Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nenhuma a menos: precisamos falar sobre o “feminicídio” de reputações

“A liberdade e a justiça não podem ser divididas segundo nossos interesses políticos. Não creio que se possa lutar pela liberdade de um grupo de pessoas e negá-la a outro.”
Coretta Scott King (escritora e feminista estadunidense)

O Código Penal Brasileiro tipifica três crimes contra a honra: calúnia (art. 138); difamação (art. 139) e injúria (art. 140). Caluniar alguém é imputar-lhe falsamente um fato definido como crime (pena: detenção de seis meses a dois anos e multa). Difamar alguém é imputar-lhe um fato desonroso, mas não descrito na lei como crime (pena: detenção de três meses a um ano e multa). Injuriar alguém, por sua vez, é ofender sua dignidade ou decoro (pena: detenção de um a seis meses ou multa).

Neologismo recente na língua portuguesa, “feminicídio” denomina o assassinato de uma mulher pelo simples fato de ela ser mulher, ou seja, o homicídio que tem uma mulher como alvo. A Lei do Feminicídio, em vigor desde 2015, determina pena mais severa para esse tipo de crime do que para o, digamos, “homicídio comum”.

Analogamente, ofender uma mulher – quer por meio de calúnia ou difamação, quer por meio de injúria – pelo simples fato de ela ser mulher também deveria ser penalizado mais severamente ao ser classificável como “feminicídio de reputação”.

Não precisamos ir tão longe, porém, para que um homem que agride moralmente uma mulher possa ser legalmente punido de modo mais severo, uma vez que este tipo de agressão, devido a suas consequências, pode ser enquadrado como violência psicológica.

Parafraseando o texto da Lei Maria da Penha, violência psicológica é entendida como qualquer conduta que cause à vítima – e, a partir de agora, citando-o ipsis litteris – “dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

Quando um homem se refere a uma mulher por meio de insultos como “feia”, “bruxa”, “ressentida, chatinha e travadona” e “xerife de bordel”, ele não deveria ser condenado à pena por injúria? E quando ele a xinga disso tudo e muito mais nas páginas de uma revista de circulação nacional, sua pena não deveria ser elevada? E quando ele, ao invés de xingar uma mulher, xinga uma dezena, sua já elevada pena não deveria ser multiplicada?

E quando, em seu conjunto de ofensas a uma dessas mulheres, ele incita uma criança de 10 anos à prática sexual?! Extrapolam-se, então, as categorias de crime apresentadas até o momento – injúria e violência psicológica -, adentrando-se o âmbito da Constituição. O artigo 227 de nossa Constituição estabelece: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”. O ato de incitar criança à prática sexual parece sobrepujar a capacidade de imaginação dos elaboradores do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois este – erroneamente – não o tipifica entre os crimes que prevê, mesmo as modalidades de violação dos direitos sexuais de crianças e adolescente sobrepujando a agressão física e psicológica e se estendendo a diferentes modalidades de crimes.

Pois bem. Recentemente, em certa revista de circulação nacional, seu editor-chefe cometeu quase todos os crimes acima descritos – além de incitação à prática sexual precoce – ao tentar, sem êxito, desqualificar mulheres importantes do cenário brasileiro. Dentre as ofensas pueris, porém não menos graves, destiladas contra essas mulheres, destacam-se, pelo elevado teor de crueldade, as dirigidas à ministra Damares Alves.

Tudo o que ele propala pode ser sintetizado em uma frase proibida pelas feministas: “Sente-se como uma senhorita”, ou seja, comporte-se como uma boa garota, calando a boca e ficando quieta, pois – outra das frases proibidas – “boas meninas não dizem/fazem isso”.

Parece que o senhor em questão anda desatualizado de sua própria cartilha. “Mansplaining”, na novíssima língua portuguesa, significa, na “última flor do Lácio”, que homem nenhum tem autoridade para dizer que esta ou aquela envergonha as mulheres.

Para encerrar, uma paráfrase da epígrafe: “A liberdade e a justiça não podem ser divididas segundo nossos interesses políticos. Não creio que se possa lutar pela liberdade das mulheres de esquerda e negá-la às demais”.

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Vanete Santana-Dezmann tem graduação em Letras, mestrado e doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e pós-doutorado em Tradução pela Universidade de São Paulo. É professora de Tradução, Língua Portuguesa e Cultura Brasileira na Universidade Johannes Gutenberg, na Alemanha.