Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Greve ou quartelada?

I

Um dos dilemas da democracia moderna é constantemente enfrentar-se com o radicalismo político sem perder de vista os meios democráticos para sua própria defesa. Um dos meios de defesa da democracia é a discussão pública, um pouco ausente da mídia. Quando exércitos terroristas como o Hamas são abençoados como grupos ‘militantes’ pela mídia global, e a performance de atores da política é mais valiosa e eficiente do que a consistência ou verdade de suas bandeiras, este Observatório supre uma falta essencial, discutindo e criticando a mídia e, por extensão, os problemas sociais que ela não mostra com a profundidade desejada.

O problema da greve dos agentes de Polícia Federal é um caso de reticência e miopia da mídia que não mostra o que não procura ver, não responde ao que não pergunta. É verdade que a defesa da sociedade tem aparecido na mídia, mas essa defesa reduz o problema ao mero retrato dos inúmeros transtornos que o movimento causa, como filas intermináveis em aeroportos e obstrução à emissão de passaportes. No caso específico, porém, devemos ser justos com a mídia e convir que ela não mostra com clareza os motivos da greve porque esses motivos não são lá muito transparentes.

II

A greve em geral é um movimento legítimo, até mesmo para servidores públicos. A norma constitucional é daquele tipo que José Afonso da Silva chama de norma de ‘eficácia contida’, em que a regulamentação não cria o direito, mas limita o seu exercício, que na ausência de regulamentação é pleno e ilimitado. Isso não significa que todas as greves sejam legítimas. Mas o direito de greve é constitucional e pode ser exercido mesmo por quem não tem razão. Seja como for, o conflito faz parte da essência da democracia, e a ausência de conflitos é indício de ausência de democracia.

O problema é que o impulso que construiu o edifício jurídico democrático em 1988 não se completou e não previu instâncias democráticas de contenção do abuso de direitos. Por exemplo, não se conferiu a um tribunal superior a atribuição de ser a instância única de discussão e solução de conflitos de amplitude nacional entre a União e seus servidores, nos moldes dos tribunais trabalhistas que resolvem e conciliam dissídios coletivos de trabalhadores e empregadores.

Um movimento abusivo pode tornar a sociedade refém de suas reivindicações, forçando-nos a ‘dançar o samba do grevista doido’, sem maiores defesas institucionais. A busca de provimento judicial contra a greve é uma saída democrática para o conflito, ainda que imperfeita pela imperfeição do sistema jurídico.

A ‘guerra de liminares’, nesse caso, é um constrangimento à parte com melhor razão e um desconforto para a sociedade, que espera uma solução democrática, mas eficiente. A ausência de defesas democráticas acaba fazendo com que adeptos de soluções autoritárias culpem a própria democracia pelo abuso de direito. Que a União tenha de recorrer a 5 tribunais federais para obter decisão uniforme diante de dezenas de liminares autorizando ou proibindo o corte de vencimento e outras medidas de contenção do abuso de direito é uma conseqüência lamentável de um defeito estrutural do nosso Estado democrático. Mas é uma defesa democrática que sinaliza que o governo está disposto a respeitar o pacto constitucional, o que é essencialmente diverso do autoritário discurso do ‘chega de baderna’ de ontem.

Diante da falta de mecanismos mais eficientes de defesa da democracia, precisamos ocupar todos os espaços de persuasão existentes, e por isso é essencial algum espaço público de discussão das razões de cada lado do conflito. O que se revela, no caso específico desse movimento, é um caso raro de conflito em que um dos lados não tem direito nenhum, pelo menos na forma reivindicada. Mas como afinal se consegue sustentar um movimento ilegítimo sobre a bandeira do ‘cumprimento da lei’?

III

Um dos signos mais evidentes de abuso de direito de greve pelos agentes de Polícia Federal é a bandeira falaciosa do movimento. A lei cujo cumprimento reclamam é de 1996, e a movimentação da massa de agentes policiais apenas em 2004 já devia sinalizar algo suspeito. Mais uma suspeita de ilegitimidade é que o movimento não quer o que todos nós sempre queremos – aumento salarial, seja para reposição de perdas por inflação, seja para aumento real e valorização do cargo na carreira.

Quem não quer aumento não estabelece uma reivindicação que possa ser discutida e resolvida em conciliação. Não querem 10%, nem 20%, nem 50% de aumento. Não se pode formular uma contraproposta. Esse é um sinal de radicalismo do movimento. A retórica da greve ‘pelo cumprimento da lei’ é autoritária, porque o movimento auto-intitulou-se o único e o correto leitor da lei que reclama não ser cumprida. Por que não buscaram a Justiça, se era tão evidente o direito, se o governo descumpre a lei? Parece que mais interessa dizer que o outro lado é ‘ilegal’, porque o movimento já inicia sua performance com uma aura de legitimidade, difícil de ser esclarecida e desmistificada nos espaços públicos muito rápidos que temos hoje, os 15 segundos de entrevista à mídia. É a política da performance midiática que ganha terreno, em detrimento da discussão transparente e democrática. Para desmistificar essa aura de legitimidade, precisamos da paciência do leitor por um pouco mais de 15 segundos.

A Lei nº 9.266, de 15 de março de 1996, é uma lei de organização de cargos na carreira de Policial Federal, e apenas isso. Por um erro de percepção de quem reorganizou a corporação, imaginou-se que a exigência de escolaridade de terceiro grau para ingresso nos quadros do cargo de agente de Polícia Federal, que por natureza é de nível médio na hierarquia da corporação, garantiria maior aperfeiçoamento do quadro. O erro da lei não é responsável pelo movimento, mas talvez tenha criado o solo de insatisfação que nele se extravasa.

O cargo de agente de Polícia Federal, que não necessita por natureza de formação superior especializada, aperfeiçoa-se mediante dois critérios: (a) modo sério de ingresso na carreira (pela regra constitucional do concurso público, que para o cargo de agente poderia ter exigência de escolaridade equivalente ao 2º grau, inclusive para que seja um cargo disponível a um maior universo de pessoas) e (b) formação específica obrigatória em Escola de Polícia, similar à formação do militar em academias próprias, que lecionará assuntos específicos para a boa formação do policial.

O ‘nível superior’ exigido para ingresso em cargo que é por natureza de nível médio na hierarquia administrativa não é garantia segura de aperfeiçoamento do quadro, mas seguramente cria problemas, sendo o mais grave a constante inadaptação e frustração de profissionais que se voltam para a carreira policial sem escolha vocacional, ou para um emprego público que componha a renda familiar ao lado de outra atividade autônoma, e outros problemas do gênero. Teremos médicos-policiais, engenheiros-policiais, jornalistas-policiais, e toda sorte de formações superiores que nada dizem para a prática profissional do bom policial.

A crítica ao erro da Lei 9.266/1996, todavia, é totalmente lateral ao problema da greve, porque não existe uma leitura séria dessa lei que possa conduzir à conclusão de que ali está escrito, insinuado ou sugerido que os cargos de agente de Polícia Federal e de delegado de Polícia Federal sejam equiparados na carreira para quaisquer efeitos, muito menos em padrão remuneratório.

Para ingresso em cargo de nível médio pode ser exigido diploma superior sem que esse cargo seja alçado, na hierarquia da Administração, a uma hierarquia superior. O raciocínio da Federação dos Agentes de Polícia Federal, que alavanca o radicalismo do movimento, é inteiramente falso. Aplicam-se duas premissas verdadeiras que pertencem a gêneros diversos para produzir uma conclusão exorbitante às premissas.

Se é certo que (a) para ingresso na carreira de Policial Federal, no cargo de agente, passou a ser exigido nível superior (qualquer um), e que (b) para ingresso na carreira de Policial Federal, no cargo de delegado, é exigido nível superior, não é necessária a conclusão de que os cargos sejam iguais, a não ser no fato de serem cargos acessíveis mediante concurso no qual é exigido o terceiro grau de escolaridade.

O cargo de agente de Polícia Federal jamais foi considerado um cargo superior na estrutura hierárquica da corporação. É cargo intermediário, enquanto estiver em vigor a estrutura administrativa existente hoje. Na realidade, sob a falaciosa e simpática bandeira de fazer cumprir-se a Lei 9.266/1996, como aparece em letras garrafais na performance da greve, oculta-se, agora em letra miúda e disperso nos textos de divulgação sindical, a reivindicação real: unificar todos os cargos da carreira de Policial Federal.

No jornal Vanguarda, do SINPOFESC, edição de março de 2004, por exemplo, vê-se a contradição entre a bandeira nominal do movimento (na capa) ‘É GREVE…Para fazer o governo cumprir a lei’, e sua bandeira real, na página 3, em meio ao texto: ‘A greve de dezembro teve foco certo, o não-cumprimento da lei de 1996, mas mostrou todos os erros da atual estrutura da Polícia Federal. Mostrou erros e soluções, como o cargo único…’.

Aqui se esclarece toda a base de ilegitimidade do movimento. Se querem alterar todo o sistema de organização administrativa da Polícia Federal, os agentes têm o mesmo direito que todos nós, cidadãos comuns, temos – o de pleitear a mudança ao Poder Legislativo. Valer-se de meio coercitivo para pleitear reivindicação de natureza ‘igualitária’ não é exercício de direito constitucional de greve, mas abuso de direito. O ‘igualitarismo’ que fundamenta este movimento radical nada tem de democrático.

Querer mais (salário ou benefícios) para si é um pleito justo que deve encontrar canais democráticos de expressão, e a greve é um desses canais. Querer o que é dos outros, para igualar-se a outros, não é necessariamente justo. Será injusto se os outros não forem iguais em forma de ingresso na carreira, grau de dificuldade das atribuições, teor de responsabilidades do cargo e tantas outras características que – na vida prática – tornam as ocupações diferentes. Não é desmerecer uma atividade subordinada dizer que pela natureza da administração ela não é hierarquicamente igual a outras.

Todas as profissões e carreiras públicas, assim como todas as formas de trabalho humano, são iguais em dignidade. Todas as carreiras são importantes mas nem por isso são ‘iguais’. Nem mesmo a exigência, de acerto discutível, de igual nível de escolaridade para ingresso em todas os cargos da carreira significa que todos serão iguais por natureza. O igualitarismo é um ‘ismo’ porque é perversão cultural, deturpação radicalizada do valor da igualdade, que é sempre relativo a algo fora de si e nunca algo absoluto.

Devemos postular igualdade em direitos, igualdade em oportunidades, igualdade diante da lei, mas nunca igualdade real, substantiva, que solapa diferenças de mérito e empurra a sociedade para o conformismo e a uniformidade. Nem mesmo um pensador tão radical quanto Marx admitia o igualitarismo, que para ele era a ‘generalização da inveja’.

IV

Só o que há para negociar nessa greve é um retorno civilizado ao serviço. O problema é que a ‘histeria igualitária’ do movimento, produzido sobre bases falsas e ilegítimas, vem-se radicalizando, e já aponta para o perigo de converter-se em movimento de insubordinação armada. Mesmo que deponham as armas de propriedade pública, os policiais permanecem em poder de armamento pessoal, e já anunciaram que não estão muito dispostos a prestar obediência ao poder civil, seja executivo (que, apenas para lembrar, tem legitimidade pelo voto popular) ou judicial. Aqui é preciso abrir um parêntese para refletirmos sobre um aspecto crucial que aproxima as carreiras policiais à vida militar.

As corporações policiais que se dedicam à apuração de crimes, chamadas de ‘polícia judiciária’, na forma do pacto constitucional, são corporações da vida civil, e não da vida militar. É bom que seja assim, especialmente para a correta demarcação das funções militares num Estado democrático que luta, todo dia, enfrentando naturais reações, por libertar-se da herança da ditadura militar. Isso não significa que não exista entre a vida policial e a vida militar uma certa semelhança ética.

Assim como não devemos estimular o culto a valores militares na vida civil (até mesmo porque a coragem civil, valor democrático, é diferente da valentia militar), não podemos permitir que as instituições militares deixem de cultivar o tripé fundamental de valores de honra-disciplina-hierarquia. Se, por um lado, na vida civil prezamos o dissenso, a pluralidade, a conversa e a persuasão, em detrimento da coesão obtida pelo culto de valores militares, uma certa rigidez hierárquica na vida militar é um valor que serve à segurança da vida civil.

A insubordinação e desobediência civil, que podem representar legítima defesa de valores democráticos na vida civil, podem apresentar um viés autoritário na vida militar. Com propriedade, o promotor de Justiça Militar Marcelo Weitzel Rabello de Souza lembra que os pilares básicos da disciplina, hierarquia e honra, encontrados em todas as organizações militares mundo afora, têm função dupla, pois

‘transmitem segurança ao meio profissional militar, como também eficiência, além do que dizem respeito diretamente à segurança civil, até mesmo política, pois uma tropa disciplinada, mais obediente é ao comando do poder dirigente, evitando procurar soluções políticas pelos próprios meios’ (Marcelo Weitzel Rabello de Souza ‘Direito Penal Militar. Buscando alguns fundamentos que justifiquem sua repercussão penal’, em Boletim da Escola Superior do Ministério Público da União, ano I, nº 1, pp. 91/99).

Para imaginar o perigo da quebra de hierarquia, ‘basta imaginarmos um grande efetivo militar solto em uma comunidade, sem qualquer comando, sem abrigo (o quartel), sem diretrizes de ação’ (idem, p. 96).

A própria natureza das operações militares pressupõe que os valores de honra-disciplina-hierarquia, que formam a coesão da força militar, sejam incutidos à tropa, e se tornem uma espécie de instinto, assegurando a confiança de que se precisa em campo, onde ‘nem sempre é possível visualizar ou mesmo se comunicar entre os diversos grupos, tendo que se acreditar que os demais grupos estarão lá ou acolá, conforme o planejado, que a retaguarda estará bem disposta, etc., [por isso que] o sentimento pessoal que nutre e incentiva a operação é o da confiança … no colega de farda, que manterá seu posto, lhe assegurará o salvamento, conforme idealizado’ (idem, p. 97).

O movimento dos agentes de Polícia Federal, fundamentado em reivindicações de viés ‘igualitário’, na melhor das hipóteses, já representa enorme dano social, pois quebra seriamente a coesão da corporação, que com bastante dificuldade terá de ser ‘reconstruída’ sobre novas bases de confiança.

Gostem ou não os agentes federais recrutados dentre cidadãos com escolaridade superior, as tarefas de execução de operações policiais são atividades de natureza intermediária que se fundam por natureza na hierarquia de comandante-comandado. Ainda há diálogo possível, mas este deve voltar-se para a reconstrução da hierarquia sobre bases de confiança recíproca, cuja falta compromete a estrutura inteira da organização.

A solução radical contra o radicalismo do movimento, que seria a demissão dos grevistas e substituição do quadro por outro novo, é talvez excessivamente onerosa e poderia paralisar ou prejudicar seriamente o serviço da Polícia Federal por um tempo muito longo. Aqui será preciso tato para assegurar aos grevistas um retorno respeitoso (preferencialmente resguardando-se o ressarcimento dos dias parados, se forem percebidos os vencimentos), porque o movimento previsivelmente terminará sem grandes vitórias, e evitar a sedimentação de confrontos, ressentimentos e desconfianças. Por isso não devem os dirigentes permitir que o movimento ilegítimo, insuflado por lideranças radicalizadas em torno de idéias igualitárias, obscureça o fato de que os cargos intermediários da carreira de Policial Federal precisam de valorização adequada, possivelmente alguma reposição salarial, entre outras reivindicações que sejam discutíveis, sobre as quais se possa conversar de modo aberto, transparente e democrático.

V

A bandeira do igualitarismo não é nova na política. Fellini retratou-a de modo poético no seu filme Ensaio de Orquestra, ao enfocar uma greve de motivação igualitária em que os músicos se revoltam contra o ‘autoritarismo’ do regente. O filme termina com a dissolução da orquestra, em total desarmonia, porque, evidentemente, a hierarquia do maestro sobre os músicos não significa o que consideramos ‘autoritarismo’ na política.

A polícia é diferente da orquestra, porque não pode dar-se ao luxo de dissolver-se por desarmonia interna. A perturbação social e o caos trazidos pelo movimento, aliados à manifesta ilegitimidade de seus propósitos, sugerem que não estamos apenas diante de uma greve, mas de uma potencial quartelada.

Os contornos do movimento e sua iminente radicalização representam algum perigo à estabilidade democrática, para o qual as instituições de preservação devem estar vigilantes. A imprensa, como instituição de preservação da democracia, é um espaço legítimo de tentativa de persuasão aos servidores públicos em greve para que formulem suas reivindicações de maneira civilizada e democrática. Se o fizerem, então podemos todos discutir e repensar a estrutura geral da corporação policial. Alguém deverá lembrá-los, porém, que a esta discussão devem comparecer como cidadãos, iguais a nós outros, porque a discussão sobre a organização geral da corporação policial é de propriedade da sociedade toda. É intolerável que tenhamos de discutir assuntos nossos mediante coação de tropa armada e amotinada.

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Procurador da República, mestre em Direito pela UFSC e em Filosofia pela New School for Social Research, Nova York (maurelio@prsc.mpf.gov.br)