Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Legado de Drummond




A maior lição que Carlos Drummond de Andrade legou a Maria Julieta, segundo ela própria, foi o amor sensual, quase erótico, pela escrita, o papel da escrita, o envelope das cartas, o desenhos dos textos, a ordem das coisas e o trabalho, diário, sistemático, em torno da mesa do escritório. A atração entre filha e pai foi tão intensa que, doze dias após a morte da Maria Julieta, de câncer, o coração de Drummond parou de bater. Este domingo, 17 de agosto, fez exatamente 10 anos.


Para a mesma Maria Julieta ele contou sua mania obsessiva, quase um hobby, de rasgar papéis todas as noites, depois de dobrar cada folha em duas e em quatro partes, subdivididas em seguida em inúmeras partes menores. Envolvia em jornal, atava com barbante e ensinava: “Fazer embrulhos corretos, com todas as especificações necessárias a um bom pacote”. Depois explicava: “Estou convencido de que os papéis copulam de noite, e de manhã nascem filhotes”.


Escrever é cortar palavras, ele dizia.


Esse cuidado em arrancar do caos o essencial pode ser comprovado, além das obras completas do poeta, numa pesquisa ao arquivo da Casa de Ruy Barbosa, no Rio, que guarda cartões de Natal de Drummond a Plínio Doyle. Cartões desenhados, paginados, coloridos, plasticamente perfeitos, com as palavras justas, as únicas possíveis.


Ele não delegava as tarefas da escrita, nem que fosse entregar o artigo todos os dias no jornal. Drummond ia silencioso, quase se esfregando nas paredes para não ser visto, e entregava o artigo em datilografia perfeita, limpo. De mão em mão. Estamos na era anterior ao computador.


Tudo era feito com tanto prazer que foi na casa da namorada Lygia Fernandes que ele passou a limpo e escreveu boa parte de seus poemas.


Era uma intimidade tão grande com a palavra, um casamento monogâmico, uma entrega tão completa de uma vida vivida para escrever que ele deixou o maior legado aos escritores. São conselhos que livrariam o mundo de muita gordura, desperdício, bobagem e excesso literário, se fossem lidos por todo jovem literato, antes de se decidir pela carreira de escritor ou jornalista:


1. Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.


2. Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo e não exija de si tamanha proeza.


3. Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.


4. Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco em banalidade, que é a originalidade de todo mundo.


5. Leia muito e esqueça o mais que puder.


6. Anote as idéias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.


7. Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.


8. Mas se disserem que seu novo livro é pior que o anterior, pode ser que falem a verdade.


9. Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.


10. Acha que sua infância foi maravilhosa e merece ser lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.


11. Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.


12. O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.


13. Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.


14. Evite disputar prêmios literários. O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por julgadores que o seu senso crítico não premiaria.


15. A única orelha por onde o poeta deve escutar se dele falam mal ou se o amam, é a orelha do livro.








A Folha de S.Paulo (que não está sozinha nisso, mas é useira e vezeira) tem a mania de publicar “íntegras” em corpo miúdo, tão miúdo que a faixa etária dos “enta” só lê com lupa. Se tiver paciência e saúde.


Na edição de 23/7/97, página 9 do primeiro caderno, por exemplo, foram dedicadas seis colunas à decisão da Executiva do PT em face das denúncias de Paulo de Tarso Venceslau. Página dividida ao meio na vertical. À direita, a reportagem de uma página e meia de texto datilografado, como se dizia antigamente, ocupa 46,8 centímetros de texto repartido em três colunas, tipologia normal, perfeitamente legível. Ao lado, a íntegra que não se lê: em três colunas somando 117 centímetros de comprimento, nove páginas e meia de texto datilografado.


Os editores da Folha de S.Paulo querem mesmo que alguém leia textos amontoados? A publicação de “íntegras” (à s vezes não o são) resulta de algum tipo obscuro de paranóia incentivada pelo manual de redação?


Publicar, como se fez com o texto do PT – e se faz freqüentemente com discursos do presidente da República, sentenças de juízes, relatórios de comissões de inquérito -, uma “íntegra” que, sendo mera receita de pizza ou verdadeira obra-prima literária, não importa, quase ninguém vai ler, porque está em corpo 2,5 vezes menor do que o da reportagem, é esclarecimento ou álibi?



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