Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Estado de S. Paulo

LEGISLATIVO
Silvia Amorim, Alexandre Rodrigues, Thiago Décimo, Liege Albuquerque, Angela Lacerda, Evandro Fadel, Eduardo Kattah, Ricardo Rodrigues e Elder Ogliari

Utilização de TVs se espalha pelas Assembleias do País

‘Poderoso instrumento para promover a imagem do Legislativo, as TVs Assembleias estão presentes em três de cada quatro Parlamentos estaduais do País. Criadas para dar maior transparência ao trabalho dos deputados, elas custarão pelo menos R$ 58,4 milhões aos cofres públicos em 2009. Mas é justamente a falta de transparência, em particular na gestão dos recursos utilizados, a maior deficiência desses órgãos, considerados verdadeiras caixas-pretas.

A despesa com esses canais é quase o Orçamento da Assembleia do Tocantins. Mas isso é apenas uma parte dela. De um total de 20 casas legislativas estaduais detentoras de TVs parlamentares, 7 (Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Norte) não informaram ao Estado a previsão de gastos para 2009. A falta de publicidade não acaba aí. No caso das outras 13, o acesso aos dados financeiros somente foi possível mediante solicitação da reportagem, porque eles não aparecem discriminados nos orçamentos. Entram, em geral, no bolo de despesas com comunicação, que incluem diversos outros serviços.

O assunto despertou o interesse do setor acadêmico. Uma tese de doutorado inédita sobre o impacto dessas TVs no comportamento parlamentar, defendida em março deste ano na Universidade de Campinas (Unicamp), alertou para o problema. ‘Todas as TVs que estão em atividade, sem exceção, são financiadas com verba pública. Portanto, o acesso à informação sobre o custo delas deveria ser aberto e fácil’, diz a cientista social Márcia Jardim.

RECENTE E RESTRITA

Esse tipo de canal é uma experiência recente e ainda restrita no Brasil. Surgiu com a regulamentação das TVs a cabo e a reivindicação dos parlamentares por um canal imparcial e equilibrado que fizesse um contraponto à cobertura da imprensa, acusada por eles de dar mais espaço às denúncias do que à produção legislativa.

A pioneira foi a Assembleia de Minas Gerais, cuja TV completará em novembro 14 anos no ar. Saiu na frente até mesmo das TVs Câmara e Senado. Hoje apenas sete Estados não têm TV Assembleia. Em geral, só têm acesso às emissoras legislativas assinantes de TV paga. Apenas cinco Assembleias conseguiram espaço na TV aberta.

A gestão é, sem dúvida, o ponto mais questionável desses órgãos. Sem regras preestabelecidas, cada Assembleia monta o seu modelo, cujos pilares Marcia questiona. ‘O primeiro é o fato de os dirigentes dessas TVs serem pessoas nomeadas pela presidência das Casas, o que, em princípio, pode colocar em dúvida a independência da programação. Segundo, acho que, para um controle social melhor dessas estruturas, era preciso haver um conselho fiscal e editorial’, afirmou.

Hoje as TVs ficam suscetíveis à vontade dos deputados. É comum o abre e fecha dessas emissoras a cada troca de Mesa Diretora. A Assembleia de Rondônia, por exemplo, já teve uma TV legislativa, que hoje está fora de operação. Outro caso flagrante de ingerência aconteceu na Câmara dos Deputados na gestão do presidente Severino Cavalcanti (PP-PE) em 2005. Insatisfeito com uma entrevista em que ele gaguejou e foi ao ar ao vivo na TV Câmara – caindo no You Tube – , Severino afastou a diretora da TV.

‘São todas casas políticas e as TVs ainda dependem muito da visão da Mesa’, admite a presidente da Associação das TVs e Rádios Legislativas (Astral), Lúcia Helena Vieira. Sobre a falta de transparência das finanças dessas emissoras, Lúcia diz que é ‘uma cultura ainda a ser combatida’.

PROGRAMAÇÃO

Todas as TVs são obrigadas a veicular, sem cortes e ao vivo, as sessões em plenário. Isso é cumprido à risca. Mas, em nome da boa imagem do Legislativo, os técnicos sempre evitam mostrar descomposturas, como uma soneca ou um dedo no nariz. Os deputados mais vaidosos pedem para serem enquadrados no seu melhor ângulo.’

 

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DF tem emissora mais cara

‘A TV Assembleia proporcionalmente mais cara do País hoje é a do Distrito Federal. Ela custará neste ano cerca de R$ 4,2 milhões – ou R$ 1,75, em média, por habitante. A TV mais barata para os contribuintes é a baiana – R$ 0,14 per capita. Ela oferece, assim como a do DF, programação 24 horas em canal a cabo.

Há emissoras que funcionam com 20 funcionários e outras com 100. As mais enxutas são as de Goiás e Santa Catarina, com média de um funcionário a cada dois parlamentares. A Câmara do DF tem a maior relação – quase dois profissionais para cada deputado.

Na Paraíba, parte da equipe é de assessores cedidos pelos deputados. Para driblar a falta de pessoal técnico, muitas recorrem à terceirização. ‘Ter funcionários concursados é o que vai trazer ainda mais profissionalismo’, diz o diretor da TV do Amazonas, Flávio Assem. Em Santa Catarina, antigos banheiros hoje abrigam as ilhas de edição.’

 

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Câmera muda comportamento

‘A frequência e a variedade de deputados que comparecem à tribuna é grande. Não há mais nenhum parlamentar que se contente em ficar sentado à mesa, apenas ouvindo ou aguardando o momento para votar. Esses são alguns dos impactos constatados na rotina dos parlamentos com a abertura de TVs legislativas.

A cientista social Márcia Jardim, autora de uma tese de doutorado defendida neste ano na Universidade de Campinas (Unicamp), mediu os efeitos desses canais no comportamento dos parlamentares. ‘Ficou constatado que há, sem dúvida, uma preocupação com a exposição e isso gerou mudanças de comportamento. Vai desde um cuidado com a aparência até a melhoria e preparação dos discursos’, explica.

O estudo também verificou um lado perverso. Com a introdução da câmera 24 horas no Parlamento, os deputados ficaram mais resistentes a tratar de temas polêmicos. Funcionários das TVs relataram que têm dificuldades em conseguir interessados para participar de programas de debate na emissora quando o tema é delicado, como aborto e homossexualismo.

‘Há TVs que estão orientadas a não fazer imagens do plenário vazio e das reações de outros parlamentares que não estejam fazendo uso da palavra e do público presente nas galerias’, diz a pesquisadora.

Para Márcia, muitas emissoras ainda pecam pela ausência da população na programação. ‘Se é uma TV pública, precisa ouvir todos os setores. Senti falta da população nos programas.’’

 

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Pressão política é por sinal aberto

‘A principal reivindicação das emissoras parlamentares é a migração da TV a cabo para o canal aberto. A pressão aumentou com a criação da TV digital.. Uma reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está sendo pleiteada pelos presidentes de Assembleias. Numa visita ao Piauí no mês passado, Lula ouviu a reivindicação do presidente do Legislativo do Estado, Themistocles Sampaio Pereira Filho (PMDB). ‘Se o presidente der uma força a gente caminha mais rápido. Nós passamos mais de dois anos para conseguir a transmissão em TV aberta’, disse.

O Piauí é um dos poucos a ter a TV parlamentar em canal aberto. A concessão tem de passar pelo Ministério das Comunicações. A vantagem é o aumento de audiência e, com isso, maior visibilidade política.

A Bahia deu entrada a processo similar. O pedido de concessão foi feito em fevereiro. No último dia 17, o presidente da Casa, Marcelo Nilo (PSDB), reuniu-se com o ministro Hélio Costa. ‘É um passo importante na tentativa de dar mais transparência às atividades da Casa’, diz Nilo.

O presidente da Assembleia paranaense, Nelson Justus (DEM), também protocolou seu pedido. A TV do Rio Grande do Sul tenta obter de algum canal aberto um horário diário enquanto espera resposta do governo.’

 

MEMÓRIA
Roldão Arruda

Um liberal movido pelo amor ao País

‘Há 40 anos morria em São Paulo o jornalista Julio de Mesquita Filho. Ele dirigiu o jornal O Estado de S. Paulo, à frente da Redação, definindo a sua linha editorial, entre 1927 e 1969. Nesse período, o Estado se consolidou como empresa jornalística, tornando-se o mais importante veículo de mídia impressa na América Latina e conquistando respeito internacional. Avançou tanto em relação ao que se produzia no País que, segundo Claudio Abramo, em seu livro de memórias A Regra do Jogo, ficou sem concorrentes à sua altura. ‘O Estado era absoluto. Não havia nada que chegasse perto’, escreveu o jornalista, que foi secretário de Redação do jornal.

Mesquita Filho cuidava da parte editorial, enquanto seu irmão Francisco Mesquita conduzia as áreas de negócios e administração. Constituíam uma dupla afinada e inseparável. Francisco também morreu em 1969, no mês de novembro, quatro meses após o irmão.

Apesar do grande avanço registrado pelo Estado, em termos editoriais e empresariais, enquanto esteve sob a batuta de Mesquita Filho, qualquer tentativa de traçar seu perfil tendo como foco principal o jornalismo tende a ser rasa, incompleta. Revendo tudo que já se escreveu a seu respeito e também os textos autobiográficos que deixou, o que chama a atenção é o fato de jamais ter dissociado jornalismo e militância política.

Seu filho Ruy Mesquita, atual diretor de Opinião do jornal (leia entrevista na página ao lado), tem uma visão mais radical a respeito da questão. Para ele, o jornalismo foi uma simples decorrência do interesse do pai por uma questão maior. Uma questão chamada Brasil.

O dramaturgo Nelson Rodrigues, que manteve uma coluna no Jornal da Tarde nos anos 60, manifestou opinião semelhante em crônica publicada três dias após a morte do diretor do Estado. ‘Se me perguntarem qual a sua grande ou, melhor, a sua única paixão, eu diria: o Brasil. Só viveu para o Brasil, só pensou no Brasil’, escreveu o autor de Vestido de Noiva.

Então, para que o jornal? Mesquita acreditava que podia moldá-lo como um veículo forte, influente, independente e, sobretudo, destinado a ajudar nas mudanças políticas que considerava necessárias para o País. Nos 42 anos em que esteve à frente do Estado, sucedendo ao pai, Julio de Mesquita, foi para isso que ele trabalhou.

A soma de 42 anos é formal. Pelas contas de Mesquita Filho seriam 37, uma vez que ele se recusava a contar os cinco anos, de 1940 a 1945, em que o jornal esteve sob intervenção da ditadura de Getúlio Vargas.

A intervenção ocorreu porque o jornal não aceitava a ditadura e o seu diretor estimulava e até participava de articulações contrárias ao regime. Vargas já tentara calar sua voz, em 1938, despachando-o para o exílio. Mas, como ele não silenciou, continuando a definir, de sua base no exterior, a linha editorial, foi decretada a intervenção.

Esse foi o segundo período de exílio enfrentado por ele. O primeiro havia sido após a derrota da Revolução de 1932.

Os dois episódios evidenciam o já mencionado envolvimento radical com a política. Aliás, quem cruzar a biografia de Mesquita Filho com a história do Brasil, entre os anos 20 e 60 do século passado, em qualquer momento, verá que sempre estiveram entrelaçadas.

Do ponto de vista político, foi um período dramático para o País. Abrigou, entre tantas crises, a Revolução de 1930, que pôs abaixo a República Velha, a Revolução Constitucionalista de 1932, a luta pelo voto secreto, o Estado Novo, o ensaio democrático do pós-guerra, a ditadura militar, a edição do AI- 5.

Sempre ao lado dos paulistas, o diretor do Estado envolveu-se com todo episódio político importante. Ou, ainda citando Nelson Rodrigues, ‘esteve em todas’. O jurista e ex-deputado constituinte Aliomar Baleeiro chegou a dizer: ‘Ninguém poderá escrever a história de nosso País nos últimos 40 anos sem mencioná-lo.’

Os sinais da militância se espalham por toda parte. Quem folhear os livros do brasilianista John W. F. Dulles, dedicado analista da era Vargas, verá que Mesquita Filho aparece por ali com notável frequência. Sempre combatendo Vargas.

Em 1992, convidado a escrever sobre o centenário de nascimento do diretor do Estado, Antonio Candido disse que ‘quem o conhecesse bem, mesmo discordando de suas posições políticas (era o meu caso), respeitava suas posições culturais, admirando a coerência com que as concebia e o destemor com que lutava por elas’.

A expressão ‘destemor’, utilizada pelo crítico literário e fundador do PT, não parece exagerada quando confrontada com fatos biográficos. Por causa de suas posições, o diretor do Estado perdeu amigos, foi exilado duas vezes, esteve preso em 17 ocasiões, enfrentou a censura, foi chamado de turrão, reacionário, conservador.

Nada disso o demovia de suas ideias. Em 1948, em um discurso diante de alunos da USP, observou: ‘Dizia Renan que não deveria recear parecer fora de moda quem, em matéria política, quisesse que o futuro lhe desse razão.’

DESCONTENTAMENTO

Seu último embate foi com a ditadura militar. No dia 13 de dezembro de 1968, logo após a edição do AI-5, agentes policiais impediram a circulação do Estado, por causa do editorial Instituições em Frangalhos, com críticas ao marechal-presidente Arthur da Costa e Silva.

Impedido de se expressar livremente e descontente com os rumos dados pelos militares ao movimento que ajudara a articular, em 1964, o militante silenciou. A morte veio sete meses mais tarde, às 16 horas do dia 12 de julho de 1969, em decorrência de uma malsucedida operação de úlcera no estômago.

Na avaliação de Ruy Mesquita, a causa mortis verdadeira foi o desgosto político, que enfraqueceu sua saúde, forte até então. ‘Ele morreu de traumatismo moral’, diz o filho.

Mesquita Filho se definia como defensor dos ideais do liberalismo e opositor de qualquer tipo de totalitarismo, de esquerda ou de direita. Advogava um processo de regeneração política, capaz de livrar a República de governantes oportunistas e demagogos.

Para essa regeneração ocorrer, porém, era preciso modernizar o ensino no País. Seguindo esse pensamento, ele se tornou o mais aguerrido defensor da criação em São Paulo de uma universidade pública, nos moldes europeus. Ela seria, acreditava, o melhor caminho para se oferecer às elites conhecimento e consciência para promover a modernização e o progresso que o Brasil necessitava.

Roque Spencer de Barros, que foi professor da USP e dirigiu a Faculdade de Educação, escreveu que o esboço dessas ideias já estava no primeiro livro de Mesquita Filho, A Crise Nacional, de 1925. Mais tarde, à frente do jornal, ele abre espaço para o debate em torno da universidade. Convida o educador Fernando Azevedo para conduzir uma pesquisa sobre o assunto e traça um plano detalhado para a empreitada.

O plano foi aproveitado por Armando Salles de Oliveira, quando, no dia 25 de janeiro de 1934, à frente do governo do Estado, assinou o decreto de criação da USP. Salles de Oliveira era cunhado do diretor do Estado e havia sido nomeado interventor numa tentativa de cooptar o jornal e, com ele, importantes grupos políticos. A tentativa fracassou, conta a história.

Mesquita Filho também foi um dos mentores da proposta de trazer para o Brasil a ‘missão francesa’ – nome dado à equipe de professores franceses convidados para a primeira linha de frente de ensino na USP. Entre eles estava Claude Lévi-Strauss, expoente da antropologia e do estruturalismo.

O diretor do Estado gostava de manter contato com esses professores e intelectuais que visitavam o País. No começo da década de 60, manteve animada conversa com o pensador francês Jean-Paul Sartre, sobre o confronto entre Estados Unidos e União Soviética. Sartre saiu dizendo que nunca conhecera ninguém tão reacionário. Ruy Mesquita gosta de lembrar, no entanto, que a história acabou dando razão a seu pai.

O crítico literário Wilson Martins, professor emérito da New York University, escreveu que ‘a imagem final que dele nos resta é a de um homem que durante uma larga existência viveu apaixonadamente as próprias ideias.’’

 

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Colaboradores guardaram boas lembranças

‘O professor Paul-Arbousse Bastide, fundador da cadeira de política da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, na década de 30, guardava boas lembranças de Julio de Mesquita Filho, que o convidou para vir ao Brasil. Em artigo publicado em 1984, ele o chama de ‘fundador’ e ‘pai intelectual da USP’.

Ele diz também que todos os dias, após o fechamento da edição diária, o diretor do jornal abria sua sala de trabalho para receber os franceses. ‘A sede social do jornal O Estado de S. Paulo era então situada na Rua Boa Vista, num modesto imóvel ainda preservado, como então a quase totalidade, em São Paulo, contra aquilo que chamaram mais tarde ?a explosão vertical, tipicamente vertical?’, escreve. ‘Todos os dias, até bem tarde da noite, entre onze horas e meia-noite, Julio de Mesquita Filho aí se encontrava à disposição do grupo dos novos ?missionários? e desejava ser informado pessoalmente dos progressos da instalação da escola e de tudo o que pudesse facilitá-la.’

No mesmo artigo o professor francês lembra que a sala do diretor do Estado também abrigou várias vezes conferências abertas ao público, destinadas sobretudo a facilitar o contato dos franceses recém-chegados com os auditórios extrauniversitários. ‘Conferências públicas também foram organizadas na Sociedade de Geografia, na Rua Benjamin Constant’, diz ele. ‘Julio de Mesquita Filho seguia assiduamente, com seus amigos, todas as conferências, amplamente noticiadas pela imprensa de São Paulo e, especial, pelo Estado.’

O jornalista francês Gilles Lapouge, hoje vivendo em Paris, trabalhou durante 20 anos com Julio de Mesquita Filho. Diz se lembrar daqueles anos como ‘uma autêntica felicidade, e também como uma bela aprendizagem’.

Lapouge chegou ao Rio em 1951, contratado como redator, por recomendação do historiador Fernand Braudel. Mesquita Filho foi recebê-lo de carro,no Rio. Na viagem de volta para São Paulo, o diretor o surpreendeu ao falar fluentemente sobre literatura: ‘Mal podia crer nos meus ouvidos. Albert Camus, Jean-Paul Sartre, George Bernanos, Henry Montherlant: ele estava familiarizado com tudo o que havia de importante.’

Na opinião de Lapouge, expressa em artigo de 1982, essa paixão pela cultura esteve sempre associada à paixão política e às suas posições sobre o papel do jornal. Lapouge ainda anota que, embora suas opiniões nem sempre coincidissem com as do chefe, teve liberdade para expressá-las (leia mais sobre a relação entre Lapouge e Mesquita Filho no caderno Cultura). ‘E ele tinha um respeito absoluto pela honestidade intelectual.’’

 

Jornalismo e lutas

‘1892

Nasce, no bairro da Liberdade, em São Paulo, no dia 14 de fevereiro. Cursa o primário na escola pública Caetano de Campos. Mais tarde prossegue os estudos em Portugal e na Suíça. Ingressa em 1911 na Faculdade de Direito do Largo São Francisco

1915

Ainda estudante de direito, começa a trabalhar no Estadinho – nome dado à edição vespertina do Estado. Entusiasma-se com a campanha da Liga Nacionalista, liderada por Olavo Bilac, que defendia o fortalecimento cívico e o serviço militar obrigatório

1919

Na Bahia, acompanha Ruy Barbosa em campanha pela Presidência da República. Pela primeira vez seus textos são publicados no Estado. Admirador do estadista liberal, deu o nome dele a um de seus filhos, o atual diretor de Opinião do jornal, Ruy Mesquita

1921

Assume a secretaria de Redação do Estado. Apoia os movimentos tenentistas da década, a favor de reformas políticas. O nome do terceiro filho, Luiz Carlos, foi uma homenagem ao tenente Luiz Carlos Prestes, que admirou até ele se aliar a Getúlio Vargas

1927

Após a morte do pai, assume a direção do Estado, ao lado do irmão, Francisco Mesquita. Abre espaço para pesquisas e debates sobre educação e defende a criação de uma universidade em São Paulo. Em 1930 apoia a revolução que põe fim à República Velha

1932

Ajuda a articular a Revolução Constitucionalista – contra Vargas e a favor da convocação da Assembleia Constituinte. Participa do conflito armado. Derrotada a insurreição, é preso e deportado para Portugal, ao lado de outros líderes. Retorna em 1933

1934

O interventor em São Paulo, Armando Salles de Oliveira, assina o decreto de criação da USP. O decreto segue as propostas apresentadas pelo diretor do Estado, que vai buscar na Europa professores experientes para iniciar a empreitada

1937

O jornal se opõe ao Estado Novo, a ditadura de Vargas. Em represália, seus diretores são presos e exilados. Em 1940 a família Mesquita perde o controle do jornal para a ditadura, retomando-o em 1945. Esses cinco anos não são contados na história do Estado

1945

Lança, pela Livraria Martins Editora, o livro Ensaios Sul-Americanos, uma coletânea de ensaios históricos. Também são de sua autoria os livros A Crise Nacional (1925), A Europa Que Eu Vi (1945), Nordeste (1954) e Política e Cultura (1969)

1951

O jornal passa por notável período de crescimento e muda a sede para a Rua Major Quedinho, no centro da cidade. Cinco anos depois, em 1956, é criado o histórico Suplemento Literário, com projeto de Antonio Candido e direção de Décio de Almeida Prado.

1958

Para ampliar a área de ação da empresa, Julio e o irmão Francisco põem no ar a Rádio Eldorado. Oito anos depois, em 1966, surge o Jornal da Tarde. Sob direção de Ruy Mesquita, o jornal torna-se uma referência nacional, do ponto de vista editorial e gráfico

1960

Nas eleições presidenciais, apoia a candidatura de Jânio Quadros, contra o marechal Henrique Teixeira Lott. Seu objetivo era combater os herdeiros do varguismo. Logo após a vitória de Jânio, porém, rompeu com o presidente, que acabou renunciando

1964

O diretor do Estado apoia o movimento militar que depõe João Goulart. Para ele, trata-se de um contragolpe, pois estaria em curso um golpe contra a ordem constitucional. Mas no mesmo ano rompe com os militares, criticando os primeiros atos institucionais

1966

É eleito presidente da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP).. Critica o presidente, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, e prevê o endurecimento do regime militar. ‘É o império da força que por toda parte se vem impondo’, escreve

1968

O ‘império da força’, como previra, reduz ainda mais as liberdades democráticas e impõe ao País o AI- 5. No dia 13 de dezembro, o Estado é proibido de circular, por causa do editorial Instituições em Frangalhos, com críticas ao presidente Costa e Silva

1969

Morre, em São Paulo, no dia 12 de julho, desgostoso com os rumos políticos do País. O irmão Francisco morre quatro meses depois. Julio de Mesquita Neto assume a direção do Estado, já transformado no jornal mais importante da América Latina’

 

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‘Era incapaz de qualquer atitude hipócrita’

‘Quando Ruy Mesquita, diretor de opinião do Estado, nasceu, em 1925, seu pai, Julio de Mesquita Filho, o Doutor Julinho, já andava mergulhado na política e no jornalismo. Sua infância foi marcada por histórias de exílios, prisões, pressões políticas. Em meados da década de 40, ele começou a trabalhar na Redação do Estado, na terceira geração de jornalistas da família. Trabalhou ao lado do pai, até a morte dele, 40 anos atrás. Na semana passada, em entrevista ao repórter Roldão Arruda, ele falou sobre o pensamento político de Julio de Mesquita Filho, sua visão do jornalismo, a criação da USP. A seguir, os principais trechos da conversa.

JORNALISMO

O jornalismo para o meu pai só fazia sentido na direção da militância política, no melhor sentido da palavra. O jornal deveria funcionar como instrumento de aperfeiçoamento das instituições democráticas brasileiras, pelas quais ele não dava um tostão, após ter sido vítima da sua fragilidade e de ter enfrentado o exílio em duas ocasiões, a mando de Getúlio Vargas. Acreditava que, bem orientada, a imprensa serviria para o aperfeiçoamento das instituições democráticas. E é isso, aliás, o que ela faz hoje, embora com um estilo muito diferente do que ele usava na época.

PROFÉTICO

Quando criou a USP, ele pensava exclusivamente na formação de uma elite, no melhor sentido da palavra, capaz de administrar uma democracia digna desse nome. Constituída dentro dos padrões europeus, a USP seria o principal instrumento de institucionalização de uma sociedade que considerava culturalmente primária e em constante retrocesso político… Hoje, olhando para trás, vejo que foi profético. A história do Brasil contemporâneo se divide em dois períodos, antes e depois da USP. O País mudou radicalmente a partir da fundação da universidade e das consequências que ela teve.

ESTABILIDADE

Hoje parece óbvio e todo mundo fala sobre a importância fundamental da educação na formação de um país democrático. O meu pai já dizia isso nos anos 20, quando começou a pensar o Brasil. Sem uma boa universidade jamais poderíamos ter aspirações de uma estabilidade democrática. Essa estabilidade demorou muito, tivemos que passar por duas ditaduras, mas acabou chegando.

UM ESTRANHO

Foi benéfica e decisiva para meu pai a sua formação europeia. Como era um garoto muito rebelde, meu avô o exilou logo cedo em um colégio interno de Portugal, onde fez o curso primário. De lá seguiu para a Suíça. Frequentou o Colégio Lá Chateleine. A Suíça era, na época, o lugar mais civilizado do mundo, em termos de educação secundária, e com uma democracia das mais estáveis. Quando voltou, era um estranho num país que considerava politicamente selvagem.

TRANSPARENTE

Faltava a ele uma mínima dose daquilo que considero absolutamente necessário para se viver em sociedade, que é a hipocrisia. Era incapaz de qualquer atitude hipócrita. Falava o que pensava, não se arrependia depois.

ROBERT MCNAMARA

Lendo as notícias sobre a morte do McNamara, lembrei da vez em que ele visitou o jornal, como secretário da Defesa dos Estados Unidos. Meu pai, que falava a língua francesa melhor que os franceses, mas não falava nada de inglês, me chamou para ser o intérprete da conversa. Me fez traduzir críticas pesadas à política americana no Vietnã e à política externa daquele país.

REACIONÁRIO?

Nos anos 60, quando o Sartre e a Simone de Beauvoir foram passar um fim de semana na fazenda em Louveira, levados pelo Jorge Amado, meu pai expôs a eles suas ideias sobre o futuro da Guerra Fria, que estava no auge. Disse que o mundo comunista seria fragorosamente derrotado pelo mundo democrático, sob a liderança dos Estados Unidos. O Sartre comentou depois que nunca tinha visto um homem tão reacionário. A história, no entanto, acabou confirmando tudo que meu pai disse. Sartre, que não conseguia enxergar além da superfície dos fatos, é que era conservador.

INVENTÁRIO

Hoje se confunde grande jornalista com grande empresário. Meu pai, no entanto, não tinha nenhuma noção do que era ser empresário. Nunca pensou em ganhar dinheiro, nunca fez negócios fora da área do jornal (onde quem cuidava de fato dos negócios era o irmão dele, Francisco). Guardo até hoje, como um troféu, o inventário do meu pai, do qual constam as ações do Estado, o apartamento em que morava com minha mãe, a nona parte da fazenda de Louveira (que meu avô havia deixado para os filhos) e ponto final.

MORTE

Ele morreu de traumatismo moral. Quando viu, em 1968, o que aconteceu com a revolução que ajudou a fazer, escreveu aquele editorial, Instituições em Frangalhos, que levou à apreensão do jornal, e depois nunca mais voltou a escrever… Era um homem extremamente emotivo e nunca se conformou com os rumos do golpe de março de 1964

CONSPIRAÇÃO

Participei, ao lado do meu pai, da conspiração dos militares, em 1964, e conheço bem a história. Foi uma conspiração contra um processo de subversão da hierarquia militar, promovido deliberadamente pelo João Goulart… O presidente criou uma situação que a oficialidade média, que comanda a tropa, se sentiu inteiramente insegura e passou a conspirar para se defender… Se não fosse o erro do Jango no plano militar, não teria acontecido o que aconteceu.

BRASIL

Para ele, acima de tudo estava o Brasil. Depois vinha o jornal, a família.’

 

ARAGUAIA
Leonencio Nossa

‘Usurparam uma história alheia’

‘O empenho da jornalista e pesquisadora Myrian Luiz Alves em reconhecer as ossadas de guerrilheiros retiradas do Araguaia e esquecidas nos armários da burocracia de Brasília sensibilizou até durões oficiais da reserva que combateram os comunistas, nos anos 1970, na floresta amazônica. Militares perceberam, aos poucos, que a pesquisadora paulistana ligada ao PT desafiava até setores intocáveis da chamada área de direitos humanos, para entregar os corpos às famílias.

Sempre escondida em assessorias parlamentares, ela faz barulho nos bastidores políticos para identificar uma dezena de corpos guardados há anos em caixas no Ministério da Justiça. Myrian já assessorou figuras petistas, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atuou na CPI de Perus, na Assembleia de São Paulo, sobre desaparecidos políticos, e participou de trabalhos no Congresso sobre a Guerrilha do Araguaia.

Na semana passada, ela conseguiu uma vitória na guerra que travava para identificar os restos mortais do guerrilheiro cearense Bergson Gurjão Farias, finalmente reconhecido em meio à nova onda de pressões da opinião pública pela abertura dos arquivos e identificação de ossadas. Parte do que ganha como assessora de um deputado, Myrian gasta em viagens pelos grotões.

A pesquisadora defende a atual expedição do Ministério da Defesa de busca no Araguaia e diz que parte dos críticos do trabalho de cumprimento de uma sentença judicial não tem legitimidade para falar em nome da memória da guerrilha. ‘Usurparam uma história alheia’, afirma.

Por que se leva tanto tempo no Brasil para identificar as ossadas de guerrilheiros?

Não creio ser culpa do Brasil. Entre 1991 e 1992, guerrilheiros urbanos foram identificados sem problema ou demora inconsequente. Todos por antropologia ou antropometria. A demora na identificação da guerrilheira do Araguaia, Maria Lucia Petit, resgatada em 1991 e identificada em 1996, não ocorreu por causa dos métodos adotados ou do País.. É uma história – a da demora na identificação – que ainda terá de ser contada, ou devidamente esclarecida, como a de Bergson, agora identificado. Os dois estavam sepultados lado a lado, como mostra fotografia de sepulturas tirada em 1980. Identificações e acondicionamento de restos mortais de seres humanos deveriam estar sob responsabilidade de laboratórios adequados e de cientistas. Não podem ser cuidados por leigos ou arquivados em armário de escritório, em dependências de comissões. Não é possível, segundo o Código Penal, considerar correto esse procedimento. Isso não tem a ver com o Brasil e sim com brasileiros irresponsáveis e negligentes.

A identificação de corpos agora foi facilitada pela tecnologia?

Essa versão agora contada não convence. Pelo menos não em relação ao Bergson. A partir do histórico de seu sepultamento e exumação, análise de seu esqueleto, suas características físicas, entre outras constatações, médicos legistas ou não legistas consultados ao longo dos anos por essa pesquisa ficavam admirados com a falta de procedimentos. Foram muitas as denúncias publicadas pela imprensa. A desculpa era sempre mais uma mentira. Como a de agora, que vem a público dizer que dependeu de renovação tecnológica. Uma irresponsabilidade e uma ofensa à história, à ciência e à sociedade brasileira, que não é uma república de bananas como pretendem nos fazer crer utilizando trajetórias de pessoas que viveram uma guerra, a única que de fato existiu no País na década de 1970. Com envolvimento em campo de cidadãos de um perímetro gigante do País, com generais, coronéis das três Forças e com guerrilheiros que, pouco antes de abril de 1972, possuíam nome – em sua boa parte verdadeiros – e endereços na região.

Há uma indústria de desaparecidos?

Não há desaparecidos, como diz a juíza Solange Salgado. Mortos não andam. Há histórias ainda não apuradas adequadamente. Em nome dos que morreram, algumas pessoas puseram-se em seu lugar. Usurparam a história alheia e vivem politicamente disso. Resolver o problema traz ameaça à sua existência política atual.

O que achou da decisão do Ministério da Defesa de não incluir representantes da Comissão de Mortos e Desaparecidos nas novas buscas no Araguaia?

Representantes que encerram guerrilheiros no armário da comissão? Que mentem sobre procedimentos de identificação? A quem elas representam? O que fazem e o que são? Creio que há participação suficiente da sociedade, de observadores responsáveis nessa proposta utilizada para o cumprimento da sentença. Estamos falando de um cumprimento de sentença e não de excursão, como vimos algumas ‘viagens’ ao Araguaia sob responsabilidade dessa comissão, a começar pela de 1996. Sequer o relatório forense foi repassado ao então secretário de Direitos Humanos da época ou socializado com os grupos Tortura Nunca Mais ou, o que seria mais ético, com as famílias dos seis guerrilheiros apontados. Essa comissão não adotou procedimento adequado para esse corpo, devolveu dois sem exame final em 2003, não agiu e não age adequadamente em relação aos restos mortais encontrados na reserva indígena, um dos locais a serem checados agora.

Como se estrutura o chamado grupo de direitos humanos?

É importante fecharmos essa formulação ao tema que estamos tratando, sobre a Guerrilha do Araguaia. Imagino que pelo País afora ocorram ações efetivas em direitos humanos. Nunca, porém se reformulou o sistema de segurança pública nos Estados, uma das indicações dos relatórios iniciais de apurações sobre o período da ditadura. Há grupos dos quais não se pode chegar perto, porque existem donos. Aliás, é melhor não tentar nem chegar porque senão contamina. Como acontece em todas as áreas, nos direitos humanos também existem pessoas irresponsáveis e até mesmo desonestas. O ser humano pode ser corrupto em qualquer atividade, em especial, quando age em nome do público sem fiscalização.

Esse grupo é eficiente?

A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos não é eficiente, pelo menos não uma parte de seus integrantes, porque ela não se pronuncia pelo coletivo total. Ela atua dentro das dependências da SEDH, no prédio do Ministério da Justiça, ora se comporta como governo, ora como oposição, ora como familiar. Suas posições rendem um livro de contradições e vaivém. É, a meu ver, uma comissão desnecessária. Ela teve o papel de analisar processos de indenização de mortos e desaparecidos, mas nunca fez um chamamento aos camponeses. Teriam mais eficiência grupos independentes de direitos humanos, já que o que se apura são ações praticadas pelo Estado. Viver do Estado e dizer que está ali para apurar o que ele cometeu me parece uma posição contraditória.

A história da guerrilha é manipulada politicamente?

Manipulação já existia quando a guerrilha estava em curso. De lá para cá, a depender dos períodos que vivemos, a manipulação ocorre de um modo ou de outro. Geralmente, uma manipulação a cargo dos mesmos atores – ou melhor, atrizes, para não falar ‘atoras’, como ouvi esta semana (passada) na Câmara. Falar ‘atrizes’ denotaria um sentido pejorativo. No caso da guerrilha vou começar a entender que há atrizes mesmo.

Quem manipula?

De 20 anos para cá a guerrilha passou a ter ‘porta-vozes’. Não vi qualquer manifestação delas a respeito da identificação do Bergson e mesmo de Maria Lúcia, que de uma forma ou de outra estão sempre ligadas a essa e outras comissões.

Como as pessoas tiram proveito pessoal da história da guerrilha?

Como em todas as esferas da vida política, o rumo ficou desnorteado. Algumas pessoas precisam de ‘status’ para seu reconhecimento político. O sentido da atuação política para a evolução está meio desnorteado. A maioria dos que viveram e sofreram essa história é pouco procurada ou ‘afastada’ por pessoas mais oportunistas. A começar pela própria população, utilizada em seu sofrimento ao longo dos anos para contar historinhas que auxiliassem em processos pessoais de indenização. Guerrilheiros e guerrilheiras que participaram da história e perderam também companheiros e amigos não são chamados para manifestar suas opiniões. Alguns foram ouvidos pela petição de 1982, mas que, naquele momento, tinha outro objetivo.

Por que os camponeses não foram privilegiados pela política de indenização?

Em 2001, quando passei a frequentar a região e percebemos que havia todas as possibilidades de a população ser contemplada pela Lei da Anistia, cheguei a ouvir opiniões como ‘não são organizadas’, são ‘bate-paus’ ou sei lá o quê. Como se no critério para a anistia não fossem levados em conta históricos e analisado caso por caso. Se falamos em direitos humanos, então essa deveria ter sido a primeira parte a ser beneficiada por indenizações, porque é a parte mais sofrida. Guerrilheiros estavam lá acreditando numa causa, cientes do risco. Pelo caráter de muitos guerrilheiros que a gente passou a conhecer, mesmo não tendo a oportunidade de tê-los visto em vida, entendo que jamais permitiriam aquela barbárie contra a população e a barbárie posterior, sufocada pelo sofrimento e esquecimento de quase três décadas após a lei de 1979. Sem um apoio psicológico, social, de direitos humanos, até mesmo de um comprimido para aliviar sua dor física, mental e emocional. Levou quase três décadas para a população começar a ser vista, ouvida e incluída em benefícios que pretendem a reparação por atos cometidos pelo Estado, como ocorreu com militantes urbanos e rurais.

Quem está contribuindo mais para levantar a história da guerrilha, a esquerda ou os militares?

A Guerrilha do Araguaia, especificamente, reúne boa documentação, mesmo em cópia de original, cedida por militares ao longo dos anos. A imprensa publica informações desde a década de 1970. Investiga, conta histórias e traz, muitas vezes, novas informações. Sempre segui o levantamento colhido por Paulo Fonteles e estudo os documentos militares, como os oficiais de 1993, também não socializados na época para grupos de direitos humanos ou famílias que já poderiam tomar atitudes a respeito, como nos casos de Hélio Navarro Guimarães, Daniel Ribeiro Callado, Cilon da Cunha Brum e Maria Célia Corrêa, entre outros. Em 1996, Paulo Fonteles Filho apresentou fotografias de prisioneiros por ofício à Comissão Especial, que, como em outros casos, como o que já tratamos aqui, não tomou qualquer atitude para reconhecimento de militares que posaram para aquela foto, por exemplo, de Antonio de Pádua, o Piauí, preso, agachado em frente à tropa. Um ‘desaparecido’, que o relatório de 93, da Marinha, informa ter sido preso e morto. Não questionaram sequer se a foto foi tirada momentos antes de sua execução, como uma preparação de um ritual que, agora sabemos com certeza, teria sido utilizado para 41 pessoas, sem direito a defesa, sem julgamento, 16 a mais do que se sabia antes.’

 

VENEZUELA
Ruth Costas

Chávez limita compras de ‘livros de direita’

‘Há pelo menos três livrarias no aeroporto de Caracas, mas se estiver em busca de um escritor consagrado da literatura latino-americana para passar o tempo antes do embarque, o visitante sairá frustrado de qualquer uma delas. O colombiano Gabriel García Márquez? ‘Não.’ O mexicano Carlos Fuentes ou o argentino Julio Cortázar? ‘Também não.’ O peruano Mário Vargas Llosa? ‘Nem pensar, só tenho esses aqui’, diz a vendedora, desconcertada, apontando para uma estante quase vazia que começa com ‘Culinária para Crianças’ e termina numa série de análises sobre o socialismo do presidente Hugo Chávez

No centro da capital venezuelana ou em bairros de classe média a situação é a mesma. ‘As autoridades não estão liberando dólares para importar livros, papel ou tinta. E não adianta dizer que o problema é a crise, pois sabemos que há uma questão ideológica por trás disso: para esse governo, literatura ?desengajada? não é prioridade’, diz Andrés Boersner, dono da tradicional livraria Noctua.

Também estão em falta muitos clássicos, livros universitários e técnicos. ‘Hoje, de 50 títulos que me pedem, não tenho 45’, conta Boersner. ‘Fiquei deprimido ao entrar numa livraria em Barcelona e ver todas as novidades literárias que não chegam mais na Venezuela.’

O curioso é que a situação chegou a esse ponto apenas três meses depois de Chávez ter anunciado seu ‘Plano Revolucionário da Leitura’, cujo objetivo é ‘estimular a leitura para ampliar a consciência’. Mas é claro que não é qualquer leitura. Apenas a que ‘desenvolva uma ética socialista’ e ‘desmonte o imaginário capitalista para dar novo contexto à história’.

As bibliotecas públicas receberam caixas e caixas de obras ‘revolucionárias’: coletâneas de discursos de Chávez, livros escritos por ministros, Cartas de Marx para Engels, o diário de Che Guevara na Bolívia e biografias de Simón Bolívar. Estão sendo organizados em bairros pobres os ‘Esquadrões Revolucionários de Leitura’, cujo objetivo é ‘refletir e contribuir para a construção do socialismo do século 21’.

E apesar de as editoras privadas não conseguirem importar papel, tinta e peças para seu maquinário, editoras ligadas ao governo distribuem milhares de livros a preços que não passam de US$ 2. Mais uma vez, não são quaisquer livros. Há sim, alguns clássicos como Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, mas a maior parte é o que as autoridades definem como ‘livros de esquerda’.

IDEAIS SOCIALISTAS

‘Recuperamos obras que estavam esquecidas, pois antes só havia espaço para a literatura de direita’, disse ao Estado Miguel Márquez, presidente da editora Los Perros y las Ranas, ligada ao governo. Ela foi criada em 2006, ao receber uma doação de Cuba, e já distribuiu 50 milhões de livros. ‘São livros que contribuem para humanizar nossa sociedade, ou seja, para acabar com a valorização do dinheiro, típica do capitalismo, e impulsionar o socialismo.’

Enquanto isso, as obras ‘não revolucionárias’ são cada vez mais raras. ‘Tradicionalmente, mais de 80% dos livros lidos na Venezuela são importados de países como México e Espanha, mas agora eles chegam a conta-gotas’, diz Yolanda de Fernández, da Câmara Venezuelana do Livro. Ela explica que, desde 2008, o governo passou a exigir um ‘certificado de não produção ou produção insuficiente’ para a importação de livros. Ou seja, hoje a rede que quiser comprar qualquer título precisa esperar a emissão de um documento que diga que ele não é publicado na Venezuela.

Se o processo já era complicado nos últimos meses, com a queda do petróleo pressionando as reservas de Chávez, tornou-se ainda mais lento. ‘Mesmo com o certificado, os dólares para importar livros simplesmente não são liberados’, diz Yolanda. Como o limite para as compras externas é cada vez menor, as distribuidoras preferem, quando podem, comprar best sellers (como o brasileiro Paulo Coelho) , o que reduz ainda mais a variedade de títulos em circulação no país.

O resultado desse processo é o que a oposição vem chamando de ‘a revolução cultural do presidente Chávez’.

‘As autoridades deste governo não conseguem entender, afinal, para que serve um livro de poesia ou um Dostoievski’, diz Boersner. ‘Eles só sabem que não devem acrescentar muito à sua revolução.’’

 

AFEGANISTÃO
Roger Cohen

Internet não substitui o repórter

‘Logo após a 1ª Guerra Mundial, o sociólogo alemão Max Weber proferiu uma conferência em Munique sobre jornalismo.

‘Nem todos percebem que escrever um texto jornalístico realmente bom exige tanto do nosso intelecto quanto um trabalho acadêmico’, disse ele aos estudantes. ‘Isso se aplica especialmente quando estamos reunindo material para um artigo que tem de ser escrito no momento e tem de ter repercussão imediata, mesmo sendo produzido em condições totalmente diferentes de quando realizamos uma pesquisa acadêmica. No geral, ignoramos que a verdadeira responsabilidade de um jornalista seja muito maior do que a de um acadêmico.’

Sim, jornalismo é uma questão de gravidade. A tendência hoje é a de destruir a reputação em vez de elogiar a mídia.

Em meio aos gritos de doutrinação partidária envolvendo a posse do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, e os toques de sinos anunciando a morte da imprensa, uma verdade fundamental se perde: a de que ser jornalista é ser testemunha dos fatos. O resto é decoração.

Ser testemunha dos fatos significa estar presente. Nenhum buscador na internet consegue transmitir o odor de um crime, o tremor no ar, os olhos que ardem, os ecos de um grito.

Nenhum buscador de notícias vai lhe falar sobre a cidade devastada suspirando ao anoitecer, nem dos gritos desafiadores ouvidos noite adentro. Nenhum milagre da tecnologia pode reproduzir essa sensação de boca seca que o medo causa. Nenhum algoritmo vai capturar a dignidade sem alarde, não vai provocar a carga de adrenalina que se funde com a coragem nem expor as marcas ainda frescas de uma chicotada.

INDIGNAÇÃO

Confesso que, longe do Irã, sinto-me consternado. E tenho refletido sobre a responsabilidade de ser uma testemunha dos fatos . É algo singular: a conexão não quer dizer presença.

Uma parte de mim ficou em Teerã, entre as praças Enquelab (revolução) e Azadi (liberdade), onde vi o povo iraniano se insurgir aos milhões, reclamando seus votos e protestando contra a violação da Constituição.

Nós, jornalistas, devemos seguir adiante. É o que costumamos fazer, como voyeurs insaciáveis. Mas uma vez em mais ou menos uma década isso não acontece. É como se estivéssemos apaixonados. Mas o objeto do nosso amor se vinga, vira o jogo e não nos deixa ficar.

A Constituição iraniana estabelece que o presidente do país é eleito ‘por voto direto do povo’ e não pela invocação fictícia da vontade de Deus. O aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da Revolução de 1979, disse em 1978 que ‘nossa futura sociedade será uma sociedade livre e a pressão, a crueldade e o uso da força serão destruídos’.

O regime ficou enfraquecido diante da mentira flagrante, que hoje só é corroborada pela força. Nenhum processo com fins propagandísticos poderá transformar essa mentira em verdade.

Fui um dos últimos jornalistas ocidentais a deixar Teerã. Ignorei a revogação do meu visto de jornalista e permaneci ali enquanto foi possível. Fiquei profundamente revoltado com a submissão ao grupo que cerca Ahmadinejad, que se apossou do poder quebrando o equilíbrio das instituições da revolução e cujo objetivo ficou claro: afastar qualquer testemunha ocular do crime.

Os iranianos testemunharam os acontecimentos – com imagens de vídeo em celulares, com fotografias, por meio do Twitter e outras redes sociais – conseguindo, assim, uma indelével acusação global dos usurpadores de 12 de junho.

Jamais Ahmadinejad falará novamente em justiça sem ser arruinado pelo efeito Neda – a imagem dos olhos sem expressão, a vida se extinguindo e o sangue escorrendo pelo rosto da jovem manifestante Neda Agha Soltan, baleada no peito em Teerã, no dia 20.

O Irã oprime o povo com sua tragédia. Foi insuportável partir. Ainda é. As imagens multiplicam-se pela internet, mas a mídia tradicional, disciplinada para destilar esses fatos, se omitiu.

O mundo ainda observa. Nós, americanos, quando celebramos nosso Dia da Independência, no dia 4, deveríamos ter nos colocado do lado do Irã, recordando a primeira revolução democrática na Ásia, ocorrida em 1905, justamente no Irã.

Hoje, 104 anos depois, os iranianos exigem que sua Constituição seja respeitada. Eles não serão silenciados. A base do regime diminuiu dramaticamente. E as divisões internas aumentam com a deserção de parte do establishment clerical.

Nas minhas memórias, volto a estar na Praça Ferdowsi, no dia 18. Uma mulher me diz com entusiasmo: ‘Esta terra é minha terra.’ Ela diz que Ahmadinejad é um ‘halo sem luz’ – frase do hino nacional do Irã.

De um lugar distante ainda ouço esses sons e sinto como se essa distância fosse uma traição não só a todas essas corajosas vozes que podem ser ouvidas noite adentro, mas também à ‘verdadeira responsabilidade’ de um jornalista.

* Roger Cohen, colunista, é especialista em política externa’

 

TELEVISÃO

Especialistas tratam das possibilidades da TV digital

‘A comunicação vive a multiplicidade tecnológica e a convergência das mídias. Nesse contexto, desenvolve-se a implantação da TV digital no Brasil. Professores, estudantes, especialistas e profissionais se perguntam quais são os conteúdos mais adequados para o formato. Tais questionamentos motivaram a confecção de 18 artigos reunidos neste livro pela Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós). O volume possui três seções: Perspectivas/Tendências; Linguagem/Fruição; e Cenários/Modelos. E reúne a produção de especialistas de diferentes universidades, entre eles Arlindo Machado (PUC-SP) e Carlos Scolari (Universitat de Vic, Espanha).’

 

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