Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Onde o calo dói

No auge da disputa eleitoral de 2010, quando o governo e a grande mídia
faziam acusações mútuas, o presidente Lula, em entrevista concedida ao portal
Terra, travou o seguinte diálogo com seus entrevistadores:




Terra – (…) O senhor tem feito críticas duras, dizendo que a imprensa, a
mídia tem um candidato e não tem coragem de assumir e, ao mesmo tempo, o
contraditório diz que existiria um Projeto Político (…) para ‘enquadrar meios
de comunicação’. (…) O que mais incomoda o senhor: é a cobertura (ser) crítica
de um lado e não existir a investigação sobre os demais candidatos? Seria isso?
(…) O senhor está dizendo que ela
[a imprensa] é desequilibrada? Só
está cobrindo um lado e não está cobrindo…


Presidente Lula – (…) Eu acho que a imprensa está cumprindo um papel
importante quando ela denuncia. Por quê? Ou você sabe por que alguém denunciou,
ou você sabe por que alguém cobriu ou você sabe por que saiu na imprensa. Quando
sai alguma coisa na imprensa você vai atrás. (…) Vou te dar um exemplo, sem
citar jornal. Na campanha passada, os caras diziam, ‘porque o avião do Lula…’,
porque o Aerolula… Passando para a sociedade, disseminando umas bobagens, vai
despolitizando a sociedade. Agora, estão dizendo que a TV pública é a TV do
Lula. Nunca disseram que a TV pública de São Paulo é do governador de São Paulo
e as outras são dos outros governadores. Agora, uma TV para um presidente que
está terminando o mandato daqui a três meses, é a TV Lula. Ou seja, esse
carregamento de… composto de… de muita… de muita, eu diria, de muito
preconceito ou de muita até, eu diria até, às vezes, ódio, demonstra o que?
(…) [a imprensa] se comporta como se o pessoal da Senzala tivesse
chegando à Casa Grande. (…) Agora, a verdade é que nós temos nove ou dez
famílias que dominam toda a comunicação desse País. A verdade é essa. A verdade
é que você viaja pelo Brasil e você tem duas ou três famílias que são donas dos
canais de televisão. E os mesmos são donos das rádios e os mesmos são donos dos
jornais…


Terra – Nos municípios, isto tem uma capilaridade: o chefe político tal…


Presidente Lula – Então, muita gente não gostou quando, no governo, nós
pegamos o dinheiro da publicidade e dividimos para o Brasil inteiro. Hoje, o
jornalzinho do interior recebe uma parcela da publicidade do governo. Nós
fazemos propaganda regional e a televisão regional recebe um pouco de dinheiro
do governo. Quando nós distribuímos o dinheiro da cultura, por que só o eixo Rio
– São Paulo e não Roraima, e não o Amazonas, e não o Pernambuco, e não o Ceará
receber um pouquinho? Então, os homens da Casa Grande não gostam que isso
aconteça. (Ver
aqui a íntegra
da entrevista.)


No trecho da entrevista acima reproduzido, o presidente Lula atribui o
comportamento desequilibrado da mídia brasileira (1) ao fato de que ‘nove ou dez
famílias’ controlam a comunicação no país; (2) ao preconceito em relação a um
operário ter chegado à presidência da República; e (3) à política de
regionalização das verbas oficiais de publicidade iniciada em seu governo.


Que a grande mídia brasileira é olipolizada, fundada na propriedade cruzada
dos meios e controlada por algumas poucas famílias, em grande parte vinculadas
às velhas oligarquias políticas regionais e locais, é fato comprovado e sabido.


Que existe preconceito das ‘elites’ brasileiras em relação à ascensão
política de um operário e migrante nordestino que conquistou, em processo
democrático e pelo voto, por duas vezes, a presidência da Republica, é tema que
tem merecido a atenção de analistas e cientistas políticos pátrios faz
tempo.


Estou, todavia, interessado na regionalização das verbas oficias de
publicidade.


Mudança radical


De fato, uma importante reorientação na alocação dos recursos publicitários
oficiais teve início em 2003: sem variação significativa no total da verba
aplicada, o número de municípios cobertos pulou de 182 em 2003 para 2.184, em
2009, e o número de meios de comunicação programados subiu de 499 para 7.047, no
mesmo período (ver quadros abaixo).




Essa política de regionalização atende aos melhores princípios da ‘máxima
dispersão da propriedade’ [ver, neste Observatório, ‘Concessões
de Rádio & TV: Pela máxima dispersão da propriedade
‘], promove a
competição no mercado de comunicações, estimula o mercado de trabalho do setor
e, acima de tudo, colabora para o aumento da pluralidade e da diversidade de
vozes na democracia brasileira.


Há ainda um longo caminho a ser percorrido para que o Estado cumpra o seu
papel e contribuía efetivamente para o cumprimento do ‘princípio da
complementaridade’, isto é, do equilíbrio entre os sistemas privado, público e
estatal de comunicações, como reza o artigo 223 da Constituição de 1988.


Para isso, a reorientação da distribuição dos recursos da publicidade oficial
precisa contribuir, de fato, para o surgimento e a consolidação dos sistemas
público e comunitário de mídia no país.


De qualquer maneira, ao final de dois mandatos, a mudança de orientação na
distribuição das verbas oficiais de publicidade ficará na história como talvez a
principal contribuição do governo Lula no sentido da democratização das
comunicações.


Dedo na ferida


Nunca é demais lembrar que o Estado tem sido – direta ou indiretamente – uma
das principais e, em muitos casos, a principal fonte de financiamento da mídia
privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica. Basta verificar quais são os
maiores anunciantes dos jornais, das revistas semanais e dos telejornais das
redes de televisão privadas do país.


Não é sem razão que colunista – e não os proprietários – da Folha de
S.Paulo
já acusou o governo Lula de estar promovendo ‘Bolsa-Mídia’ para uma
‘mídia de cabresto’ e de ‘alimentar uma rede chapa-branca na base de verbas
publicitárias’ [cf. Fernando de Barros e Silva, ‘O Bolsa-Mídia de Lula’ in
Folha de S.Paulo, 01/06/2009 disponível
aqui
, para assinantes].


Talvez a reorientação da distribuição dos recursos da publicidade oficial
explique muito do comportamento da grande mídia nos últimos anos. Afinal, o
governo Lula colocou o dedo na ferida, ou melhor, a grande mídia sabe exatamente
onde o calo dói.

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Professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Editora Publisher,2010