Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Propinas e campanhas

Os quatro mais influentes jornais brasileiros – Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Valor e O Globo – deram na terça-feira (17/12) a desistência de José Serra da candidatura à presidência da República pelo PSDB sem estabelecer nenhuma relação com a denúncia de corrupção em compras de produtos e serviços para os sistemas de metrô e trem de São Paulo, objeto de noticiário que cresce de intensidade desde agosto.

Será que ninguém pensou que uma coisa possa, em alguma medida, ter a ver com a outra? Ou seja: Serra pode ser atingido por essa avalanche e Aécio, não? Será que pensaram e descartaram a hipótese? Ficam as perguntas.

Em entrevista ao Valor (12/12), o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, descarta qualquer participação de antecessores – cita nominalmente Serra, Gilberto Kassab e Marta Suplicy – nos esquemas da “máfia do ISS” paulistana. Isso não bate com a percepção de pessoas do mercado imobiliário.

Não foram “R$ 500 milhões”

Caso se comprove a tese de Haddad, os cidadãos devem atentar para o fato de que importantes funcionários da grande máquina pública que é a prefeitura de São Paulo pintavam e bordavam sob o nariz de seus chefes sem ser percebidos. Relata-se que o famoso Hussain Aref Saab, destronado do Aprov (em seguida extinto) e agora réu em processo por improbidade administrativa, trabalhava numa sala com muita gente mais e não falava em voz baixa, mas aos berros, o valor das propinas supostamente pedidas, que, segundo ele, não existiram e não têm relação com os 106 imóveis que ele e familiares possuem.

Todas essas histórias de supostas cobranças de propinas não foram ainda devidamente apuradas. Repete-se exaustivamente que a prefeitura paulistana “pode ter perdido até R$ 500 milhões” em valores de ISS “aliviados” pelos fiscais, mas essa conta está errada.

Valores forjados

Explique-se didaticamente o seguinte.

1. Até algum tempo atrás, as construtoras de imóveis não tinham que recolher o ISS devido pelas empresas que lhes prestavam serviços. Em dado momento, alguém descobriu que havia esse furo arrecadatório e normatizou a cobrança.

2. Essas contas são sempre obscuras e os fiscais, rapidamente, começaram a inventar valores que as empresas sabiam ser exagerados.

3. Quanto mais alto o valor de ISS arbitrado, maior seria o valor da propina pedida.

4. Havia, portanto, um jogo de faz de conta, mas as construtoras concordavam em pagar valores exagerados de propina porque lhes era sugerido ou dito abertamente que uma parte ia para “campanha eleitoral”.

5. Para se saber quanto o município perdeu em imposto efetivamente devido seria preciso que uma equipe de auditores se debruçasse sobre milhares de contas de centenas de empreendimentos, o que levaria muito tempo e sairia mais caro do que qualquer outra opção. Para se ganhar em exatidão, portanto, bastaria que a imprensa parasse de falar em “prejuízo que pode chegar a R$ 500 milhões” e trocasse esse refrão por algum do tipo “prejuízo que não é possível calcular”. Mas isso, claro, não será feito, porque existe um fetichismo por números.

6. Nem todas as construtoras concordaram com o esquema. Pelo menos uma grande começou a depositar em juízo o valor arbitrado pelos fiscais para uma obra e, cinco anos depois, ganhou a causa na Justiça, como noticiou o Estado de S.Paulo em novembro.

7. Cobrança de ISS não era a única modalidade usada pelos supostos picaretas da prefeitura: o mundo da corrupção é uma usina de criatividade.

O ex-secretário

Na entrevista ao Valor, Fernando Haddad nega enfaticamente que o seu ex-secretário da Casa Civil, o hoje novamente vereador Antônio Donato, também coordenador de sua campanha eleitoral e ex-presidente do diretório municipal do PT, tenha recebido propina, como repetiu mais uma testemunha, Eduardo Horle Barcellos, que citou também um alto funcionário da administração de Haddad em função, Douglas Amato, subsecretário de Finanças (noticiário de 17/12).

Em entrevista à revista São Paulo, da Folha de S.Paulo, Haddad diz que “acusar Kassab, Donato, Mauro Ricardo de coisas que [sic] dificilmente qualquer um deles tinha conhecimento acho até uma irresponsabilidade”.

Há boas passagens nas entrevistas de Haddad, mas a acima copiada não está entre elas e até as contradiz. Vejamos uma delas:

Valor: O senhor foi muito criticado por deixar a política em segundo plano. Uma gestão sem política dá conta dos problemas da cidade?

Haddad: Depende de como você vê a política. Tem uma velha forma de governar que precisa ser superada no Brasil , que é a demagogia, a falta de seriedade na condução das coisas públicas, e não estou para isso. Se esse for o jogo, não me interessa. (…).”

Não há como saber se os inquéritos relativos à “máfia do ISS” chegarão a escalões acima dos já atingidos, mas é bom ter em mente esse universo de tenebrosas transações num momento em que o STF discute se empresas podem ou não doar oficialmente para campanhas eleitorais. O “caixa 2 oficial de campanha”, chamemo-lo assim, pode ser só a ponta do iceberg.