Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Quem sabe faz a hora

Poucos dias atrás, o ex-agente da CIA Ray McGovern estava em Seattle para uma de suas últimas palestras do ano sobre os descalabros dos atuais serviços de inteligência americanos. McGovern, hoje um setentão, trabalhou na companhia por 27 anos. Foi analista de inteligência de 1963 a 1990 e serviu a todos os presidentes do período – de John Kennedy a George Bush pai. Em 2006 devolveu a medalha que recebeu ao se aposentar por não querer se associar, nem remotamente, ao envolvimento da agência com as práticas de tortura adotadas na guerra contra o terror. Desde então atua junto às entidades interessadas em diminuir a terceirização e a cultura da desinformação nos serviços de inteligência dos Estados Unidos.

Em Seattle, McGovern resumiu assim seu alerta máximo quanto ao panorama americano diante das revelações feitas por Edward Snowden: “A escuridão [desinformação] torna as pessoas silenciosas, que é a condição desejada pelo poder… Mas está ficando tarde. Acredito que o próximo ano (2014) ou o seguinte serão decisivos. Chegou a hora de desempenharmos um papel. Precisamos reconhecer nossa responsabilidade.”

O New York Times teve seis meses e 27 dias em 2013 para se posicionar sobre Snowden e seu devastador baú de revelações. Deslanchada no dia 5 de junho e ampliada até a última semana do ano, a derrama de documentos comprovando os desmandos da NSA demonstrou a dócil convivência do país com a brutal violação de sua privacidade.

“Eu deveria ter chamado o Mal de Mal mais cedo”

Coincidência ou não, o inesperado editorial do NYT pedindo clemência ou uma punição mais leve para Snowden foi ao ar já no primeiríssimo dia do Ano Novo, em versão eletrônica, antes mesmo da edição impressa do dia 2. Talvez para que o garboso diário não constasse da história de 2014 como omisso no crucial embate entre liberdade e segurança nacional.

A argumentação do decisivo editorial no jornal mais influente do país merece ser aqui repetida. Em sua essência, ele diz: “Levando-se em conta o imenso valor das informações reveladas por [Snowden], e os abusos que denunciou, [ele] merece algo melhor do que uma vida de permanente exílio, medo e fuga. Talvez ele tenha cometido um crime, mas prestou um imenso serviço ao país… Retrospectivamente, Snowden tinha razão em acreditar que a única maneira de delatar esse tipo de operação de espionagem seria denunciá-la ao público e deixar que o furor resultante se encarregasse de fazer o trabalho que seus superiores se recusaram a levar a cabo… Quando alguém revela que funcionários do governo infringiram a lei de maneira deliberada e rotineira, essa pessoa não deve enfrentar a prisão perpétua nas mãos do mesmo governo.”

McGovern havia recorrido a exemplos de sua predileção para ilustrar a palestra de Seattle sobre cumplicidade no silêncio ao longo da história. Começou relembrando o caso do cientista-político do regime nazista Albrecht Haushofer. Tardiamente arrependido, Haushofer envolveu-se no atentado de julho de 1944 contra o führer e, preso, recusou-se a assinar uma confissão de culpa. Após seu fuzilamento pela Gestapo, uma confissão foi encontrada num de seus bolsos. Era intitulada “Culpa” e tinha a forma de soneto. Mas não era a confissão que seus captores esperavam: “Sim, sou culpado/mas não do que pensam/Eu deveria ter reconhecido meu dever/Eu deveria ter chamado o Mal de Mal mais cedo/ Adiei por demais fazer um julgamento” [tradução livre].

Teorias de fachada para Comunismo

McGovern também pinçou um conselho de Albert Camus para reforçar sua convocação ao fim da apatia nacional. “Você sempre pode ficar em silêncio ou falar de outra coisa quando não aprova [o estado das coisas]. Mas mesmo o silêncio tem implicações perigosas”, dissera o Nobel de Literatura a estudantes da Universidade de Upsala pouco após ganhar o prêmio em 1957. Em seus Escritos: 1944 a 1947, ele foi ainda mais sucinto: “Nada temos a perder além do essencial. Essa é a sina de uma geração.”

Não deixa de ser irônico que em pleno final de 2013 um espião das antigas cite o autor de A peste como exemplo a ser ouvido no combate à tentacular vigilância do Estado americano. Quase sete décadas atrás, ao fim da II Guerra, Camus chegara a Nova York como correspondente do jornal francês Combat e de imediato passou a ser investigado, vigiado, grampeado e seguido por agentes da polícia federal dos Estados Unidos. Não só ele. Jean-Paul Sartre, de visita ao país, também.

Por ordem de J. Edgar Hoover, chefe-mor do FBI da Guerra Fria, os agentes deveriam descobrir se Existencialismo e Absurdismo eram teorias de fachada para Comunismo. Quem conta os bastidores da empreitada é Andy Martin, autor do estudo comparativo The boxer and the goalkeeper: Sartre x Camus. Ele teve acesso às fichas do FBI dos dois intelectuais produzidas pela equipe especial encarregada de dar sentido a O ser e o nada e mergulhar nas divagações do personagem Mersault, de O estrangeiro.

Centro de armazenamento de dados da NSA

Delírio típico daquela era de confronto máximo em que as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, desperdiçavam fábulas à espreita de inimigos imaginários?

Hoje é pior. Sem ter sequer uma superpotência para lhe fazer sombra, a NSA revelada por Snowden parece uma nave à deriva, sem comando, foco ou resultado.

Dias atrás foi revelado que a agência intercepta as cartas que crianças americanas costumam escrever a Papai Noel e postam em caixas do correio antes do Natal. A justificativa da NSA para essa operação é detectar eventuais mensagens cifradas embutidas nas cartas natalinas. Embora o monitoramento de correspondência de cidadãos americanos dentro das próprias fronteiras seja proibido, a interceptação é considerada legal porque a criançada crédula endereça os envelopes a “Papai Noel/Polo Norte” (portanto fora do território americano), onde acredita viver o bom velhinho.

Não surpreende que um novo centro de armazenamento de dados da NSA esteja sendo construído no deserto de Utah capaz de abrigar conteúdo 100.000 vezes maior do que todo o material impresso da Biblioteca do Congresso.

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Dorrit Harazim é jornalista