Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

“Entre os temas que na última semana domi­na­ram a actu­a­li­dade infor­ma­tiva — e foram vários, desde a miti­gada decla­ra­ção de incons­ti­tu­ci­o­na­li­dade da reti­rada de ren­di­men­tos a pen­si­o­nis­tas e fun­ci­o­ná­rios públi­cos até às peri­pé­cias aca­dé­mi­cas do minis­tro Rel­vas —, é bem pos­sí­vel que no futuro venha a reconhecer-se que a mais impor­tante notí­cia publi­cada por estes dias foi o anún­cio da con­fir­ma­ção, ‘com 99,99% de cer­teza’, da exis­tên­cia do fugi­dio bosão de Higgs.

A des­co­berta anun­ci­ada pelo Labo­ra­tó­rio Euro­peu de Física de Par­tí­cu­las foi des­crita como a demons­tra­ção expe­ri­men­tal da exis­tên­cia — pos­tu­lada em 1964, entre outros, pelo físico Peter Higgs –, de uma par­tí­cula que con­fere massa às outras par­tí­cu­las do mundo suba­tó­mico, per­mi­tindo expli­car, no qua­dro do cha­mado modelo-padrão da física con­tem­po­râ­nea, ‘por que é que a maté­ria existe’.

Sem pre­juízo da expli­ca­ção deste feito cien­tí­fico em ter­mos simul­ta­ne­a­mente rigo­ro­sos e aces­sí­veis — tanto quanto pos­sí­vel, dada a com­ple­xi­dade do tema — a lei­to­res menos ver­sa­dos nos con­cei­tos da física actual, o PÚBLICO, tal como outros órgãos de comu­ni­ca­ção, optou por descrevê-lo, em títu­los de maior impacto jor­na­lís­tico, como sendo a des­co­berta da ‘par­tí­cula de Deus’. ‘Sus­pense aumenta à espera das últi­mas notí­cias da par­tí­cula de Deus’ foi o título esco­lhido para uma peça de ante­ci­pa­ção publi­cada na última terça-feira, vés­pera do anún­cio, no Público Online. E na capa da edi­ção impressa de quinta-feira escreveu-se: ‘A ‘par­tí­cula de Deus’ existe, mas a his­tó­ria não acaba aqui’.

A esco­lha dessa expres­são desa­gra­dou a alguns lei­to­res, que con­si­de­ra­ram ina­de­quada e sus­cep­tí­vel de más inter­pre­ta­ções a uti­li­za­ção de con­cei­tos estra­nhos à ciên­cia para qua­li­fi­car os resul­ta­dos obti­dos no ace­le­ra­dor de par­tí­cu­las ins­ta­lado nos arre­do­res de Gene­bra. O lei­tor Luís Mota classificou-a mesmo como uma ‘desig­na­ção (…) dema­gó­gica, sen­sa­ci­o­na­lista e/ou espe­cu­la­tiva, (…) que pouco terá a ver com bom jor­na­lismo’. Ques­ti­o­nando que a sua uti­li­za­ção tenha algum ‘suporte na comu­ni­dade cien­tí­fica’, sugere que possa ter sido deter­mi­nada pelo objec­tivo de ‘ori­gi­nar mai­o­res paran­go­nas’, ou mesmo por ‘razões da ordem do pro­se­li­tismo’ (reli­gi­oso, presume-se).

A autora das notí­cias em causa, Ana Gers­chen­feld, con­cor­dando que os cien­tis­tas não apre­ci­a­rão a expres­são ‘par­tí­cula de Deus’, defende no entanto a sua uti­li­dade. ‘Nada como uma boa metá­fora’, escreve, ‘para trans­mi­tir uma men­sa­gem com­plexa ao público em geral’. E recorda que o recurso à iden­ti­fi­ca­ção da par­tí­cula ‘pelo nome pelo qual ela é mais conhe­cida’ foi tam­bém a esco­lha feita, neste con­texto, em títu­los e não só, por uma grande parte dos prin­ci­pais jor­nais de refe­rên­cia pelo mundo fora.

Penso que este é um bom exem­plo para dis­cu­tir a plas­ti­ci­dade de escrita reque­rida pelo jor­na­lismo de divul­ga­ção cien­tí­fica e para reflec­tir sobre os seus dile­mas espe­cí­fi­cos, a que pro­cu­ra­rei dedi­car uma futura cró­nica neste espaço. É claro que o recurso a metá­fo­ras e a ana­lo­gias extraí­das da expe­ri­ên­cia comum ou da cul­tura geral pode con­tri­buir para expli­car à mai­o­ria dos lei­to­res de um jor­nal gene­ra­lista o sig­ni­fi­cado de con­cei­tos e pro­ces­sos cuja des­cri­ção cien­tí­fica escapa ao seu conhe­ci­mento, quando não à sua com­pre­en­são, como acon­te­cerá com as leis que regem ou as hipó­te­ses que pro­cu­ram expli­car o estra­nho mundo das par­tí­cu­las subatómicas.

Por outro lado, esse e outros meios uti­li­za­dos para pro­cu­rar sim­pli­fi­car a infor­ma­ção trans­mi­tida, des­co­di­fi­car a ter­mi­no­lo­gia pró­pria da comu­ni­ca­ção cien­tí­fica e atrair para um maior conhe­ci­mento dos avan­ços da ciên­cia o inte­resse inte­lec­tual do lei­tor comum não podem ir ao ponto de pôr em causa o rigor téc­nico neces­sá­rio à qua­li­dade infor­ma­tiva. É por isso que o bom jor­na­lismo sobre temas cien­tí­fi­cos exige não só a pre­pa­ra­ção espe­cí­fica de quem escreve sobre estas maté­rias, como um talento pró­prio para a divul­ga­ção — que, para ser efi­caz, não pode subordinar-se às for­mas mais exi­gen­tes do dis­curso cien­tí­fico entre pares e, para ser sério, não pode afastar-se do seu ver­da­deiro con­teúdo e alcance.

No caso da expres­são ‘par­tí­cula de Deus’ pode discutir-se a sua per­ti­nên­cia à luz des­tes cité­rios, e con­virá ter em conta que o seu pro­pó­sito ilus­tra­tivo ou com­pa­ra­tivo está aberto a lei­tu­ras diver­si­fi­ca­das. Sem esgo­tar as pos­si­bi­li­da­des, pode ver-se nela uma ana­lo­gia entre a des­cri­ção popu­lar das carac­te­rís­ti­cas do ins­tá­vel e esquivo bosão de Higgs e o não menos popu­lar enten­di­mento de Deus, nas reli­giões mono­teís­tas, como ‘algo’ ou ‘alguém’ que ‘está em todo o lado, mas que não pode­mos ver’, isto é, que escapa ao conhe­ci­mento dos nos­sos sen­ti­dos. Ou uma com­pa­ra­ção entre res­pos­tas fun­da­men­tais — uma de natu­reza cien­tí­fica, outra de carác­ter reli­gi­oso ou filo­só­fico — à mais velha das per­gun­tas (‘por que existe o uni­verso; por que exis­ti­mos nós?’). Ou, mais sim­ples­mente, um recurso esti­lís­tico para trans­mi­tir, recor­rendo a cam­pos de sig­ni­fi­ca­ção dis­tin­tos, a noção de pro­cura de res­posta a um enigma ou mis­té­rio essen­cial que nos desafia.

Será mais útil, no entanto, conhe­cer a his­tó­ria da con­tro­versa expres­são. Como explica o jor­na­lista Nico­lau Fer­reira no espaço de des­ta­que que o jor­nal dedi­cou a este tema no pas­sado dia 5, a desig­na­ção de ‘par­tí­cula de Deus’ dada ao bosão de Higgs sur­giu pela pri­meira vez no título de um livro do físico Leon Leder­man (‘The God Par­ti­cle’). Pode­ría­mos até atribuí-la ao reco­nhe­cido sen­tido de humor do autor, não fora a expli­ca­ção dada para o caso pelo pró­prio Peter Higgs, que é recor­dada nessa peça. Leder­man terá que­rido cha­mar ao livro ‘The god­damn par­ti­cle’ (qual­quer coisa como ‘a mal­dita par­tí­cula’, ou ‘o raio da par­tí­cula’, cuja busca então exci­tava a ima­gi­na­ção dos físi­cos), e terá sido o seu edi­tor que, tendo recu­sado essa ideia, nela encon­trou tal­vez a ins­pi­ra­ção para, com iro­nia ou sen­tido de mar­ke­ting edi­to­rial, cunhar a expres­são que desde então ficou colada, na imprensa, à par­tí­cula de Higgs e ao enorme inves­ti­mento cien­tí­fico des­ti­nado a com­pro­var a sua existência.

Agora que esse esforço parece ter sido bem suce­dido, mantém-se a con­tro­vér­sia em torno da expres­são: enquanto alguns apre­ci­a­rão o seu poder sim­bó­lico, ela con­ti­nu­ará a desa­gra­dar, mesmo como sim­ples desig­na­ção popu­lar, a mui­tos cien­tis­tas, espe­ci­al­mente aos que vêem sinais de obs­cu­ran­tismo na mis­tura de enti­da­des trans­cen­den­tes com as hipó­te­ses expli­ca­ti­vas pró­prias da ciên­cia. Como acon­te­ce­ria, neste caso, com a suges­tiva apro­xi­ma­ção que o nome ‘par­tí­cula de Deus’ pode esta­be­le­cer entre a ‘causa pri­meira’ dos teó­lo­gos e este bosão cujas pro­pri­e­da­des aju­da­rão a expli­car ‘por que é que a maté­ria existe’. Curi­o­sa­mente, a ques­tão inqui­eta menos as auto­ri­da­des reli­gi­o­sas, como se pode con­cluir do inte­res­sante artigo que Antó­nio Marujo assi­nou na quinta-feira na edi­ção on line, dando conta da ‘como­ção e entu­si­asmo’ com que o jor­nal do Vati­cano e res­pon­sá­veis da Igreja Cató­lica em Por­tu­gal aco­lhe­ram a des­co­berta da par­tí­cula… de Higgs.

Em suma, não vejo razões para cri­ti­car ou con­si­de­rar ‘sen­sa­ci­o­na­lista’ o uso da expres­são ‘par­tí­cula de Deus’ nos títu­los do PÚBLICO, desde que ela seja expli­cada (como foi na edi­ção de quinta-feira) e usada com a mode­ra­ção e o cui­dado cor­res­pon­den­tes ao facto de não pos­suir, obvi­a­mente, qual­quer rigor cien­tí­fico. Pro­cu­rar títu­los suges­ti­vos e ima­gens que faci­li­tem a apro­xi­ma­ção dos lei­to­res aos temas noti­ci­a­dos é pró­prio do jor­na­lismo. Fazê-lo na justa medida, sem sacri­fí­cio do rigor, da con­tex­tu­a­li­za­ção e da qua­li­dade infor­ma­tiva, é o método que afasta as ten­ta­ções mer­can­ti­lis­tas e dema­gó­gi­cas do sensacionalismo.

Resta acres­cen­tar que neste caso, para além de uma metá­fora, esta­mos, como mos­tra a his­tó­ria da expres­são, perante uma espé­cie de alcu­nha popu­la­ri­zada para desig­nar um enti­dade física. E as alcu­nhas ou epí­te­tos, refe­ren­tes a pes­soas ou objec­tos, devem, por razões de cla­reza e rigor (e de res­peito, no caso das pes­soas), ser gra­fa­das entre aspas. Como o PÚBLICO fez (bem), com a ‘par­tí­cula de Deus’, na capa de 5 de Julho e no noti­ciá­rio sobre este tema, mas não fez (a meu ver, mal) no título da peça da edi­ção on line que desa­gra­dou ao lei­tor Luís Mota.”