Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um autor como outro qualquer

Tudo começou com uma notinha despretensiosa, publicada na coluna da Mônica Bergamo da Folha de S. Paulo, edição de 24/5/2006: ‘Carlos Alberto Brilhante Ustra lança amanhã o livro A verdade sufocada, às 19h, no restaurante Fior D’Itália’. Provocou, no entanto, muita indignação entre os veteranos da resistência à ditadura militar e os leitores com senso de justiça, por omitir o currículo do autor e as intenções da obra.

Se a colunista houvesse tido a preocupação de informar-se melhor sobre aquilo que noticia, não precisaria ir muito longe. Elio Gaspari, na própria Folha (4/9/2005), dera a ficha de Brilhante Ustra e tinha antecipado o que seria o livro. Num tópico sugestivamente intitulado de ‘A voz do DOI’, Gaspari esclareceu:

‘Ele comandou o DOI-Codi de São Paulo entre 1970 e 1974, período durante o qual foram desbaratadas as principais organizações esquerdistas envolvidas com a luta armada e atos terroristas. Do período em que comandou o DOI ficou a marca de 502 denúncias de torturas. (…) A verdade sufocada terá umas 500 páginas. Durante mais de 30 anos, o coronel juntou lembranças, formou uma biblioteca e teve acesso aos dois volumes produzidos nos anos 80 por cerca de 30 oficiais do Centro de Informações do Exército. Nele está uma minuciosa narrativa do período, na visão dos comandantes militares da época.’

Caso fizesse uma busca na internet, Mônica encontraria lamúrias contra o merecido boicote a A verdade sufocada por parte das principais redes de livrarias e longas matérias louvaminhas nos sites da extrema-direita rancorosa, como o Ternuma, o Usina de Letras e o Mídia Sem Máscara. No último, aliás, está um bom resumo do livro:

‘Em suas 541 páginas desmistifica, destrói, desmonta e manda pelos ares, ponto por ponto, as mentiras que, há 40 anos, vêm sendo apresentadas à Nação brasileira a respeito da Revolução de 31 de Março de 1964 e os seus desdobramentos, quando uma esquerda desvairada, constituída por militantes treinados nas academias de guerrilhas de Cuba, Coréia do Norte, Alemanha Oriental, China e União Soviética, utilizaram todos os meios – os seqüestros de autoridades e de aviões comerciais, o terrorismo, os assaltos, as guerrilhas urbana e rural e os assassinatos de cunho político e, já em seu final, os assaltos até a trocadores de ônibus – para implantar em nosso país uma república popular democrática.’

Logo no dia seguinte o jornalista Alípio Freire escreveu à Folha, protestando: ‘Não apenas o senhor Ustra foi um dos mais cruéis torturadores do período da ditadura civil-militar implantada com o golpe de 1964, e responsável direto por sevícias e assassinato de diversos opositores daquele regime, como este é um fato público e conhecido por todos os cidadãos minimamente informados. Não faltam depoimentos e outros documentos que o comprovem. Omitir esses fatos implica conivência com a tortura. Noticiar e promover trabalhos de torturadores do modo como foi feito em ‘Curto Circuito’ tem como resultado a naturalização da prática da tortura, significando, portanto, apostar na impunidade dos seus autores, o que é um modo de acumpliciar-se com os sicários’.

Em vão

A tomada de posição de Alípio Freire, ignorada pela Folha, mereceu uma pequena nota no site do PT e uma réplica do colunista Olavo de Carvalho que, no Jornal do Brasil, apropriadamente defendeu a excelência jurídica da Santa Inquisição, com a qual as práticas de Brilhante Ustra tinham muito em comum… Dois outros leitores da Folha preferiram mandar suas mensagens diretamente à colunista Mônica Bergamo.

Edson Teles relatou ter sido preso em sua casa, aos 4 anos de idade, juntamente com sua irmã de 5 anos e uma tia grávida de oito8 meses. Todos foram levados de camburão ao DOI-Codi. ‘Nas dependências deste então órgão público/estatal pude ver minha mãe e meu pai em tortura. (…) Fui levado a um lugar onde, através de uma janelinha, a voz materna, que meus ouvidos estavam acostumados a escutar, me chamava. Porém, quando eu olhava, não podia reconhecer aquele rosto verde/arroxeado/ensangüentado pelas torturas que o oficial do Exército brasileiro, Carlos Alberto Brilhante Ustra, havia infligido à minha mãe. Era ela, mas eu não a reconhecia. (…) Reitero meu desejo de vê-lo, o torturador Ustra, no banco dos réus respondendo por seus crimes. Se assim for permitido, serei a primeira testemunha de acusação.’

Já Marta Nehring argumentou: ‘Que a Folha publique artigos assinados por militares e políticos ligados à repressão e tortura é parte do jogo democrático, que esta coluna endosse como ‘evento’ um lançamento desta natureza, sem dar ao público a chance de saber de qual autor se trata, é abusar do exercício da desinformação. Tortura é crime hediondo e imprescritível, convém não esquecer’. Nem o ‘Painel do Leitor’ publicou a carta de Alípio Freire, nem Mônica Bergamo deu qualquer satisfação a Edson Teles e Marta Nehring. Provavelmente, muitos outros leitores revoltados devem ter também mandado suas mensagens, em vão.

Sem espaço

Recebendo de meus amigos virtuais esses textos e constatando que já havia passado o prazo em que a Folha deveria ter dado alguma satisfação a seus leitores, recorri ao ombudsman Marcelo Beraba, em 30 de maio, repassando-lhe a íntegra dessas três manifestações e pedindo sua intervenção:

‘Enquanto um historiador é preso na Europa por negar a existência do Holocausto, aqui um carrasco desses ainda escreve livros rancorosos e tem seu lançamento divulgado na Folha! Isto me ofende como leitor que, apesar de tudo, ainda acredito que a Folha seja um jornal identificado com a defesa dos direitos humanos; como cidadão que não aceito a abertura de tribunas para quem cometeu atrocidades e não merecia sequer estar vivendo em liberdade; como jornalista que espera dos outros jornalistas um mínimo de respeito pela memória de Vladimir Herzog, massacrado e assassinado nas dependências do DOI-Codi; e como ex-preso político que vê o carrasco mais uma vez tripudiar impunemente sobre as vítimas. Espero que, pelo menos na coluna do ombudsman, sejam levados em conta os humilhados e ofendidos’.

Passado mais um domingo sem que Beraba abordasse o assunto em sua coluna semanal, só posso concluir que o tanto o jornal quanto o ombudsman ignorarão, sim, seus leitores humilhados e ofendidos. Então, só me resta tornar o caso público nesta tribuna que realmente estimula o exercício da crítica e autocrítica por parte da imprensa – já que, na Folha, o ombudsman está longe de ser a voz do leitor, freqüentemente se comportando como a voz do dono. É o que constatei nas situações delicadas que me envolveram pessoalmente.

Em 1994, depois de haver sido injustamente acusado de delator de uma área de treinamento guerrilheiro na matéria de capa da ‘Folha Ilustrada’, vi desrespeitadas as regras de polêmica do Manual da Redação da Folha, que me assegurava o direito de uma intervenção final, após minha réplica e a tréplica do outro jornalista. A editora da ‘Ilustrada’ alegou falta de espaço… e a ombudsman de então, a quem recorri, apenas reiterou que não havia mesmo espaço! Tive de me dirigir ao próprio diretor de redação para conseguir que o jornal respeitasse suas regras.

Desconversa

Quando travava luta pública por minha anistia federal e contra os favorecimentos a celebridades e protegidos políticos, em 2004/2005, várias vezes apelei ao Beraba, pedindo sua intervenção para que a Folha noticiasse fatos marcantes e inéditos – como o adiamento do julgamento do meu caso em plena sessão, sob a insólita alegação de que o relator não tivera tempo para preparar o relatório, o que revoltou ONGs e juristas. O ombudsman apenas repetiu numas três ocasiões diferentes que pedira à redação uma atenção maior com meu caso… e nada acontecia.

No 25º aniversário da Lei da Anistia, tentei me posicionar, como ex-preso político e como leitor, contra um artigo tendencioso do ex-ministro da ditadura Jarbas Passarinho, criticando as reparações àqueles ‘que lutaram contra o governo e perderam’. O ombudsman não me garantiu sequer o direito de ver meu protesto registrado numas poucas linhas do ‘Painel do Leitor’ – o qual, aliás, não trouxe nenhuma contestação às sandices do velho coronel (e deve ter havido muitas, claro!).

Finalmente, quando consegui no final de 2004 a prova de que era falsa a acusação que saíra publicada na Folha 10 anos antes, o jornal não me concedeu o direito de ver o desmentido estampado com o mesmo destaque da injúria. Considerou satisfação suficiente a publicação de uma carta do historiador Jacob Gorender no Painel do Leitor que, como sabemos, expressa a posição do autor da mensagem e não a do próprio jornal. Gorender, com sua extrema dignidade, reconheceu que seu livro Combate nas trevas trazia uma informação errada a meu respeito. A Folha apenas desconversou – e o ombudsman, mais uma vez, ignorou meus apelos e não cumpriu as obrigações de seu cargo.

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Jornalista, ex-preso político e autor do livro Náufrago da utopia