Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Judith Butler no Brasil, protestos conservadores e o desafio do jornalismo para contribuir com o debate de gênero

Texto publicado originalmente no site objETHOS

Judith Butler é uma das pensadoras mais influentes da atualidade. (Foto: Fanca Cortez)

A filósofa norte-americana Judith Butler esteve no Brasil para participar do seminário “Os Fins da Democracia”, que ocorreu no Sesc Pompeia, em São Paulo, entre os dias 7 e 9 de novembro. Embora no evento sua fala tenha se dedicado a abordar os desafios da democracia contemporânea (vídeo na íntegra aqui), o assunto que mais repercutiu durante sua estada foi o das manifestações contra sua presença no país por conta de outro motivo: seus estudos sobre identidade de gênero. Butler é uma das principais referências mundiais na área e revolucionou pesquisas ao defender que as concepções de “homem” e “mulher” são socialmente construídas, ou seja, que a identidade de gênero e a orientação sexual não estão associadas automaticamente ao sexo biológico.

A onda de protestos começou com uma petição pelo cancelamento do evento, que circulou nas redes sociais com um texto odioso e genérico dizendo “Não podemos permitir que a promotora dessa ideologia nefasta promova em nosso país suas ideias absurdas, que tem por objetivo acelerar o processo de corrupção e fragmentação da sociedade”. O documento colheu mais de 370 mil assinaturas, mas felizmente não surtiu efeito sobre a ocorrência do evento. No primeiro dia, ela foi recebida por uma batalha entre conservadores e progressistas em frente ao Sesc Pompeia. Conservadores portando crucifixos chegaram a atear fogo em uma boneca com o rosto de Butler, enquanto gritavam “queimem a bruxa!”. No dia 10, a filósofa e sua esposa (a cientista política Wendy Brown) foram abordadas no aeroporto de Congonhas por um grupo exaltado que proferia insultos em inglês e português, chamando-a de “assassina de crianças” e “destruidora da família”. Ela chegou a ser agredida fisicamente. Butler comentou os episódios sobre sua vinda ao Brasil em texto publicado na Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, no último domingo (19), no qual ela também esclarece as premissas de sua teoria queer.

Os protestos contrários à presença da filósofa chocam pela intolerância e absoluta desinformação de seus manifestantes, mas também servem de gatilho para relembrar o papel do jornalismo no fortalecimento de uma sociedade plural e democrática, incluindo as questões que envolvem igualdade de gênero. Nos últimos anos, evidencia-se a dificuldade em produzir debates públicos em função da polarização de opiniões – fenômeno reforçado e tensionado pelo atual modelo de distribuição e consumo de informações, ocorrido majoritariamente via redes sociais.

Dados do relatório Digital News Report de 2017 apontam que quase oito em cada dez (76%) brasileiros com acesso à internet utilizam o Facebook para qualquer propósito, e 57% o usam para o consumo de notícias. Os números são menores em comparação a 2016, mas ainda significativos. Sobretudo porque as decisões sobre quais posts aparecem nas timelines de seus usuários não são editoriais, mas algorítmicas. É o algoritmo do News Feed que decide, com base em dados coletados pelas ações dos usuários (por exemplo, que tipos de posts curte ou compartilha, com quem interage, etc.), o que será ou não mostrado na linha do tempo. Os cálculos são opacos (ninguém sabe exatamente como funcionam, além do próprio Facebook), mas a tendência é que apareçam cada vez mais conteúdos similares àquilo que o sujeito costuma ler e concordar. É a famosa “bolha” criada por empresas que dominam o ecossistema informativo, e que exerce uma enorme influência sobre o que vemos e sabemos.

Isso se torna um grave problema, por exemplo, quando a bolha é constituída por discursos misóginos e homofóbicos por parte de seus pertencentes, gerando um ciclo de ódio e intolerância que pode inclusive resultar em episódios como os ocorridos durante a estadia de Butler no Brasil. Some-se a isso a perversidade de alguns setores da política nacional que tentam retirar sistematicamente direitos das mulheres, LGBTQIs e outras minorias, com propostas como a PEC 181 (que, se aprovada, pode proibir o aborto em todos os casos no país) ou a polêmica proibição de exposições artísticas sobre sexualidade em museus, e temos diante de nós um cenário perigoso. Sobre o assunto, a genial Eliane Brum publicou em sua coluna no El Pais: “Quem controla a sexualidade controla os corpos. Quem controla os corpos controla as mentes. Quem controla as mentes leva o voto para onde quiser. E também arregimenta apoio para projetos autoritários”.

O jornalismo amadurece pela “cauda”

Tendo em vista este cenário, é primordial relembrar que um dos papeis fundamentais do jornalismo é subsidiar elementos para o debate, tratando os temas de interesse público com a seriedade e profundidade necessárias, e tendo sempre no horizonte a garantia dos direitos humanos. Isto implica, em alguns casos, em ressignificar algumas de suas premissas, como a neutralidade – afinal, nada há de ético e responsável em assumir uma postura isenta (e às vezes até conivente) diante do machismo e da homofobia, sobretudo sendo o Brasil o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, e um dos cinco países com maiores taxas de feminicídio.

E como fazer um jornalismo competente e comprometido com as questões de gênero? Dentre as recomendações possíveis estão trazer a agenda de movimentos sociais feministas e LGBTQIs como pauta permanente na cobertura do cotidiano; problematizar a violência contra a mulher como consequência da lógica do patriarcado, e não culpabilizar a vítima pelo ocorrido (“ela havia bebido” e “voltava sozinha para casa” são menções bastante comuns em notícias sobre estupro); ouvir pessoas trans e travestis como fontes em matérias sobre diversos assuntos como participantes da sociedade, e não somente quando o tema é sua própria sexualidade; ouvir mulheres que atuam nas várias especialidades e profissões, invertendo a lógica constatada por Carmen Torres (2000) de que a maior parte das fontes especialistas ouvidas pelos meios são homens, e às mulheres fica reservado o papel de fonte “vítima”, além de serem minoria; por fim, e principalmente, pensar no gênero como um tema transversal na formação de profissionais jornalistas, trazendo-o na concepção das pautas de atividades práticas, nas discussões em bancos escolares e nos projetos de pesquisa e extensão.

Vale mencionar que há bons exemplos de jornalismo sobre gênero no Brasil, e muitos deles são produzidos por iniciativas autodenominadas independentes, que se multiplicam a cada dia e alongam a “cauda” dos veículos noticiosos (fazendo referência à teoria da cauda longa de Chris Anderson). Um levantamento feito por Kikuti e Rocha (2017) a partir do Mapa do Jornalismo Independente da Agência Pública elenca pelo menos 15 sites que trazem em seu foco/escopo ou linha editorial o empoderamento de mulheres. Entre eles estão o Gênero & Número, uma iniciativa de jornalismo de dados dedicada ao debate sobre gênero; Capitolina, uma revista voltada para as jovens que se sentem excluídas pelos moldes tradicionais da adolescência; AzMina, mídia feminista que trabalha também com projetos educacionais; e o Portal Catarinas, que enfoca no jornalismo com perspectiva de gênero para o estado de Santa Catarina. Como característica comum, elas são propostas jovens (com, no máximo, quatro anos de vida), tem sua equipe composta principalmente por mulheres, e utilizam múltiplas formas de financiamento.

Adotar a perspectiva de gênero na produção jornalística é importante porque pode ajudar a criar condições para uma vida possível de viver para aquelas pessoas que não se sentem representadas pelo gênero que lhes foi atribuído em seu nascimento, e também para uma sociedade mais igualitária no que diz respeito aos homens e mulheres. A questão é que, por serem segmentados (seja pelas temáticas, local de abrangência ou abordagem), os conteúdos produzidos por essas iniciativas independentes mencionadas acabam sendo consumidos por públicos de nicho, tendo dificuldade de expandir seu alcance para além deles. O desafio é conseguir transpor essa barreira e crescer, aproveitando-se das ferramentas oferecidas pelo modelo de distribuição via redes sociais e, ao mesmo tempo tentando “estourar a bolha” e encontrar formas de atingir outros públicos, visando estimular o tão necessário debate público. Não há caminhos claros sobre como vencer tal desafio, mas a sua solução certamente contribuirá para que episódios vergonhosos, como os de ódio a Judith Butler no Brasil na última semana, ocorram cada vez menos. A democracia agradece.

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Andressa Kikuti é professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa e pesquisadora associada do objeTHOS.

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Referências

KIKUTI, Andressa; ROCHA, Paula. O jornalismo independente e o empoderamento do discurso de gênero nas mídias digitais. In: Anais do 13º Mundo de Mulheres e Fazendo Gênero 11: Transformações, conexões, deslocamentos. Florianópolis, 2017.

TORRES, Carmen (ed.). Género y comunicación: el lado oscuro de los medios. Ediciones de la Mujer, n. 30. Santiago de Chile: Isis Internacional, 2000.