Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Paulo Francis sem estofo

FOLHATEEN

Paulo César de Carvalho

É de estarrecer o último artigo do senhor Álvaro Pereira Júnior em sua coluna semanal no Folhateen sobre o disco Paradeiro, de Arnaldo Antunes. Exemplo do que não se deve fazer no exercício da crítica jornalística, depõe contra profissionais sérios da área, alimentando a idéia (partilhada por muitos) de que a crítica no espaço do jornal é rasa, rápida e rasteira. Se o jornalista fosse o último crítico sobre a face da terra, isso seria verdade…

Os que defendem a objetividade do texto jornalístico diriam que um dos problemas do Sr. Álvaro é o uso da primeira pessoa. Eu, pelo contrário, não aprecio a assepsia do "objetivo": sou daqueles que gostam do foco subjetivo, da visão personalíssima do autor sobre dado fato. Mas subjetividade bem fundamentada, olhar vertical, profundo (o que não quer dizer hermético, que não combina com o público-leitor do veículo jornal). Gosto de texto autoral, mas entendo a subjetividade como marca pessoal de uma inteligência crítica na investigação de seu objeto, o que é bem diferente do "achismo", da visão pessoal superficial, da política de que gosto não se discute e coisas do gênero.

O texto do Sr. Álvaro Pereira, não raro, pauta-se pelo método do achismo: eu acho porque eu acho que eu acho que… Eu… Opiniões vazias, que nada acrescentam ao leitor, já que não-fundamentadas. Argumentos, se são, são bolas de sabão… Querendo ser pedras… Seu tom é impositivo, imperativo (o próprio título de sua coluna, Escuta aqui, que poderia soar como um convite para o jovem ouvir as coisas novas que o tio mais velho apresenta, em seu caso soa como ordem). Não raro, agressivo (fecho com o batido slogan do Che: endurecer, mas sem perder a ternura jamais). Maneira de melhor esconder o que desconhece sobre o que fala.

Seu método parece ser o de que a melhor defesa é o ataque: assim é que tenta esconder, sob o escudo dos tiroteios de festim, sua fragilidade argumentativa. Pode convencer o público adolescente mais mal-informado sua "discurseira de arrastão", sua prosa como hino de secundarista rebelde, sua postura "sou do contra porque sou do contra". Pode impressionar o volume de bandas novas que ele cita diretamente dos shows a que vai em São Francisco (talvez por isso não tenha muito tempo para ler…), bandas que reputa como in, must, e o resto é lixo que brasileiro ouve como quem come bosta sem saber (em termos é até verdade, mas não dá para jogar bosta no ventilador, é preciso separar o joio do trigo…).

Angu e sutilezas

Talvez ele até tenha razão, e as bandas sejam boas mesmo ? nós, subdesenvolvidos, é que temos que lastimar não ter acesso a elas! (Quem sabe na próxima encarnação viremos correspondentes do Fantástico?)

Bom, chega de tiro ao Álvaro. Vamos ao que interessa: por que este Pereira não dá pêra (dá besteira)? Não tenho nada pessoalmente contra o articulista. Mas o vazio de seu texto é algo tão imenso (uso aqui palavras dele contra Arnaldo, que retornam em efeito- bumerangue) que nem o mais afável dos seres humanos conseguiria escondê-lo. É só ler suas últimas descargas verborrágicas no artigo em que comenta (ou deveria comentar, pela expectativa que criou no leitor) o último trabalho de Arnaldo Antunes, Paradeiro.

Seu texto começa prometendo relacionar a pergunta "Quando um filme é verdadeiramente ruim?" com o trabalho do artista multimídia. Estabelece como critérios de "ruindade" de um filme o fato de ser pretensioso e sentencioso. Relaciona alguns filmes como exemplos e termina por dizer que Arnaldo é pretensioso ao descer de "seu Olimpo arenoso" para cantar coisas como Paradeiro. Por quê? O leitor fica sem resposta. Tem que se contentar com o imperativo categórico da autoridade do colunista da Folha ? este, sim, do Olimpo de sua coluna (uma das colunas que sustentam seu Olimpo).

O que incomoda, o que é difícil de entender, é que Arnaldo realiza de certa forma o sonho de Leminski: colocar a poesia em uma aventura de massas. O poeta curitibano acreditava que a via para tanto era a trilha da música popular. Arnaldo é prazer e fruição, é acessível e difícil, caprichos & relaxos, construção e descontração, rigor e vigor. ("Desce do trono, Rainha/Desce do seu pedestal/ De que te vale a riqueza, sozinha/ Enquanto é carnaval?"). O poeta não quer ficar confinado na torre de marfim. Arnaldo é o beneditino que escreve no aconchego do claustro mas que pula o carnaval em que ninguém é de ninguém. Dá pão às massas mas reserva sutilezas aos paladares finos. Para os que estão acostumados com o angu do vulgo, não sobra nada. Tem para todo mundo, mas não tem para qualquer um!

Fontes desconhecidas

Será que é poesia?, pergunta. Resposta de bate-pronto: sem chance. Devagar com o andor, Sr. Pereira. O que entende por poesia? Quantas colunas precisaria para sustentar tantas definições deste objeto tão complexo? Com uma coluna só, o templo despenca! Não dá para tratar com simplismo matéria tão vasta. "Sem chance" parece ser a resposta de quem não se atreve a correr o risco de escalar a montanha, de encarar o bicho frente a frente.

Sem chance é equivalente a jogar a toalha. O menino raivoso bota a bola debaixo do braço e diz que não brinca mais. Puro mecanismo de defesa. A reedição da fábula das uvas verdes (das pêras verdes…). Como não entendi, não gostei. Parece que é disto que se trata. Mas para não dar parte de fraco, coisa impensável para um crítico pretensioso, diz que não gosta de Arnaldo porque é fácil demais querendo soar pretensioso. "Aquelas aliterações e trocadilhos parecem saídos de uma cartilha Caminho Suave da poesia concreta". O Sr. conhece, por acaso, o plano-piloto da poesia concreta? (Nem os concretos hoje são concretos, sabia?) Já ouviu falar em poema-processo? Conhece poesia visual? Seus ouvidos já captaram poesia sonora? Sabe quem é e.e.cummings? (Se sabe, deve ser daqueles que chamam o poeta de "tipógrafo bêbado", não entendendo que o americano faz os sinais tipográficos significarem…). Já viu as desbragadas caligrafias, off-sets e carimbos de Edgard Braga?

O Sr. conhece as fontes em que bebe o ex-titã e em que medida se descola delas para trilhar seu próprio caminho, o nada suave caminho em busca de uma dicção própria? Já leu "Psia", "Tudos", "As Coisas", "2 ou + corpos no mesmo espaço" ou qualquer outro trabalho do artista? Já leu seus exercícios críticos sobre a própria poesia e a de outros, sobre artes plásticas, seus releases, prefácios etc? Por um acaso assistiu ao espetáculo do grupo de dança Corpo a partir de trilha composta pela hidra criativa? Não se equivoque, Sr. Álvaro: o mais fundo está na superfície. O que parece simples é resultado de muito esmero, de muito lapidar. Arnaldo chega a sínteses fabulosas, oferecendo-nos pílulas poéticas como "Sóis", em que o acento está entre parênteses, permitindo que se leia: sois sóis. O Homem é o Sol, o ser é o centro. Dentro o acento. Tudo a ver com o título do livro: no mesmo espaço gráfico da página, dois corpos, duas palavras.

Bailado gracioso

Mesma economia lapidar ocorre em "Rio: o ir". Quase palíndromo: a palavra "rio" lida de trás para a frente, é "o ir"; "o ir", mesma operação, vira "rio". (Uma palavra, que é duas…) O rio da vida, caminho nada suave, ir sem volta, como as águas do rio… Arnaldo sabe, como disse Mallarmé, que a poesia está nas palavras, não nas idéias (a idéia é condição necessária, mas não suficiente, para fazer poesia). É preciso escolhê-las a dedo, como quem escolhe o feijão (mas deixar o grão imastigável, que incomoda e quebra a rotina da mastigação contente, como no poema de João Cabral).

O Sr. cita duas bandas de que nunca ouvi falar (perdoe-me a ignorância, mas eu e quase o resto do planeta) e diz que fazem qualquer coisa do Arnaldo parecer "Atirei o pau no gato". Em primeiro lugar, a comparação torna-se ineficaz na medida em que boa parte dos leitores desconhece um de seus termos, as bandas em questão. Em segundo, por melhor que sejam, não sei se enveredam por tantos códigos como Arnaldo, bicho de sete mil cabeças, titã de mil olhos de Argos (poesia, música, letra, vídeo, instalação, performance…), o que desautoriza o colunista a afirmar pretensiosamente "qualquer coisa do Arnaldo" (como se tivesse idéia de quanto é esse qualquer…). Em terceiro, a propósito de outro dos termos da comparação, a música infantil, Antunes mergulha como ninguém no maravilhoso mundo poético da infância perdida, reino da linguagem desautomatizada, das associações inesperadas. Olha com olho anômalo, que enxerga no girino o peixinho do sapo, no bigode a antena do gato, no cavalo o pasto do carrapato. Achados…

Como a música "Uma mão lava a outra", em que o poeta aproveita a expressão que sugere solidariedade para falar de higiene à garotada ? gracioso bailado entre o literal e o figurado.

Só dois olhos

O Sr. termina seu texto assim: "O que é não sei, mas sei que é VERDADEIRAMENTE ruim." Instalações trocadas? Como sabe que é ruim o que não sabe o que é? O que significa esse "verdadeiramente" destacado em seu texto? O que é verdadeiramente ruim, se não há em seu artigo um traço sequer do objeto criticado? Sua pretensa crítica, Sr. Álvaro Pereira Júnior, é uma canção-nada. É uma não-crítica. Punheta adolescente no Folhateen

Às vezes tenho a impressão de que ele quer ser uma espécie de Paulo Francis teen (na tevê, na imprensa escrita, falando sobre tudo…). Mas para ser Paulo Francis tem que comer muito feijão, Júnior. Mastigar os grãos imastigáveis. Paulo Francis era chato, ranheta, arrogante, preconceituoso, mas não pretensioso. Pelo menos não no sentido empregado pelo doublé de repórter. Não lhe faltavam argumentos, colhidos das fontes mais diversas, para sustentar suas posições ? o que não ocorre nem de longe, diga-se de passagem, com o epígono de chute bem mais fraco, chato, ranheta e pretensioso (com os defeitos, sem as virtudes ? arremedo).

Arnaldo é muitas televisões ligadas simultaneamente em canais inteligentes. E você só tem dois olhos. E uma boca que é mais inteligente quando não fala. Escuta aqui, Júnior, você precisa sair menos e estudar mais!

    
    

              

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