Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ri melhor quem ri apesar de tudo

No início dos anos 1960, Antonio Maria, o maior cronista do Rio de Janeiro, irritava, com suas colunas no jornal getulista Última Hora, o adversário Carlos Lacerda, do diário Tribuna da Imprensa. Cobrindo a madrugada carioca, irritava também Coice de Mula, um policial violento que gostava de bater e anos antes havia matado o jornalista Nestor Moreira, de pancada. Não se sabe até hoje de onde partiu o ataque, mas um dia espancaram Antonio Maria, quebrando especialmente suas mãos. No dia seguinte saiu o artigo de Maria sem qualquer menção ao espancamento, mas na última linha, a vingança:

– Que tolos! Eles pensam que jornalista escreve com as mãos.

Em 1973, na esteira do golpe de Estado no Chile, o professor de jornalismo, cantor, compositor, poeta e ativista defensor do governo de Salvador Allende, Victor Jara, foi preso e, ao ser identificado como o autor das músicas de protesto, acabou atacado por socos e pontapés truculentos que visavam suas mãos. O policial exigiu que o não fumante apanhasse um cigarro aceso do chão e, ao tentar cumprir a ordem, Jara teve as mãos esmagadas pelo coturno do torturador. Morreu com 44 marcas de tiros no corpo, mas teve tempo de passar ao colega de cela um poema escrito a lápis – “Canto que mal le sales/ quando tengo que cantar espanto…/” Seu manifesto saiu num disco póstumo, em 1974: “Yo no canto por cantar/ Ni por tener buena voz/ Canto porque la guitarra/ Tiene sentido y razon”.

O maior poeta de sua geração, que também era dramaturgo e apoiador da Frente Popular Marxista, o espanhol Federico García Lorca foi fuzilado em 1936 numa emboscada por soldados do general Francisco Franco – que para maior humilhação o assassinaram de costas, em alusão à sua homossexualidade. O autor do manifesto Mundo Obrero era um lapidador de palavras, como o melhor dos jornalistas,

Antonio Maria, Victor Jara e Federico García Lorca estão vivos e influenciando gerações, vingaram eternos, e a história sequer registra o nome de seus assassinos e torturadores.

Uns são da luz, outros, das trevas.

Uns são do riso, outros, homens-bomba.

“Nossas caveiras”

Nunca se viu como nos últimos dias maior manifestação mundial pela liberdade da imprensa justo quando se pensava que ela estava em extinção.

Em A História do Humor Ocidental, Jacques Le Goff eleva o riso ao fenômeno social mais completo; ele exige pelo menos duas ou três pessoas, reais ou imaginárias, uma que provoca o riso, uma que ri e outra de quem se ri, e também de pessoas com quem se ri. Le Goff conta como o riso era obsceno para os monges do século 5 que cultivavam o silêncio monástico, uma virtude aprendida nas regras impostas. A gargalhada seria uma grosseria para os filósofos gregos. Mas enquanto o riso era proibido na Idade Média e Platão (427-348 a.C) denunciava “o maléficio do prazer do riso”, atingindo em cheio Demócrito, nascido em 460 a.C e conhecido como “ o filósofo que ri”, Aristóteles (384-322 a.C) afirmava que o riso apaziguava e servia de válvula de escape para as paixões.

Ainda bem que com Rabelais, Kant, Kierkegaard, Schopenhauer, Freud, Bergson, Nietzsche e Bakhtin o riso foi reabilitado, considerado democrático, provocador de cócegas no cérebro. O humor é um dos indícios da inteligência humana. Ou o homem não é o único animal que ri?

A função do riso é comunicar. Freud valorizava humoristas como agentes sociais, e dizia que o prazer proporcionado pela graça era suficiente para justificar o trabalho daquele que fazia rir. Rir, cura.

Tivemos humoristas da palavra como o Barão de Itararé, Stanislaw Ponte Preta, Oswald de Andrade, Max Nunes. E os do traço desde os tempos imperiais como os de Ângelo Agostini aos nossos dias, com Henfil, Millôr, Ziraldo, Chico e Paulo Caruso.

Num artigo na edição corrente de Época, Paulo Caruso conta como os humoristas do Charlie Hebdo influenciaram os cartunistas brasileiros. Cita o mestre insolente Georges Wolinski, a quem Ziraldo e Chico Caruso seguiam de perto. “O trabalho deles é uma bandeira… O que distingue o humorista é a capacidade de rir dele mesmo… Se não pudermos protestar com humor as pessoas se levarão a sério e o mundo explodirá”.

Paulo lastima: a França é o país das liberdades, mas em comparação com o que se faz na Europa os desenhistas brasileiros são conservadores.

Quem lembrou foi Sérgio Augusto, no Estado de S.Paulo. Os jihadistas não entraram no Pasquim, mas os agentes da ditadura colocaram em 1970 uma bomba na sede do hebdô carioca, uma casa de dois andares entre Flamengo e Botafogo. Pesava cinco quilos de dinamite com TNT. Com a metade dessa potência os mesmos agentes destruíram antes uma das lojas do Correio da Manhã.

A bomba não explodiu. A imprensa sob censura, inclusive interna, noticiou o atentado com pudores, sem mencionar o nome do Pasquim. A edição seguinte do jornal carioca mostrou uma foto da redação composta de Millôr, Paulo Francis, Jaguar, Fortuna, Tarso de Castro, Henfil, Ziraldo, Sérgio Cabral, Paulo Garcez com máscaras de caveira acompanhados de uma caixa de uísque vazia. Millôr fez a legenda, sem assinar:

“Damo-nos por vencidos. Até agora ainda não sabemos quem colocou a bomba da rua Clarisse Índio do Brasil ( vocês já repararam no nativismo do nosso endereço?) na madrugada de quinta-feira, 12 de março (felizmente, como sempre, estávamos no bar). Mas já sabemos, naturalmente, a direção e de onde veio o ataque. E sabemos sobretudo o que pretendem os agressores. Assim, para evitar qualquer futuro atentado, damos, acima, aquilo que tão ardentemente desejam os terroristas: ver nossas caveiras”.

Inspiração global

Os cartunistas do Charlie Hebdo não tiveram a mesma sorte. A França apanhou muito antes de conquistar o direito de pensar livremente e fazer graça e sátira sem censura em qualquer área – política, economia, sociedade, religião. Todas e todos por igual.

Por criticar os maneirismos da classe dominante e satirizar o clero, algumas peças do mestre da comédia Molière (Jean-Baptiste Poquelin) sofreram pesada censura, foram retiradas de cartaz e, quando morreu de enfarte durante a encenação de outra de suas peças, Molière foi enterrado sem receber os sacramentos. Os padres se recusaram a lhe dar. Isso foi há quatro séculos, na mesma França do Charlie Hebdo.

Mas há três séculos o escritor, poeta e filósofo iluminista francês Voltaire (François Marie Aroet) pegou pena maior: foi preso duas vezes pelas mesmas razões dos humoristas mortos. Só escapou do xadrez pela terceira vez porque fugiu para a Inglaterra. Voltaire era um crítico da intolerância religiosa, dos reis absolutistas e dos privilégios da nobreza. Defendia a liberdade religiosa e bateu o que pôde na Igreja Católica.

Há menos de dois séculos, o caricaturista, chargista e pintor francês Honoré Daumier, autor de mais de 4.000 litografias jocosas, irônicas e certeiras, pegou seis meses no xilindró em 1831-2. Havia ridicularizado o rei Luis Felipe I nas ilustrações que fizera para Gargântua, de Rebelais. Sentado, com uma pança enorme, ele devorava seus súditos e engolia junto sacos de ouro.

Não consta que alguma punição tivesse atingido o jornal antissemita, nacionalista e antiparlamentarista lançado em 1892, La Libre Parole. O clero mais conservador fazia parte do staff do jornal do fundador, Edouard Drummont, que seis anos antes escreveu com enorme sucesso La France Juive, subtítulo “A França para os Franceses”. Serviu de matéria-prima para o caso Dreyfus, que condenou em 1894, com documentos falsos, o oficial de artilharia do Exercito francês de origem judaica Alfred Dreyfus, afinal inocentado depois de sofrer humilhações de todo tipo.

Eram violências surdas que se acirraram nos oito anos da guerra de independência da Argélia, 1954-1962. E ninguém esperava que meio século depois a guerra da Argélia gerasse três filhos. Os franceses-argelinos Said e Cherif Kouachi e Amedy Coulibaly. Eles mataram a sangue frio 17 pessoas no massacre terrorista mais violento depois de 1961, na França.

Chocante porque foi uma carnificina contra o humor de alguns dos melhores cartunistas franceses que inspiravam artistas do mundo todo – Wolinski, Charb, Cabu, Tignous, Phillippe Honoré, Bernard Maris. E contra os judeus que faziam inocentes compras num mercado kosher de Paris.

Pela culatra

No domingo (11/1), marcado pela maior mobilização europeia em favor da liberdade de imprensa e de expressão religiosa, a revista católica Études e o site judeu Jewpop publicaram charges do Charlie Hebdo. Études começou publicando uma sátira ao catolicismo e um papa Francisco de lantejoulas e sandálias havaianas no carnaval carioca. Jewpop optou por um Hitler saltitante com a legenda "Hitler supermaneiro", perguntando em alemão: “Olá, judeus! E aí?” E a charge em que o pasquim pergunta ao governo se seria prudente construir centrais nucleares ao lado de sinagogas. Vão continuar escolhendo a dedo o trabalho dos cartunistas assassinados, que sempre afirmaram seu esquerdismo e tolerância religiosa contra o radicalismo xenófobo da direita de Le Pen, agora em alta.

Foi a reação de católicos e judeus ao massacre contra o humor: “É um sinal de força sermos capazes de rir de nós mesmos”, disseram.

Se o alvo das Kalashnikov AK 47 era destruir o poder de criação dos chargistas, intimidar a imprensa, quebrar laços de correntes religiosas e gerar medo, o tiro saiu pela culatra. Os jihadistas conseguiram o impensável. Uniram todas as crenças contra o fanatismo religioso, aguçaram o poder criativo de cartunistas do mundo inteiro, reforçaram uma coragem adormecida sob a sigla “Je Suis Charlie” e reavivaram a importância da liberdade de uma imprensa que vinha cansando de tanto apanhar. 

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Norma Couri é jornalista