Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A paz que mata e as perguntas que a imprensa não faz

Se fosse na novela das oito, todo mundo estaria comentando o quanto essa história está mal contada, cheia de enredos que não se encaixam. Mas como a narrativa é apresentada no Jornal Nacional, onde alguém um dia disse que se falava a verdade, chega a ser constrangedor reconhecer como os furos jornalísticos são, na verdade, furos de roteiro. Só que já não dá para disfarçar que a trama é ruim e que o diretor tem cada dia mais dificuldade de tornar verossímil essa história que bem poderia se chamar “UPP a qualquer preço”, como um folhetim de quinta categoria.

Não é novela, mas é jornalismo mal feito, editorializado e indisfarçadamente manipulado a portas fechadas. Repórteres medíocres que apuram sem fazer perguntas, editores que têm as respostas prontas das perguntas não feitas e empresários de mídia muito interessados na lucratividade, presente e futura, que a cidade-negócio lhes garante, formam o staff dessa criminosa cobertura jornalística que os veículos das Organizações Globo têm feito da crise da política de segurança pública do Rio de Janeiro que, contra todas as evidências dos fatos concretos, eles insistem em chamar de “pacificação”.

Mas deixemos de metáforas e ironias porque o assunto é muito sério. Diante de uma paz que tem produzido tantas mortes, de moradores e policiais, fatos objetivos como tanto gostam os grandes jornais e canais de TV, qualquer jornalista que valesse o diploma que tem faria, no mínimo, as seguintes perguntas:

1. Se as favelas estavam pacificadas, de onde saíram (ou por onde entraram) os traficantes, bem armados, por sinal, que agora orquestram organizados ataques a policiais e incitam protestos de moradores?

2. Se o grande sucesso das UPPs era a tomada e manutenção das favelas sem violência, o que gerou muitas chamadas de jornais destacando o fato de a polícia chegar a esses locais “sem disparar nenhum tiro”, como se explicam os sucessivos casos de assassinato e mesmo tortura de moradores, ligados ou não ao tráfico? Existe um serviço secreto da UPP? Como embasamento, é bom não esquecer que, segundo depoimento dos policiais que ouviram a sessão de espancamento do Amarildo, os torturadores perguntavam ao pedreiro questões ligadas ao tráfico.

Ação orquestrada e generalizações

3. Como se explica que em todos os casos de tortura ou morte de moradores pela UPP a Polícia Militar, institucionalmente (e não apenas o policial envolvido diretamente), tenha negado e apresentado outra explicação para o fato, não apresentando nenhuma disposição inicial em investigar eventuais “desvios” de uma política tão pacífica?

4. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, ganhou muitas páginas inteiras de jornal e minutos na televisão reconhecendo que era preciso complementar a ação policial com a presença de outras iniciativas sociais do Estado nessas comunidades. Aliás, o secretário diz isso, e pseudointelectuais orgânicos do governo do Rio repetem, desde sempre. Passaram-se cinco anos da instalação da política e a realidade mostra que a única coisa que chegou a essas localidades além da polícia foi a conta de luz e outros serviços que passaram a ser formalizados. Ninguém explica o motivo. Por que, em cinco anos, uma política prioritária como essa, que rendeu muita propaganda ao governador e seu séquito de empresários, foi expandida sem ser ter sido “complementada” e “completada” em nenhum dos lugares em que foi instalada? O que faltou? Se foi dinheiro, onde estão as planilhas de priorização dos recursos do governo do estado e as contas do que tem sido gasto com efetivos policiais e mesmo das Forças Armadas para garantir a expansão da política? Se foi tempo, que outras ações foram priorizadas? Se foi capacidade de integração com outras secretarias e setores do governo, como explicar que não faltou capacidade de integração, por exemplo, para trazer as Forças Armadas, que nem ligadas ao estado são, sempre que foi necessário?

5. O que pensam os moradores (a partir de pesquisa com expressão numérica, e representatividade de instituições e movimentos sociais locais atuantes, e não a partir de entrevistas aleatórias, selecionadas pelo interesse do repórter ou editor) dessas comunidades hoje sobre a UPP?

6. (E essa vale tanto para as autoridades quanto para os editores de grandes jornais) – Por que o conjunto das mortes de policiais de UPP indica uma ação orquestrada do tráfico e o conjunto das mortes de moradores por policiais da UPP não indica uma ação padrão (ou um modus operandi) dessa polícia e dessa política? O que permite generalizar e concluir em um caso e não em outro?

Cobertura viciada

Essas e muitas outras perguntas não são feitas porque a simples associação das respostas levaria a uma conclusão a que os grandes veículos empresariais simplesmente não podem chegar: a de que, independentemente de quais tenham sido suas intenções, que não cabe discutir aqui, essa política de segurança pública pacificadora simplesmente fracassou. Que o cartão de visitas do governo Sergio Cabral produziu um belo efeito fora das favelas, tranquilizando a classe média (por um curto período) e dinamizando como nunca a especulação imobiliária, mas não levou a paz para as comunidades nem para seus moradores.

Apesar da impressionante (e rara para os padrões jornalísticos) objetividade com que essa conclusão tem se imposto, com a concretude de jovens favelados e policiais mortos seguidamente, ela não só tem sido ignorada, como tem sido escondida atrás de uma explicação que mais parece um cachorro correndo atrás do rabo. Senão, vejamos: a política tem enfrentado problemas porque, de tão exitosa, tem provocado reações do tráfico organizado. Não sei se entendi bem, mas achei que a política tinha sido criada para acabar com o tráfico ou com a violência cotidiana produzida por ele. Será que esperavam que ele contribuísse com sua própria destruição, colaborando civilizadamente com a polícia e o governador?

Supondo que isso seja verdade, ninguém explica como uma política tão eficiente e exitosa ignorou esse “pequeno obstáculo”. Então, combinamos assim: até hoje, comemorávamos o êxito da política porque o tráfico tinha sido expulso; a partir de agora, continuamos comemorando o êxito da política porque o tráfico, reconhecendo o êxito da política, voltou a atacar. Isso pode ser sério?

Mas o fato é que, diante das evidências concretas (e doídas para quem tem perdido filhos, amigos e vizinhos numa guerra batizada de paz), os grandes veículos de comunicação apelam para a velha estratégia do “ou ou”, defendendo, sempre jornalisticamente, que qualquer coisa é melhor do que a presença do tráfico. Talvez seja. Mas, primeiro, não foi “qualquer coisa” que essa política, esse governo e seus braços midiáticos prometeram e venderam como imagem do novo Rio. Segundo, não é isso que os recentes e frequentes protestos de moradores de favelas contra o assassinato e desaparecimento de vizinhos e amigos seus pelas mãos da polícia indica.

Quando se afirma que esses protestos estão sendo incitados por traficantes, cai-se num duplo problema. O primeiro é jornalístico, já que esse tipo de informação é plantada por depoimento ou nota oficial da polícia (que é a fonte principal da grande mídia, principalmente das Organizações Globo), sem nunca ser confirmada. O segundo é político-estratégico porque, se os traficantes não só não foram expulsos como continuam com mais força ou apelo sobre a população do que uma polícia anunciada como quase comunitária, que se pretende um braço protetor do Estado, essa é a maior evidência do seu fracasso. Se os moradores não confiam nessa polícia, com sua força e serviço de inteligência, para protegê-los de eventuais desmandos dos traficantes, é prova da sua incompetência. Se o tráfico hoje de fato mobilizasse mais a população do que a polícia que deveria tê-la libertado das atrocidades desse mesmo tráfico, é prova da sua truculência e brutalidade.

Em qualquer dos casos, a despeito do que grita a realidade concreta todos os dias, os grandes meios de comunicação têm uma resposta pronta (resposta disfarçada a uma pergunta que nunca foi feita): não foi a polícia, a política ou o governo que fracassou; foram as pessoas que fracassaram, que não se encaixam nessa nova cidade e nesse novo estado que está nascendo. E isso confirma apenas o que todo mundo, no fundo, já sabia, com ou sem UPP: que a linha que separa favelado e bandido é tênue e sempre fluida. Esse parece ser o maior “desafio da pacificação”, como insiste em classificar a retranca do jornal O Globo sobre as mortes de moradores e policiais nessas comunidades.

Trata-se, portanto, de uma cobertura jornalística viciada e interesseira, que interpreta em vez de informar, e anda em círculos para confundir o leitor/telespectador e reafirmar um senso comum que tem justificado a chacina de jovens e a condição de cidadão de segunda classe para uma população que um dia acreditou que de fato viveria em paz. A vida real está virando o jogo. E essa mídia vai pagar a parte da conta que lhe cabe.

******

Cátia Guimarães é jornalista