (entre eles o cassado José Dirceu) lavam as mãos diante do escândalo. E podem continuar a rir da nossa cara porque, entre outras razões, a imprensa tem falhado gravemente no plano da elucidação. Em casos como este, jornalismo que não elucida, ajuda a enganar.

1. José Dirceu, o enganado

Quer se goste ou não de José Dirceu, há que reconhecer nele méritos de incansável e corajoso lutador. Nas pompas e circunstâncias do Congresso, mesmo cercado de tormentas e abandonos, ele lutou bravamente. Lutou por suas verdades e por suas mentiras. Lutou, principalmente, pela preservação do lugar próprio pelo qual lutou ao longo da vida, na cena política brasileira.

Saiu derrotado na contagem dos votos. Mas continuou vivo e na briga. Protagonista. No dia seguinte, convocou a imprensa para falar ao país, no ilimitado espaço público do jornalismo. Quis dizer a última palavra. Palavra de vítima. E com discurso de vítima, posou de vencedor – no gestual como verbal:

‘Não fui cassado pelos meus erros, mas pelas minhas qualidades.’

‘Não fui cassado por corrupção. Não sou corrupto. Tenho as mãos limpas.’

‘Minha cassação é política. O país todo sabe por que fui cassado’.

Será que sabe?

O que o país sabe, ou melhor, o que o país pensa é aquilo que Eliane Cantanhêde bem resumiu, em sua coluna desta sexta-feira, na Folha de S. Paulo. Primeiro, a colunista cita José Dirceu, quando, 11 anos atrás, clamava pela cassação de Ricardo Fiúza: ‘Ricardo Fiúza é corrupto. Isso é público e notório. E o que é público e notório dispensa provas’, dizia José Dirceu, em 1994. Depois, pela tática da analogia, Eliane sentencia, em jeito de xeque-mate: ‘É público e notório que, se Marcos Valério existiu, e se Delúbio fez o que fez, é porque ele (José Dirceu), no mínimo, autorizou’.

É o mínimo que se pode pensar. Não há como acreditar que um político e um chefe como José Dirceu, com o saber de mando e as ganas de poder que marcam a sua trajetória, seja inocente nessa história vergonhosa. Quem são Delúbio e Marcos Valério, para enganarem tão facilmente o poderoso e esperto José Dirceu?

Que José Dirceu sabia, e se sabia, autorizou, ninguém duvida no Brasil. Tanto assim é que até o presidente Lula, ao lamentar a cassação do amigo e aliado, disse o seguinte, segundo os jornais: ‘(…) Isso é uma vingança contra o governo, para dar uma satisfação à sociedade’.

2. Perplexidades e desfaçatez

A sociedade reclama satisfações, claro, porque continua perplexa ante a grandiosidade da operação chamada por alguns de ‘valerioduto’, por outros de ‘caixa dois’ e, no dizer de Delúbio, ‘dinheiro não contabilizado’ – eufemismos para a palavra certa que o povão repete, convicto: corrupção, e das bravas. Os eufêmicos falam como se ‘caixa dois’ não fosse crime. Pois caixa dois é também uma forma de corrupção, em certos casos, a pior de todas, pela grandeza das trocas que pode envolver.

Qualquer que seja o rótulo que se dê à história, o Brasil ficou perplexo com o espantoso esquema de corrupção montado à sombra dos palácios do poder. E dentro deles. Mas existe outra perplexidade, tão grande quanto a anterior, produzida pela desfaçatez com que os responsáveis maiores lavam as mãos diante do escândalo. Ainda por cima, minimizam os crimes cometidos.

O Presidente da República, por exemplo, em vez de se declarar escandalizado, fala como se nada de vergonhoso tivesse acontecido. Os que o cercam fazem até questão de dizer que o Presidente nada sabia. Riem da nossa cara e desrespeitam a dignidade do cargo. Por quê? Porque, dada a gravidade do escândalo, a profundidade da ferida ética produzida e a proximidade das pessoas envolvidas, ao Presidente da República (qualquer que seja) não é dado o direito de dizer que ‘nada sabia’ – ainda que isso seja verdade.

Quanto a José Dirceu, com todo o direito que ele tem de nada dizer que o possa incriminar, é uma desfaçatez declarar ao Brasil, como declarou na entrevista coletiva, que Delúbio Soares está pagando mais do que devia, pelos erros que cometeu. ‘Foi expulso do PT. Eu fui contra a expulsão. Queria só a suspensão’. Como se não bastasse, ainda acrescentou: ‘Delúbio é uma pessoa honesta, de vida simples. Ele não pegou nada para ele’.

Tal simplificação do conceito de honestidade é outra desfaçatez. E antes que também me acusem de eufemismo, lembro o que todos sabemos: que, na significação preponderante, desfaçatez quer dizer falta de vergonha, descaramento, cinismo.

3. Fracasso na elucidação

José Dirceu tem razão em uma de suas queixas. A de que faltam provas materiais inquestionáveis, no processo que o condenou.

Infelizmente, nem as CPIs nem a investigação jornalística avançaram o bastante para nos municiar das certezas de que precisaríamos, para formarmos juízo fundamentado, quanto à justiça ou injustiça da cassação.

Seis meses depois, continuamos sem saber de onde veio a dinheirama, nem para onde foi. Até mesmo o flagrante mais objetivo e escandaloso de toda essa história, o dos dólares na cueca, continua por esclarecer, quanto à origem e ao destino do dinheiro.

As provas materiais inquestionáveis não fizeram falta à Câmara dos Deputados, para cassar José Dirceu, por se tratar de um julgamento político. Mas fazem falta à discussão pública. Fazem falta, principalmente, à Nação, que foi enganada, e continua a ser enganada, enquanto não lhe chega a elucidação a que tem direito.

A imprensa, que vem cumprindo bem o papel de narrar o que acontece nos palcos dos embates, tem falhado gravemente no plano da elucidação. Mas, aí, já entramos em tema para outro texto.’



Claudio Weber Abramo

‘Candidatura acintosa’, copyright Folha de S. Paulo, 5/12/05

‘Há algum tempo noticia-se que Nelson Jobim, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), alimentaria ambições políticas. Fala-se numa possível candidatura à Presidência ou vice-presidência da República, neste caso numa chapa PT-PMDB. Como o sr. Jobim não vem a público para desmentir tais intenções, fica-se com a impressão de que as versões procedem e que, portanto, ele estaria se articulando para materializar o intuito. Sendo esse o caso, não há outra forma de se referir a tal candidatura senão como um acinte.

Constitui agressão ao princípio de separação de Poderes a circunstância de o presidente da mais alta corte de Justiça do país, com intervenção direta nos conflitos políticos e econômicos mais relevantes, pleitear um cargo eletivo.

Não importa que, em decorrência de uma interpretação gramatical da Constituição, o sr. Jobim teria o ‘direito’ de concorrer. O dever de manutenção de uma moralidade mínima lhe retira esse pretenso direito. Mais, dado o poder de intervenção que o presidente da Suprema Corte tem sobre todos os assuntos que passam por ali, tal intenção eleitoral colocaria sob suspeita todas as decisões do STF, e não apenas aquelas que dizem respeito a temas de natureza política.

Há entre as alegadas ambições do presidente do STF e sua função no tribunal um conflito de interesses cuja persistência é intolerável. Se o sr. Jobim de fato nutre a ambição noticiada, todos os atos do colegiado do Supremo são lançados no mesmo buraco negro de suspeição.

Ao pretender transitar entre dois Poderes, o presidente do STF estende seu conflito de interesses ao conjunto dos demais magistrados.

Em particular, dá asas à desconfiança de que as interferências do Supremo nos assuntos do Congresso Nacional, que se tornaram freqüentes durante o processo movido no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados contra o sr. José Dirceu, se explicariam como investimento em favor da ambição eleitoral de seu presidente.

Usando o caso do agora ex-deputado apenas como exemplo, para muitos ficou óbvio que a intromissão do STF não atendeu ao anseio de servir à justiça, mas às finalidades procrastinatórias de Dirceu. As firulas inúteis que se discutiram, como ouvir testemunhas nesta ou naquela ordem, incluir ou extirpar parágrafos de relatórios, aventar aspectos processuais, em nada alteraram a natureza fundamental do processo político, que, como diz o nome, era e é político, e não jurídico, como, aliás, apontou o ministro Joaquim Barbosa, no que foi verberado por alguns de seus colegas, a começar pelo presidente do STF.

O destino de um parlamentar levado a julgamento numa Casa do Congresso é traçado pela história das relações construídas ou destruídas e pelas articulações e negociações conduzidas por apoiadores e opositores.

Esse destino não só passa pelas ‘provas dos autos’ no sentido jurídico mas, antes e principalmente, por elementos de convicção inferidos ao longo do processo e colhidos de toda parte, do noticiário da imprensa às conversas ao pé do ouvido. O que se exige é a garantia do direito de defesa, o que, nos casos recentes, numa visada de bom senso em contraposição à visada formalista, foi amplamente satisfeito.

A melhor demonstração de que o acolhimento de manobras de advogados de políticos não tem fundamento prático é que nenhum parlamentar que vote independentemente do que está escrito no relatório pode ser cobrado por isso, nem o resultado da votação pode ser contestado -mesmo porque o relatório é, ele próprio, culminância de um procedimento político, e não jurídico, em que interferem muitos fatores extraprocedimentais. Os parlamentares são a um tempo promotores, advogados de defesa, júri e juízes. Na formação de sua opinião e na consignação de seu voto, não respondem a ninguém senão ao eleitor.

Mais importante ainda, deputados são também testemunhas. O que cada um dos parlamentares conhece sobre a atividade de seus pares, dos agentes partidários e governamentais, dos negócios que se fazem pelos gabinetes, pouquíssimo disso chegando ao conhecimento público, deveria ser suficiente para dissipar qualquer ilusão de que poderiam eles participar de um processo de cassação com a isenção formal imaginada por certos ministros do STF -um dos quais chegou a estabelecer paralelo entre tal processo e aquele decorrente de um atropelamento de trânsito.

O que ocorre num julgamento parlamentar é muito diferente do que acontece num tribunal. Ao menos em princípio, um juiz que decida afrontando o que estiver nos autos, ou que o faça ferindo o rito processual, expõe-se a ter a decisão revertida na instância seguinte.

Sugerir que as convicções que governam o julgamento político precisariam formar-se seguindo o rito processual judicial é pretender ignorar a distinção entre política e direito. Não se pode confundir uma coisa com a outra, sob o risco de transformar a vida política em matéria de advogados.

A confusão que se pretende criar nada tem de doutrinária. Ao contrário, leva marcas de ser intencional, impressão essa que a alegada candidatura Jobim só reforça. Ao se admitir que um magistrado seja candidato a cargo eletivo, destrói-se a separação entre Poderes e se confere legitimidade ao concubinato entre o interesse político e a função mediadora da Justiça. Se de fato existente, a candidatura Jobim é inaceitável.

Claudio Weber Abramo é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção. (www.transparencia.org.br e crwa.zip.net)’



Reinaldo Azevedo

‘Dirceu e a mídia: uma acusação injusta’, copyright Primeira Leitura (www.primeiraleitura.com.br), 1/12/05

‘José Dirceu parece que faz política só para me dar razão. Já escrevi mais de uma vez que, assim como Lula não tem superego, ele, o deputado cassado, não tem ego. Enxerga-se como um homem-causa. Em nome dessa causa, tudo é permitido. Sua entrevista coletiva corresponde a uma confissão do culpa. Explico-me: como, ao que se depreende, ele não fez nada de errado e, dadas as suas palavras, nada aconteceu -, tudo deve mesmo ter nascido de uma conspiração da imprensa, que, lembra o ainda muito poderoso chefe do PT, tem ‘seus donos e suas dívidas’.

Não há como não ver uma ameaça velada aí. Parece que ela não foi feita a tempo, com a devida suficiência. Chegou-se a falar numa linha especial de crédito para empresas de comunicação ainda quando Carlos Lessa presidia o BNDES. Ganhou o apelido de ‘Proer da Mídia’. A coisa não prosperou. Posso imaginar os termos em que se tentou negociar. Dirceu é a maior prova de que se fez bem em cassar Dirceu. Ele diz que luta no planalto e na planície. Se, na planície, se apresenta com essa jactância, é de se imaginar como se comportava quando era dono do Planalto.

Reclamação injusta

A reclamação, ademais, é injusta. Jamais houve um jornalismo tão favorável ao governo como nos dois primeiros anos de Lula. Jamais! O petismo de boa parte do jornalismo mais a simpatia das empresas pela política econômica de Antonio Palocci criou uma blindagem inédita. Para se constatar o que digo, basta recuperar os jornais e revistas do período. Vejam lá quantas vezes, nas seções de política, os colunistas amigos usaram a palavra ‘preconceito’ para ‘denunciar’ os que se atreviam a criticar o Apedeuta. Analisem as seções de economia e verifiquem as fontes consultadas para antever o futuro. Todas de um lado só. Entre uma especulação e outra, davam uma opinião para ‘pautar o debate’… Cantava-se ora a ‘responsabilidade’ do paloccismo, ora a vocação social do pobrismo esquerdista e redentor de Lulinha.

João Paulo propunha que sessões do Conselhão valessem por sessões do Congresso? Parecia muito normal. Vão lá pesquisar. Lula assumia como bravata o discurso de quando era oposição? Chamavam-no ‘responsável’. A economia cresceu 0,5% em 2003, com juros reais nos cornos da lua? Culpa da herança maldita de FHC ou, para usar uma expressão que era e é ainda muito freqüente: culpa da ‘ruína tucana’. Lula fazia pouco da cultura, do estudo e da democracia? Chega dessa política de ‘doutores’, exclamavam os Anotole France da Vila Madalena, Augusta, Higienópolis e Jardins. Quando as críticas começaram, o que se pedia a Lula não era mais juízo, mas ainda menos.

Precisou haver o rompimento da lei do silêncio; foi necessário que Roberto Jefferson quebrasse o ‘código de ética’ de uma espécie de máfia que se apoderou do poder, na entrevista histórica a Renata Lo Prete, na Folha, para que, então, a imprensa decidisse fazer, percorrendo a trilha da investigação policial, o que deveria ter feito seguindo o caminho da investigação intelectual – sei que o termo ofende. Não! Tudo menos isso! Tudo menos um pouco de teoria política. Não fossem as evidências de que petistas tinham mergulhado fundo no crime (‘caixa dois é crime’ – Márcio Thomaz Bastos) e nas irregularidades, o país estaria mesmerizado pelo petismo.

Querem saber? Acho um horror, sim, que tenham enfiado a mão em dinheiro público, que tenham feito essa lambança toda, que tenham tratado o Estado e o governo como a casa-da-mãe-joana; acho detestável o misto de deslumbramento, arrivismo e cafonice dos, como vou dizer?, estamentos médios do petismo. Certa feita, num famoso hotel de Brasília, desci para sossegar a minha insônia com café (!?). Ia alta a madrugada. Os malditos passarinhos já enchiam o saco, como fazem todas as manhãs. Fiquei estupefato com a fuzarca que vi. Havia mais pardais e pardalocas dentro do que fora do prédio. Meus inimigos me chamam de pernóstico. Lá vai então: lembrei-me de Os Doze Césares, de Suetônio. Quem é do ramo sabe o que quero dizer. Quem não é deve pesquisar. Se você lê Suetônio, não precisa de fita gravada secretamente para saber o que está em curso, entendem?

Tudo isso é um porre e me interessa menos. Quando se descobre uma grande sacanagem, não padeço daquela excitação que costumo ver na ‘cathiguria’. Não gosto de literatura policial. Prefiro a política. O problema do PT não se restringe a essa ética que distingue um ladrão de um não-ladrão. É de outra natureza. Coisa mais grave e séria. E esta natureza a imprensa se negou e, de certo modo, se nega ainda a reconhecer e a denunciar. Por incrível que pareça, a máxima lulista do ‘fizemos o que todo mundo faz’ colou, sim.

As denúncias que me interessam e a este site e sua revista são aquelas que se fazem tendo como provas a teoria política. Isso mesmo: repudio esse misto de fontismo e compadrio que fica elegendo os bandidos da hora. Quem emprestou, diga-se, esse sotaque policialesco ao jornalismo foi o PT, no tempo em que andavam de braços dados, com o procurador Luiz Francisco a lhes servir de guia. Primeira Leitura ‘denunciou’ o PT muito antes. Sem dar um tiro, sem usar uma fita, sem apelar a qualquer gravação clandestina, sem se meter na guerra suja.

Ou alguém precisava de ‘prova’ para saber que o Fome Zero era uma farsa publicitária? Falar mal do programa hoje é fácil. Difícil era entendê-lo como parte de uma política pública que, oficialmente, buscava reduzir a miséria e que nunca foi além de um slogan publicitário. Apontar as contradições entre o programa do PT quando na oposição e quando no governo era coisa corriqueira (especialmente porque se elogiava a mudança…). Difícil era entender aquele comportamento como parte de um projeto de poder que tem história.

Leio algumas colunas hoje em dia, e elas me enchem de ‘alegria e preguiça’. ‘De alegria’ porque vejo comprovado o que eu pensava tanto do governo como de alguns escribas. E ‘de preguiça’ porque, com efeito, o registro continua errado. Quero ética na política etc. e tal, mas é fato que o ambiente público não vai se transformar numa sacristia – ou, sei lá, continuará a ser uma sacristia, aquela à moda Eça de Queiroz. Acho um saco essa conversa do mundo dos ‘justos’.

Tenho sempre um pé atrás com os santos inquisidores da pureza. Meu ponto é outro: a ação do indivíduo A ou do indivíduo B concorre para tornar o país mais ou menos civilizado? Mais ou menos democrático? Mais ou menos eficiente? Suas decisões agridem mais ou menos os direitos individuais? Esses líderes estão tentando pôr mais Estado para sufocar a nossa vida ou querem nos deixar mais livres para que cuidemos do nosso próprio nariz? O político estimula os brasileiros a se livrar da pobreza por meio da luta, do esforço, do talento ou pretende lhes dar um cartão-sopão em troca de votos? Eles têm um projeto de desenvolvimento ou vão remendando o presente ao deus-dará? É isso o que me interessa. Não preciso de fitas para isso. Não vou investigar uma miserável pista. Por favor, não me contem nenhum segredo. Não quero saber. Stálin, Hitler, Lênin, Pol Pot, os grandes homicidas, talvez fossem pessoalmente honestos. Mas, infelizmente, a burrice parece não ter cura.

Acabo de ver analistas na TV. Falam sobre o PT e a necessidade de o partido encontrar uma nova identidade. A suposição é a de que a legenda nasceu na ‘contramão’ de ‘tudo isso o que está aí’. É mesmo? Então quer dizer que era bom, que tinha uma origem virtuosa? Cada um ache o que quiser. Das duas uma: ou essas pessoas comungam da mesma visão de mundo do partido ou são estelionatários intelectuais, tentando esconder a real natureza da legenda. Este PT que a muitos escandaliza agora, entendo, é só um braço operativo daquele outro, o que me escandaliza ainda mais: o do presente eterno, o que se dá todos os direitos, o que se sente dono da história. Este é o partido que gera Lulas, Delúbios, Genoinos. E também aquela personagem da coletiva desta tarde.’



Ana Paula Scinocca

‘Defesa acha estranho que a imprensa já saiba da intimação’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/12/05

‘O advogado do deputado cassado e ex-ministro José Dirceu, José Luís de Oliveira Lima, classificou como ‘esquisita’ e ‘estranha’ a decisão do Ministério Público de se valer da perda de foro privilegiado de Dirceu – por conta da cassação – para decidir convocá-lo a prestar esclarecimentos sobre as denúncias de esquema de corrupção em Santo André. ‘É muito estranho o Ministério Público primeiro falar (da intenção de convocar Dirceu) com a imprensa e só depois formalizar a convocação. É muito esquisito’, afirmou.

Apesar do comentário, o advogado informou que seu cliente ‘não tem nenhum problema’ em prestar esclarecimentos. ‘Estamos à disposição. Vamos esperar a intimação’, disse. ‘O Dirceu vai prestar depoimento desde que seja convocado pela autoridade competente.’

Ontem, Dirceu não quis falar. Deixou a tarefa para o advogado. Mas no sábado, quando participava do 16.º Encontro Estadual do PT, em São Paulo, reclamou do rumo das investigações sobre o seqüestro e o assassinato de Celso Daniel. O alvo das críticas, no entanto, não foi o Ministério Público, mas a CPI dos Bingos.

FUNÇÃO

Para Dirceu, ‘não é papel, não é legal nem constitucional que a CPI dos Bingos investigue’ o assassinato do prefeito de Santo André, classificado de ‘brutal, vil e covarde’ por ele. ‘Devemos apoiar as investigações’, discursou, destacando, porém, que elas não são função da CPI dos Bingos.

‘Denúncias de crime, como é o caso do assassinato do companheiro Celso Daniel e do Toninho (prefeito de Campinas assassinado em 2001), precisam ser investigadas e os responsáveis processados e punidos’, afirmou ele. ‘Agora, luta política contra nós não podemos aceitar.’

‘A tese de que foi um assassinato político não se sustenta até agora. Não se sustenta. Não há indícios, prova, confissão de crime político’, disse. Dirceu reclamou ainda do comportamento da direita – que estaria, segundo ele, criminalizando o PT. ‘Querem realimentar na sociedade que nós somos uma organização criminosa.’’



Renato Rovai

‘Sendo claro, torci por José Dirceu’, copyright Revista Forum (http://www.revistaforum.com.br/vs2/Artigos_Ler.asp?Artigo={4130195A-FCEC-4A73-AF33-89F6D3932A39}), 5/12/05

‘Somos de uma espécie blasé. Jornalistas em geral são blasé. Preferem fazer de conta que nunca é com eles. Que estão ali apenas para fazer registros e análises. Que não têm compromisso com nada que não sejam os fatos e as suas consciências. Isso tem lá seu lado bom, mas hoje se tornou disfarce. Uma máscara muito usada para fazer campanhas a favor de gigantes interesses. E se fazer passar por chapeuzinho vermelho num mundo-mercado de lobos.

Sem ser blasé e correndo os riscos da decisão, quero dizer que torci por José Dirceu na quarta-feira, 30 de novembro. Mesmo sabendo que o julgamento dele não se dava ali e que o resultado seria o que foi. Ele já havia sido crucificado antes por uma articulação político-midiática que há muito nos condena. E que nunca foi a juízo. E também sabendo que por isso muitos dos seus julgadores daquela quarta-feira comportar-se-iam como o tal Pilatos, lavando as mãos para que o clamor do ‘povo’ fosse atendido. Para que o que establishment que se auto-intitula opinião pública pudesse ter o prêmio pelo qual tanto se empenhou durante seis longos meses.

Também sem ser blasé, quero dizer que não tenho convicção a respeito da exigida inocência de José Dirceu. Não sei se ele de fato não cometeu atos impróprios. Ele diz que não. Também acho difícil acreditar que não soubesse das operações ilegais realizadas pelo PT. Mas ele diz que não. E em seis meses de investigação seus condenadores não produziram provas. No máximo, apontaram indícios.

Talvez por isso o silêncio revelador da noite de quarta. Silêncio que quase nunca se ouve quando alguém está na tribuna do Congresso. Por quase 50 minutos deputados e senadores pararam para ouvir o militante político José Dirceu. Poucos zunidos, quase nenhuma indiferença. Ele se defendeu e, com a dignidade dos fortes, dispensou misericórdia e pediu justiça. Frase de efeito, certamente pensada e lustrada, mas simbólica. Por si só deu àquele julgamento a dimensão da biografia política do personagem em questão.

Torci por José Dirceu na noite de quarta-feira, porque sei de que lado ele estava há quarenta anos. E imagino que continuará. Parece pouco. Mas em um momento onde máscaras e disfarces fazem parte do figurino de muitos, preservar uma liderança como José Dirceu passa a ter imensa importância. Mesmo tendo mudado o rosto para voltar ao Brasil, todos o reconhecem. Sabem o que é, o que pensa e representa. E seus algozes não o escolheram à toa para o show da crucificação. Foi como tentar cortar o mal pela raiz. Mas pela grandeza da reação de José Dirceu, parece que se deram mal.

*A próxima edição da revista Fórum, nas bancas a partir de 4/12, traz entrevista histórica com José Dirceu’



Silvana de Freitas

‘Ministro nega candidatura, mas deve deixar STF em abril’, copyright Folha de S. Paulo, 5/12/05

‘Cogitado para disputar o Palácio do Planalto pelo PMDB em 2006, o ministro Nelson Jobim, 59, pretende deixar a presidência do STF (Supremo Tribunal Federal) em março, a tempo de também renunciar à carreira de juiz e se filiar a um partido político, mas nega que seja candidato.

Em entrevista à Folha, na quinta-feira, disse que não pode proibir as pessoas de fazerem especulações que o envolvam e explicou que a antecipação do fim do mandato no STF atenderá a uma conveniência: a sua sucessora, Ellen Gracie Northfleet, poderá negociar com o Ministério do Planejamento, até 15 de abril, as diretrizes orçamentárias de 2007.

‘Isso poderá acontecer, mas não terá nada a ver com pretensões de candidatura, porque não sou candidato a nada.’

Para concorrer, Jobim terá de se aposentar no STF e se filiar a um partido até 3 de abril, seis meses antes das eleições. A regra geral é a filiação pelo menos um ano antes, mas os juízes têm prazo especial, pois não podem ter vínculo partidário enquanto magistrados.

Disse que a cassação do mandato de José Dirceu foi ‘um momento importante’. Para ele, ‘o Congresso acabou decidindo como entendeu que deveria decidir, por sua maioria, e o STF estabeleceu o que tinha que estabelecer’.

Jobim disse que a origem da crise política é o alto custo nas campanhas e defendeu sua simplificação, como a proibição de imagens externas de TV e uso de recursos gráficos. ‘Deve voltar a ser como antes: o candidato vai à televisão para debater, sem instrumentos que possam trabalhar com o inconsciente da população.’

Segundo ele, ainda há tempo para fazer mudanças nas leis e aplicá-las nas eleições de 2006, desde que elas não interfiram em direitos dos candidatos, como normas de prestação de contas.

Ele também criticou a resistência de desembargadores ao fim do nepotismo. Eles dizem que o Conselho Nacional de Justiça não teria poder de proibir as contratações. ‘Está oculto nesse debate o desejo desses setores de manter a possibilidade de trazer os seus filhos e parentes próximos para, digamos, alimentar o orçamento familiar.’ A seguir, os principais trechos da entrevista:

Folha – Que análise o senhor faz da cassação do mandato do ex-deputado José Dirceu?

Nelson Jobim – Faz parte do processo. Não posso emitir juízo de valor sobre a condenação. Quanto às tensões que ocorreram no processo de cassação em relação ao exercício de defesa, o STF assegurou todos os direitos, não obstante as reações [do Congresso].

O STF vai continuar desempenhando suas funções, mesmo que eventualmente desagrade alguns setores que tenham ânsia de produzir atos de qualquer natureza.

Foi um momento importante, porque mostrou que as instituições funcionam. Cada um cumpriu a sua tarefa. O Congresso Nacional acabou decidindo como entendeu que deveria decidir, por sua maioria, e o STF estabeleceu o que tinha que estabelecer.

Folha – Até que ponto o STF pode interferir nas ações do Congresso?

Jobim – Temos de fazer uma distinção entre o mérito das decisões do Congresso, que são de natureza política, e os procedimentos que têm de ser observados.

A Constituição deixa muito claro, quer em CPIs quer em processos de cassação, que o devido processo legal, o amplo direito de defesa e o contraditório são direitos constitucionais. Interviremos sempre no sentido de assegurá-los. Isso é uma questão antiga. Desde 1891 o Judiciário pode anular leis votadas pelo Congresso se elas contrariarem a Constituição.

Folha – José Dirceu tem dito que não há provas contra ele. Uma prova aparentemente importante era o depoimento de Kátia Rabello, que foi suprimido do relatório por decisão do STF. O tribunal pode aceitar um recurso dele para anular a cassação sob esse argumento?

Jobim – Se ele vier, vou ter de responder no processo. Quero deixar claro que o juízo sobre se houve ou não prova é juízo de mérito. Nos juízos políticos, o voto é secreto e não fundamentado. O juízo judicial é fundamentado.

Podemos anular uma decisão judicial por falta de fundamento, mas não se exige isso no juízo político. O que o sistema constitucional exige é que o juízo político observe o amplo direito de defesa.

Folha – O STF adotou uma solução meio-termo no julgamento do mandado de segurança de Dirceu. Reconheceu a violação ao direito de defesa, mas não suspendeu o processo. Foi uma decisão política?

Jobim – Não. Havia duas possibilidades jurídicas de solucionar o problema. Ou recomeçava o processo [com novos depoimentos] ou não levava em conta [excluíam-se do relatório] as provas produzidas. A última foi a opção da maioria. Eu preferia que pudessem ser ouvidas as testemunhas, mas fui vencido. Ambas são juridicamente possíveis.

Folha – Alguns políticos têm sugerido a sua candidatura à Presidência da República como uma alternativa à polarização entre PT e PSDB. O sr. é candidato?

Jobim – Essas são especulações feitas pelos outros, rigorosamente meras especulações. Não posso proibi-los de fazê-las. O que eu posso afirmar é que não estou cogitando nada disso.

Folha – Muitos falam da possibilidade de uma terceira via na disputa presidencial de 2006.

Jobim – Se eu responder isso, estarei fazendo análise política. Isso é um problema que tem de ser decidido no processo eleitoral.

Faço apenas uma observação, não como virtual político nem pensando em política, mas na questão institucional: lamento que toda essa crise venha em decorrência do problema de despesa de campanha e que não tenha sido possível ainda o Congresso votar uma redução das despesas.

As tentativas são sempre de reduzir as fontes de recursos, não das despesas. Sabemos muito bem que, se as fontes de recursos não atendem as despesas, acabam encontrando outras formas.

Folha – Como deve ser a redução?

Jobim – Temos um pretenso, no sentido lato, programa eleitoral gratuito. Acaba não sendo gratuito, mas altamente caro, tendo em vista a natureza da produção do programa. De uns anos para cá, criou-se um grande mercado em torno disso, de marqueteiros.

Eu me lembro que o senador Mário Covas pretendia voltar ao sistema em que os candidatos compareciam na TV e falavam ao vivo ou gravavam em um estúdio, não tinha nada de produção externa, mas ele foi derrotado.

Se você examinar os programas de TV de diversas eleições, vê como os custos de produção vão crescendo. Fiz isso quando estava no TSE [em 2002]. Começou com um sujeito passeando em uma estrada, com uma câmara do partido filmando ele. No final, lembra-se da propaganda das grávidas [na última campanha de Lula]?

Folha – Tramita no Congresso um projeto que reduz o período da campanha de 90 para 60 dias e o tempo da propaganda, de 45 para 30. O sr. acha que isso ajudaria? Não é por meio do programa na televisão que muitas pessoas conhecem o candidato?

Jobim – Ajuda sim. Por isso mesmo tem de voltar ao sistema de sair na rua. Essa questão se tornou tão importante que as alianças eleitorais não consideram mais as possibilidades de governo, mas exclusivamente o tempo de TV que a sigla agrega ao candidato.

Depois da eleição, normalmente o eleito tenta cooptar os membros de outro partido. Quem foi mal na eleição é abandonado.

Folha – Não é um retrocesso negar a importância da mídia e valorizar o comício na praça pública?

Jobim – O que quero negar é aqueles que ganham dinheiro em torno disso, os produtores desse programa. Que fique o tempo de programa existente, não tem problema. É até bom que fique. Uma coisa é o tempo, outra é a produção. Depois é aquela história: se um faz, o outro quer também.

Folha – O sr. defende que não tenha imagem externa e trucagem?

Jobim – Deve ser como antes, ou seja, o candidato vai para a televisão para debater, sem instrumentos que possam trabalhar com o inconsciente da população.

Folha – Mudanças na legislação neste momento poderiam valer para as eleições de 2006?

Jobim – Uma coisa é o processo eleitoral, que envolve direitos. Quem pode ser candidato, por exemplo. Eu teria de examinar o problema de custos. Não tenho condições de dizer.

Folha – As normas sobre prestação de contas ainda podem ser modificadas para 2006?

Jobim – Isso não tem problema.

Folha – A verticalização [vinculação das coligações estaduais às alianças nacionais] foi um erro?

Jobim – Eu a defendi quando era presidente do TSE. Continuo entendendo que as siglas têm de ser nacionais. Se dois partidos se coligam em um Estado e têm candidatos diversos a presidente, como farão os comícios? Na cabeça do eleitor, acaba criando desordem.

Folha – A aprovação da proposta que acaba com a verticalização vai ser um retrocesso?

Jobim – Não faço juízo de constitucionalidade. No sentido de afirmação de partidos nacionais, sim. Os partidos nacionais acabarão sendo meras confederações de partidos regionais.

Folha – Desde que o sr. presidiu o TSE, ouvimos falar que deseja voltar à política e que poderia ser candidato em 2006 a presidente ou a governador do Rio Grande do Sul. O sr. vai terminar seu mandato no STF no prazo previsto, em junho?

Jobim – Em princípio sim, mas posso sair antes, porque há um problema que precisamos enfrentar. A troca na presidência do STF concentrou-se tradicionalmente em fevereiro ou março, mas houve atrasos ultimamente. Um ministro exerceu a presidência por apenas um ou dois meses, e a posse de seu sucessor foi transferida para maio. Depois, com a última aposentadoria [de Maurício Corrêa], ela ficou para junho.

Em junho ela não é conveniente, porque há a necessidade de o novo presidente conduzir a discussão com o Ministério do Planejamento sobre a Lei de Diretrizes Orçamentárias, que termina em abril. Para isso, é necessário que a posse volte para março ou abril. Isso poderá acontecer, mas não terá nada que ver com pretensões de candidatura, porque não sou candidato a nada.

Folha – Poderá ser em março ou abril?

Jobim – O melhor é que seja em março, porque a lei tem de ser enviada até 15 de abril. Essa discussão com o Planejamento é ainda mais necessária agora, porque o Congresso está exigindo que os valores sejam examinados no Conselho Nacional de Justiça.

Cada vez mais se torna necessário que a presidência de um tribunal, com mandato de dois anos, comece em um momento que seja viável para negociar os resultados financeiros de sua gestão.

Folha – Para ser candidato, o sr. tem de sair do STF e se filiar até o início de abril?

Jobim – A filiação partidária é seis meses antes para juízes, ou seja, até 3 de abril. Anos atrás, o TSE respondeu a uma consulta sobre isso. Mas eu não tenho essa pretensão. Todas as especulações são feitas à minha revelia.

Folha – É possível ser juiz e ter o nome cogitado para uma candidatura? Isso não compromete a isenção, especialmente levando em conta que o STF julga causas muito políticas, como a liminar de Dirceu?

Jobim – Não há impedimento constitucional nenhum. Também não há nenhuma mistura entre decisões e eventuais pretensões políticas, que eu não tenho. Vamos deixar bem claro isso.

Folha – O que o sr. acha dessa crise política envolvendo o governo, o PT, outros partidos e o Congresso?

Jobim – Vejo essa crise política muito ligada às eleições de 2006. Não sei quais serão os efeitos eleitorais dela. Isso é outra história, mas as instituições estão deglutindo-a com tranqüilidade, o que mostra a maturidade do nosso processo democrático. Não há nenhum ruído institucional. Há os riscos partidários, que são absolutamente normais. Há sempre uma tendência de que aquele que está eventualmente tendo vantagens eleitorais ou de visibilidade dentro de uma crise tenta radicalizá-la para aumentar os ganhos.

Folha – Os desembargadores estão contestando a resolução do Conselho Nacional de Justiça que proibiu o nepotismo.

Jobim – Faz parte do jogo. Os juízes de primeiro grau, que são a maioria, são contrários ao nepotismo. Já os juízes de segundo grau, os desembargadores, são mais favoráveis. Isso é uma velha tradição que tem de acabar, e o conselho resolveu enfrentar.

Eles afirmam que o conselho não tem competência. Entendo que tem. Mas, na verdade, o que está oculto nesse debate é o desejo desses setores de manter a possibilidade de trazer seus filhos e parentes próximos para, digamos, alimentar o orçamento familiar.

Folha – O presidente da AMB, Rodrigo Collaço, diz que essa é uma visão patrimonialista do Estado. O sr. concorda?

Jobim – Concordo. É uma velha visão patrimonialista, em que a pessoa se apropria de quadros do Estado pessoalmente. Isso é muito comum na tradição brasileira.’