Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Para pensar além do registro indignado

A notícia, por si, já seria relevante: não é todo dia que a Justiça manda sustar a distribuição e recolher os exemplares já distribuídos de uma revista. Mas a reação indignada que a mais recente edição da Vogue Kids provocou, ao publicar um ensaio fotográfico com meninas em poses sensuais, poderia ter sido aproveitada pela imprensa para ir além do registro do fato e da reprodução de declarações condenatórias.

O tema é delicado, mas exatamente por isso mereceria ser discutido. Quase 80 anos depois de Freud, ainda lidamos muito mal com a sexualidade, e um caso como este permitiria tratar de aspectos que têm a ver com esta questão de fundo: desde a mercantilização da vida e as engrenagens mobilizadas para explorar e excitar nossos desejos mais íntimos até a idealização do universo infantil, que reproduz o senso comum, mesmo – ou principalmente – quando quem fala é um especialista.

Na quinta-feira (11/9), na página que mantém no Facebook, um pediatra investiu pesadamente contra a revista, a quem acusava de estimular a pedofilia. Até a manhã de segunda-feira (15/9), o texto havia obtido mais de 14.500 compartilhamentos e 2.590 comentários.

“Esse tipo de matéria”, diz o pediatra, “estimula adultos a erotizar crianças e impedir que vivam os valores mais simples e as brincadeiras naturais da infância. Elas não estão imitando saudavelmente a mamãe roubando a maquiagem, não se iludam. Estão tendo sua infância amputada, sendo forçadas a entrar num universo que não é o seu, sendo instiladas de valores negativos e tendo seus espíritos deformados. Injetadas de materialismo, de ansiedade em seguirem padrões impostos e perversos de beleza (olhem a magreza das meninas) desde a idade escolar, onde deviam estar brincando de subir em árvores e jogar bola de gude, jogar bola e ir a praia”. 

Crianças também brincam de médico. Rita Lee dizia que “brincar de médico é melhor que boneca”, mas Rita Lee sempre foi levada da breca, a ovelha negra da família.

Falta de questionamento

Entrevistado pelo Globo (ver aqui), o pediatra reproduz o que comenta em seu artigo. O jornal não indaga se há de fato brincadeiras “naturais”, nem, muito menos, sobre a omissão quanto à relação das crianças com a internet. Não estaria faltando algo fundamental nesse discurso?

Mais adiante, acolhe acriticamente outra declaração do pediatra:

“Nesta idade [7 anos, como pelo menos uma delas aparentaria, no ensaio da revista], elas estão num momento em que começam a descobrir o mundo. É uma fase primorosa, cheia de riqueza e descobertas. Oferecer a elas uma identidade sexual justamente neste período é uma crueldade”.

No entanto, não faltam histórias de meninos e meninas “transgêneros”, que decidem assumir outra identidade (ver aqui, aquie aqui), e provocam manifestações entusiasmadas de apoio nas redes sociais. Não seria oportuno discutir esses casos diante do diagnóstico do especialista?

A Folha de S.Paulo, o outro dos grandes jornais que cobriu a história, reproduz declaração de uma psicóloga de uma ONG que diz ser saudável “o filho ou a filha brincarem com o salto alto da mãe ou com o batom em casa”, mas não uma empresa fabricar salto alto para pés tamanho 20 ou sutiãs de bojo para meninas de oito anos. O leitor não teria o direito de ser esclarecido por que uma coisa é saudável e outra, não?

Ampliando o debate

Uma rara tentativa de ir um pouco além do senso comum está no blog “Território de Maíra”, na CartaCapital, no qual se questiona também o universo da moda, que, como diz uma das entrevistadas, “não é exatamente o mais ético dos mundos”:

“Ao longo dos anos temos grandes obras que abordam o tema da sexualidade infantil, de Freud a Nabokov. A questão é que num ensaio de moda feito para vender produtos e comportamento não há espaço para teoria, nem para discussão, nem para aprofundar nada. Não é questão de demonizar a revista, mas de fato é o caso de ampliar o debate sobre essa questão. Não é moralismo, mas a constatação de que essas imagens geram certas reações, elas não são neutras nem existem num universo ideal. Os pais precisam se colocar e parar de fingir que esse tema não existe. A revista é só mais um exemplo de um comportamento que está na mídia e também na educação”.

Cultivando monstros

Será difícil acolher o argumento da Vogue de que “jamais pretendeu expor as modelos infantis a nenhuma situação inadequada” e de que “não houve (…) intenção de conferir característica de sensualidade ao ensaio”. Mas a edição é apenas um aspecto de uma estrutura voltada para a exacerbação do consumo, e que funciona há muito tempo. Se aquelas crianças tivessem sido poupadas daquelas poses, ainda assim se espelhariam nas modelos das festejadas fashion weeks, ou no comportamento das celebridades que proliferam na mídia. Gerações anteriores cresceram com a Xuxa e suas paquitas. Provavelmente brincaram muito com a Barbie.

Ainda assim, a poderosa indústria do entretenimento é apenas um aspecto da questão. Outro, fundamental, é a disposição para se enxergar o risco de pedofilia por toda parte, o que tende a produzir uma perigosa índole persecutória baseada no puritanismo mais retrógrado. A propósito, recentemente O Globo noticiou uma significativa história ocorrida nos Estados Unidos, onde um fotógrafo sofreu inúmeros ataques por ter divulgado imagens de sua filha de 2 anos com pouca ou nenhuma roupa (ver aqui). Basta lembrar que, entre os comentários ao texto do pediatra acima referido, houve quem fosse atrás do perfil da fotógrafa responsável pelo criticado ensaio da Vogue.

As ondas da internet podem produzir aberrações maiores das que as que se pretende combater. E nunca será demais lembrar quantos equívocos fatais, hoje e ontem, são produzidos a partir das melhores intenções. O caso Escola Base tem vinte anos e ainda nos assombra: começou com a angústia de duas mães zelosas pela integridade física e moral de seus filhos, ao estranharem o comportamento deles em casa. Que conflitos íntimos elas próprias viviam para enxergar ali o indício de algo monstruoso?

Nós e os outros

Como sempre, o apelo à razão é o que pode confrontar esse risco. Enfrentar tabus é sempre difícil, por motivos óbvios, mas não há outro meio para o esclarecimento. Quem estiver disponível para questionamentos poderá pensar no subtexto dos contos de fadas e das historinhas infantis, Branca de Neve com seus anões, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau. Ou recordar da obsessão de Lewis Carroll por menininhas, em especial Alice Liddell, cujas fotos fariam inveja às nossas modelos mirins. Ou indagar-se por que, afinal, a Lolita de Nabokov se tornou um ícone.

E, também, indagar-se por que a reação indignada contra a exploração de crianças por uma revista de moda não se estende à situação das crianças maltrapilhas que (não) vemos circular diariamente pelas ruas. Quem sabe será porque aquelas meninas tão delicadas e indefesas poderiam ser nossas filhas, e as outras, bem… as outras são as outras.

******

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)