
(Foto: Wesley Tingey na Unsplash)
Na quinta-feira, 9 de outubro, ou na sexta-feira, 10, em sessão noturna, os deputados peruanos destituíram a presidente Dina Boluarte. A votação foi unânime. Nem um único voto, da direita à esquerda, demonstrou qualquer hesitação. O motivo invocado seria uma incapacidade moral permanente” da interessada.
“Este motivo” de destituição, segundo o constitucionalista peruano Omar Cairo, “só existe no Peru, tem um conteúdo muito vago” e é utilizado pelos congressistas de forma discricionária [1]. O interino que assumiu o cargo até às eleições presidenciais de 2026, José Jeri, herdou o cargo de presidente do Congresso. É o que prevê a Constituição. Já há rumores e boatos na imprensa de que ele tem um currículo tão questionável em termos de moralidade quanto o de Dina Boluarte.
O Congresso estaria a preparar a destituição do interino? Ou trata-se de um aviso velado para o caso de ele não servir, em todos os sentidos da palavra listados no dicionário? O Peru, de fato, vive desde a fuga do presidente Alberto Fujimori, em 2000, numa instabilidade institucional estrutural. Nada o impõe, nenhuma lei, nenhum texto fundamental. No entanto, ser chefe de Estado no Peru é aceitar um risco político e pessoal.
Alberto Fujimori (1938-2024) passou os anos de 2007 a 2023 na prisão. Alejandro Toledo, eleito em 2002, encontra-se atualmente num centro penitenciário. Alan García, que o sucedeu em 2006, suicidou-se. Ollanta Humala, eleito em 2011, foi preso em 2025. O seu sucessor em 2016, Pablo Kuczynski, foi obrigado a demitir-se no meio do mandato, em 2018. Vive em prisão domiciliar desde 2019. Manuel Vizcarra, que assumiu interinamente, não concluiu o mandato. O Congresso o destituiu em 2020 por “incapacidade moral”. Preso por alguns dias, teve seus direitos civis retirados por um período de dez anos. Pedro Castillo, eleito em 2021, está internado desde dezembro de 2022. Dina Boluarte, vice-presidente, exercia a magistratura suprema desde 8 de dezembro de 2022. Um comentarista atento aos assuntos peruanos havia então sinalizado, preto no branco, uma dúvida que se concretizou três anos depois: “O Peru tem uma nova presidente: por quanto tempo?” [2].
Com exceção de alguns interlúdios muito curtos, quase todos os chefes de Estado peruanos dos últimos 25 anos foram destituídos, presos ou, no caso de um deles, levados ao suicídio. Os apoiadores de uns e outros contestam essas destituições. Algumas são motivadas por graves violações da ordem constitucional. Alberto Fujimori, em 1992, e Pedro Castillo, em 2022, decretaram efetivamente a dissolução do parlamento sem terem competência para tal. Alberto Fujimori e Dina Boluarte foram acusados de graves violações dos direitos humanos. Outras acusações basearam-se em atos de corrupção, como nos casos de Alejandro Toledo, Alan Garcia, Ollanta Humala, Pedro Kuczinski, Manuel Vizcarra e Dina Boluarte.
No entanto, esse jogo de massacre chama a atenção. Observadores nacionais e estrangeiros tentaram resolver o enigma, sem oferecer outra resposta além de um grande ponto de interrogação. “A crise política no Peru revela um país ingovernável”, podia-se ler no jornal Le Monde, em 8 de dezembro de 2022. “O Peru está em crise”, escreveu o professor de sociologia da Universidade San Marcos, Nicolas Lynch, em 2023, “ele busca com dificuldade o seu destino”. “O Peru afunda-se na instabilidade após a destituição expressa de Dina Boluarte”, titulava o jornal espanhol El País, em 11 de outubro de 2025.
Apesar de tudo, é possível sugerir algumas pistas que permitam iniciar uma reflexão que traga respostas possíveis. O Peru ainda hoje paga o preço da tábula rasa institucional dos anos Fujimori. De 1990 a 2000, o país foi dominado por um presidente iliberal e militarista, Alberto Fujimori, e por um movimento terrorista devastador, o Sendero Luminoso. Os partidos de esquerda foram então suspeitos de conivência com a guerrilha e perseguidos. As formações tradicionais, consideradas demasiado complacentes, foram criticadas e afastadas. A vida democrática retomou em 2001 num deserto partidário, de forma artificial e formal. As reivindicações por mais liberdade e justiça, social em particular, não encontraram eco no parlamento.
Essa lacuna foi ainda mais desestabilizadora, pois o país é historicamente dividido racial e socialmente entre as “elites” da capital, Lima, e as populações rurais indígenas das montanhas e afro-peruanas da costa do Pacífico. O domínio dos meios de comunicação, da riqueza e da educação pela “elite” permitiu-lhe distorcer as regras do jogo. Em posição de força, tanto social como institucional, só ela foi capaz, de eleição em eleição, de criar falsas alternativas. Qualquer presidente que tentasse “sair dos trilhos” estabelecidos pela ordem vigente esbarrava imediatamente no parlamento. Jesús Casamalón e Juan Francisco Durand, sociólogos peruanos, argumentaram sobre esse assunto em um livro que revela “a mão invisível no Estado” [3].
O Peru, concluem eles, “é uma república empreendedora”. Com o Estado impedido de agir, a economia segue o seu curso, numa partitura favorável aos interesses particulares e internacionais, indiferente às convulsões políticas. A Constituição de 1993 blindou o status quo econômico. Os seus artigos 62 e 79 proíbem qualquer alteração legislativa de um contrato assinado e qualquer decisão que aumente a despesa pública. A lei fundamental garante, além disso, a independência do Banco Central.
Tudo isso justifica os comentários positivos dos investidores estrangeiros. “O Peru”, escreve-se numa nota do Tesouro Público francês, por exemplo, “mantém fundamentos macroeconômicos sólidos, fruto da prudência orçamental e monetária das últimas três décadas e de uma economia aberta ao IDE (Investimento Direto Estrangeiro) e ao comércio internacional” [4]. Os grupos econômicos peruanos celebram acordos tanto com a China, que acaba de inaugurar em Chancay, ao norte de Lima, uma imponente infraestrutura portuária, como com as grandes empresas mineiras mundiais, australianas, canadianas, chinesas e americanas. Em 2024, segundo a revista América Economia, o valor das exportações peruanas aumentou 15,6% em relação a 2023, impulsionado pelos setores mineiro (ouro, cobre) e agrícola [5].
Texto publicado originalmente em francês, em 14 de outubro de 2025 no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “Au Pérou, déstituition d’une presidente, … Au suivant … ?”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/129801. Tradução de Ricardo José Liani Filho e revisão de Andrei Cezar da Silva.
Notas
[1] Conferir em: Guillermo D. Olmo, “porque Perú es tan dificil de gobernar”, BBC news Mundo, 8 de dezembro de 2022.
[2] Em: “Democracia abierta”, 9 de dezembro de 2022.
[3] Jesús Casamalón, Juan Francisco Durand, La República empresarial: neoliberalismo, emprendedurismo y desigualdad (1990-2O11, Lima, derrama magisterial, 2022.
[4] Nota da Direção do Tesouro, Peru, Situação econômica e financeira, 27 de junho de 2024.
[5] América Economia, 3 de março de 2025.
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Jean Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
