Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Tem chapa-branca na linha

Nunca a República brasileira viveu um tempo contínuo tão longo em plena democracia. Desde o fim da ditadura civil-militar, em março de 1985, são mais de 29 anos sem ameaças de golpe, fechamento de Congresso, atos institucionais ou censura prévia. A exceção fica por conta de leis apressadas para punir jovens suspeitos de liderar as manifestações de rua do ano passado e as decisões de juízes de primeira instância de proibir publicação de matérias jornalísticas que desagradem aos cardeais da política provinciana.

Na República Velha, o período mais longo de vigência do regime democrático durou 28 anos – desde a posse do primeiro presidente civil, Prudente de Morais, em 1894, até a chegada ao poder de Artur Bernardes, que governou quatro anos sob estado de sítio (1922-1926).

Mas este texto não veio ao mundo para falar de História. Veio para conduzir o leitor a uma pequena reflexão sobre o comportamento dos meios de comunicação nos tempos atuais. Se vivemos tempos de liberdade de imprensa, e pelo menos em tese esses tempos permitem um grau maior de exercício do trabalho livre de apuração, por que deparamos todos os dias com exemplos de jornalismo chapa-branca estampado nas páginas, na tela do online e nos telejornais?

Falha omitida

Na quinta-feira (26/9), o Jornal da Globo e, no dia seguinte, o telejornal Hoje colocaram no ar matéria sobre o caso de três jovens, um de 26 anos e dois menores de idade, que se apoderaram de uma composição de trem da concessionária Supervia, na oficina de manutenção de Deodoro, na Zona Oeste carioca, e passearam bons metros sem ser reconhecidos. Pararam porque um defeito no sistema limpa-trilhos travou a composição. Os três desceram calmamente do trem e voltaram para casa.

O episódio aconteceu em fevereiro e teria continuado no anonimato se os três jovens não tivessem resolvido se gabar do feito nas redes sociais, inclusive com imagens. A ousadia de verão acabou causando a prisão deles sete meses depois, ao serem rastreados na internet por policiais da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. Entrevistado, o jovem de 26 anos contou que pilotar trens é um hobby antigo, mas ele admitiu que já foi reprovado em teste para maquinista da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM).

Até aqui teríamos mais uma narrativa jornalística no modelo fait-divers, dessas que qualquer jornal, rádio ou TV adora, pelo inusitado do feito. O problema está no enfoque que o telejornal Hoje resolveu dar à matéria. A edição enfatiza o crime que os jovens cometeram, lembra que dois devem permanecer impunes por terem menos de 18 anos, publica o nome completo do candidato a maquinista, identificado como morador de Guarulhos, e informa os crimes em que os jovens estariam enquadrados. No pé da matéria, o locutor informa que a Supervia decidiu reforçar a segurança na linha férrea após o episódio.

Nem uma linha sequer, nem 10 segundos sobre a falha de segurança da Supervia que poderia ter causado acidente grave se os jovens alcançassem o sistema ferroviário suburbano, que transporta 800 mil passageiros por dia. O texto não informa se a concessionária abriu sindicância para apurar a responsabilidade de segurança, silencia se a postura do Ministério Público e não diz a delegacia de Deodoro tomou alguma providência. A responsabilidade fica restrita aos jovens.

Apuração automatizada

O comportamento do telejornal nos leva a perguntar por que determinados jornalistas embarcam em versões que interessam à fonte, sobretudo quando esta fonte é uma autoridade ou presta serviço ao governo. Acreditar que a Globo seja complacente com a Supervia porque as duas empresas são concessionárias de serviços públicos é pensar superficialmente. Supor que o enfoque foi resultado de uma ação desonesta da emissora ou dos jornalistas envolvidos não passaria de julgamento apressado e irresponsável.

Por que então poupar a Supervia e omitir a falha no sistema? O tempo curto da edição pode ser uma justificativa. Sem sonoras, nem passagens, fica difícil falar do silêncio da companhia. Mas por que não ouvir o Ministério Público, a secretaria estadual de Transportes ou mesmo a delegacia do bairro? A quem interessa não tratar o episódio como falha de segurança?

O comportamento chapa-branca não é privilégio de repórteres iniciantes. Permeia as redações indiscriminadamente. As matérias no jornal O Dia e no portal G1 trazem o mesmo enfoque. E também não se pode atribuir essa conduta condescendente aos donos dos veículos de comunicação. Na grande maioria dos casos, donos interferem no atacado, raramente no varejo.

Talvez a ação eficiente de um bom assessor de imprensa – alguém que tenha experiência como repórter e conheça a lógica de cobertura – ajude a entender a benevolência. Algo do tipo “eu te dou uma história boa aqui e você me alivia ali”. Mas será que é só isso mesmo? Será que a armadilha da matéria que chega com a apuração pronta, o paraíso da maçã de Adão e Eva, não nos leva ao pecado do trabalho fácil? Ou será que nós jornalistas paramos de refletir sobre o cotidiano da apuração? O problema é que, agindo assim, corremos o risco de abandonar uma premissa essencial ao bom jornalismo: a capacidade de nos indignar.

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João Batista de Abreu é jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense