Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O doutor Adhemar

Pouco saberão jornalistas e políticos das novíssimas gerações sobre a vida e a obra de Adhemar de Barros, paulista de Piracicaba, que entre 1933 e 1966 foi uma das mais famosas e controvertidas figuras públicas de São Paulo e do Brasil – governador duas vezes, deputado estadual, constituinte, prefeito uma vez, quatro vezes candidato a presidência da República – até ter seus direitos políticos cassados pelo regime militar de 1964. O que se divulga com mais destaque, sempre com um picante sabor de folclore, é que Adhemar foi corrupto, marido infiel, homem de palavrões e comportamento cafajeste, protagonista habitual de cenas constrangedoras tanto em público como na intimidade.

Tal era sua reputação que, quando provocados pelos adversários, seus correligionários mais fanáticos se defendiam dizendo, meio constrangidos, ‘é, rouba, mas faz’. (Num desses ademaristas roxos, capazes de dar a vida pelo ídolo, teria se inspirado o grande escritor paulistano Marcos Rey ao criar um motorista de táxi, o Moa, personagem central de seu antológico conto ‘O ademarista’. Moa sofre barbaridades no dia em que Adhemar perde uma eleição para um dos seus mais duros adversários nas urnas, Jânio Quadros.)

Ainda não contemplado com uma biografia que de fato descrevesse com razoável fidelidade, e menos paixão e ódio, o animal político com todos seus defeitos mas também o autor de grandes realizações públicas, Adhemar continua padecendo, em certa medida, o peso injusto de uma imagem mais concentrada em aspectos negativos, nefastos até – postura que ofusca, em meio ao silêncio e desdém, seu verdadeiro papel na história política do país nos últimos 50 anos, um tempo de enormes transformações que determinaram o desenvolvimento brasileiro.

Essa percepção algo distorcida dos fatos em relação a Adhemar, obviamente com certas tinturas maldosas, felizmente começa a mudar. Sobretudo com a publicação de Adhemar de Barros – trajetória e realizações, escrito pelo veterano jornalista paulistano Paulo Cannabrava Filho, que não se propõe a contar a vida íntima do homem, mas a revelar, com fartura de dados e informações, sua trajetória como político estadual e nacional por meio de um dos partidos mais competentes já surgidos no país, o Partido Social Progressista (PSP), por ele fundado e comandado em 1946, e suas contribuições como administrador público para o crescimento de São Paulo.

O curioso é que Cannabrava, embora conhecesse de perto a Adhemar de Barros desde 1954, primeiro na condição de entrevistador de um instituto político, depois de repórter ainda ‘foca’ no extinto matutino O Tempo, nunca pensou em escrever sua biografia. Dele esteve próximo muitas vezes ao longo de várias campanhas, com ele aprendeu muito sobre a copa e a cozinha da política regional. Acompanhou os passos de Adhemar até 1966 quando, excomungado pelos milicos como traidor do movimento militar, o conspirador meio descuidado exilou-se em Paris, onde morreu três anos depois, aos 68 anos, de um enfarto depois da remoção de uma hérnia e de cálculos, amargurado com o que considerava uma injustiça – ele que fora um dos mais entusiastas articuladores da ‘redentora’ em São Paulo.

Inimigo tenaz

Jornalista e militante político de esquerda nos anos de chumbo no Brasil e no continente, exilado muito tempo no Panamá, autor de um livro importante (e ainda pouco reconhecido) – No olho do furacão: América Latina nos anos 60-70 –, Paulo Cannabrava Filho não teria razão alguma em particular para reverenciar a memória de Adhemar, um político sabidamente conservador, reacionário (para usar a linguagem sempre na moda) e ainda por cima com aquela fama de incorrigível cara-de-pau, meio no estilo de Paulo Maluf. Tão oportunista que, na hora de ganhar uma eleição, valia aliar-se até mesmo aos comunistas.

No entanto, há três anos contratado para participar na organização do centenário de nascimento do político, Cannabrava estudou e revisou o acervo documental e iconográfico (30 mil fotos) doado pela família de Adhemar ao Arquivo do Estado de São Paulo, surpreendendo-se com a riqueza do material, principalmente no tocante as realizações de infra-estrutura do governante de São Paulo como estado e cidade.

‘O volume de obras realizadas por Adhemar de Barros nos seus vários mandatos, em todos os setores da administração, ultrapassava, e muito, nossas expectativas. Os números são impressionantes Constatamos que a obra realizada por Adhemar de Barros possui um significado que transcende sua trajetória política e sua vida privada. E foi aí que nos convencemos de que era preciso documentar tudo isso em um livro’, explica o autor no prólogo.

O resultado dessa pesquisa e a conseqüente reflexão sobre a dimensão e a grandiosidade do tema é um sólido volume de 239 páginas, muito bem ilustrado e visualmente cuidado, com 13 capítulos que alternam a carreira política com as realizações públicas e administrativas de Adhemar.

Nenhuma fofoca, nenhuma intriga de bastidores, nenhuma história barata de alcova, só uma narrativa equilibrada ao longo da qual surgem, aqui e ali, um ou outro episódio mais conhecido de corrupção – como foi o caso da compra, via um empréstimo do Banespa, de dez automóveis Chevrolet, e ainda assim sem julgamentos de ordem ética ou moral. Adhemar foi então acusado de peculato, saiu para o exílio no Paraguai e na Bolívia, e voltou absolvido ao Brasil, mas não livre de um de seus mais tenazes inimigos, o jornalista Paulo Duarte, que o perseguiria ainda durante muito tempo.

O ginecologista da Sé

Traça-se, numa linguagem direta e escorreita, a origem quatrocentona do personagem, seu amor à primeira vista e o casamento com a estóica e discreta Dona Leonor, companheira de todas as horas, os anos de intensa movimentação social e política na mansão do casal na então nobre Rua Albuquerque Lins. Mas o foco maior é no momento histórico que deu a Adhemar a oportunidade de subir rápido na política brasileira, ao longo do caminho sabiamente aproximando-se e conquistando a confiança e o apoio de Getúlio Vargas, em pleno Estado Novo. E aliando-se aos comunistas quando esse era o único caminho para ganhar uma eleição.

Ao contrário de muitos de seus colegas políticos contemporâneos, Adhemar de Barros vinha de berço esplêndido, de família paulista cafeeira, muito rica. Formou-se médico na Escola Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, e muito jovem saiu ao mundo, especializando-se em ginecologia nos Estados Unidos e em hospitais da Alemanha, Áustria, Suíça e Inglaterra.

Educação européia esmerada, culto e poliglota, de volta ao Brasil, já nos anos 1930, exerceu sua especialidade num modesto consultório na Praça da Sé, participou na Revolução Constitucionalista, exilou-se no Paraguai, e em 1933 começou sua carreira política no velho PRP – Partido Republicano Paulista.

Seria em 1938, porém, que ele ficaria conhecido como político importante ao ser nomeado por Getúlio como interventor federal no estado de São Paulo. Depois exerceria, entre 1947 e 1951, seu primeiro mandato como governador. Suas grandes obras e realizações urbanísticas têm inicio nesse mesmo período.

O livro deixa claro que o político Adhemar de Barros, em meio aos conchavos próprios de sua atividade, conduzidos por uma personalidade forte e de grande talento para a comunicação, nunca se limitou às reuniões de gabinete: ele saía às ruas, mangas arregaçadas, ventre já bem protuberante, cigarrinho na mão, suspensórios à vista, mostrando genuína preocupação com o funcionamento básico da cidade e do estado – a construção de hospitais, escolas, avenidas e estradas, sem esquecer o campo, de onde provinha e que conhecia muito bem, tanto como negócio como mentalidade.

Desenvolvimento integrado

Ele criou e realizou, por exemplo, em seus 11 anos como governador de São Paulo, uma política integrada de desenvolvimento incluindo energia, transporte, educação, saúde, esporte e área rural. Como médico formado sob a inspiração das políticas sanitaristas do Instituto Oswaldo Cruz, Adhemar dedicou-se à erradicação da lepra, ao combate à tuberculose e sobretudo à construção de grandes hospitais e centros de ensino, como o Hospital das Clínicas, o Instituto Adolfo Lutz, o Instituto Emilio Ribas e o Instituto do Coração.

Outra de suas grandes façanhas como administrador foi a remodelação da capital paulista, com a construção de grandes edifícios públicos – como o edifício do Banco do Estado, na Praça Antonio Prado, na época o prédio mais alto da América Latina, além de avenidas, parques urbanos e estradas, entre estas a Via Anchieta e a Via Anhanguera. A reforma do Viaduto do Chá e do Parque do Anhangabaú foi projetada pelo engenheiro Prestes Maia na administração de Adhemar. Entre as avenidas mais conhecidas, ele administrou a reforma da São Luiz, Ipiranga, Vieira de Carvalho, Duque de Caxias, Tiradentes e Celso Garcia.

Bom de conversa

Revela ainda o jornalista Paulo Cannabrava Filho que o político Adhemar de Barros, para surpresa de muita gente hoje, incluía entre suas prioridades uma sólida política cultural para o estado e a cidade de São Paulo, numa época, a dos anos 1950, quando floresceram, com seu apoio e estímulo, grandes movimentos artísticos como a Cinematográfica Vera Cruz, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), a Cinemateca Brasileira e o Museu de Arte de São Paulo (Masp). Ele acreditava, diz o autor do livro, que ‘o desenvolvimento cultural do país deveria dar-se por meio da educação, mas educação em sentido amplo, não apenas como instrução escolar’.

Adhemar, falante e populista, bom conhecedor e praticante intuitivo do que hoje se chama marketing político, dava-se bem com os jornalistas, com os quais sempre soube manter uma relação cordial, às vezes muito pessoal com este ou aquele repórter.

Nesse sentido, pena que o autor do livro não tenha desenvolvido mais as ligações de Adhemar de Barros com os meios de comunicação – quando, na década de 1950, a imprensa diária paulistana era mais diversificada e combativa. Afinal, ele foi dono de um jornal popular, O Dia, policial, feito numa redação escura e precária na Rua Três Rios, que brigava todos os dias com um concorrente forte, tablóide, A Hora, daqueles de espremer e sair sangue, bancado pelo dono de laboratório Olavo Fontoura, e que era produzido numa redação também pequena, no bairro da Liberdade.

Adhemar foi também proprietário de duas rádios, a Bandeirantes e a América. A primeira dirigida por seu genro João Jorge Saad, com estúdios acanhados, perto do Mercado Municipal da Cantareira, celeiro de grandes radialistas; a segunda localizada num casarão da Rua da Consolação, esquina com Avenida São Luiz, com um amplo auditório para programas ao vivo.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México