Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guerra é mais suja do que a mídia pensa

Os jornalistas que noticiam qualquer fato precisam necessariamente conhecer algo sobre o assunto, ou correm grande ri sco de atender aos interesses da fonte. Muito interessante o programa Observatório da Imprensa que discutiu a questão Israel x Líbano. Infelizmente, só assisti a parte do programa, mas percebi que os jornalistas não têm a mínima idéia do que seja um conflito armado e se deixam levar pelas informações fornecidas por qualquer lado do conflito.

A informação na guerra é material bélico. O jogo de informação/contra-informação que é produzido por quem está no conflito ou espera ter vantagens com ele é muito grande. Assim, qualquer informação que vier, de qualquer fonte, é necessariamente manipulada, já que a censura e a ‘produção de notícias’ durante o conflito é praxe, recomendada militarmente como forma do controle de informações, servindo ainda de material para manter a tropa com o que se chama militarmente de ‘moral elevado’, já que, como dito antes, informação é material bélico.

Guerra ou conflito armado tem por objetivo destruir, aniquilar ou dominar o inimigo, e há três frentes básicas em que o inimigo precisa ser derrotado: psicológica, logística e militar, sendo que a destruição de somente uma ou duas delas dificilmente coloca o inimigo em situação de subjugação. Há vários exemplos em que o inimigo foi derrotado militarmente, mas o fato de ele não ter sido derrotado psicologicamente o manteve em combate, lutando muitas vezes com armas muito inferiores às dos agressores. Por fim, expulsam os agressores (Vietnã, Resistência Francesa, Batalha de Independência da Argélia etc.).

As perdas

Destruir o inimigo psicologicamente significa mostrar a ele que é inferior e não tem condições de rechaçar o ataque. Para isso, o controle de informações é fundamental e a seleção das notícias ou a produção de notícias falsas faz parte do que se chama militarmente do jogo de informação/contra-informação.

Militarmente, um inimigo decidido com uma faca ou uma pedra na mão é muito mais perigoso do que um inimigo indeciso com uma arma de fogo na mão (como exemplo, coquetel molotov contra tanques de guerra alemãs, na França invadida).

Este exemplo mostra em parte o motivo da dificuldade de se conseguir dominar uma área ou território militarmente caso o inimigo não se dê por vencido. Como exemplo mais perto da nossa realidade, aproxime-se de um ninho de passarinho (quero-quero, p. e.), e verá que ele, apesar de muito menor, mais fraco e menos inteligente, vai pôr você para correr. Qualquer animal que tenha seu ninho, filhotes ou ‘casa’ ameaçado vai reagir com firmeza e determinação. Caso o inimigo não esteja com esta mesma firmeza, vai ser rechaçado. Este fato geralmente coloca os exércitos mercenários e/ou invasores em desvantagem em relação ao exército/povo invadido.

Temos ainda que notar que o governo pode capitular, mas se este governo não representar de fato o seu Estado, a população combaterá; lembremos ainda que quando um povo é invadido essa população, civil ou não, já perdeu muito. Perdeu parentes, amigos, filhos, esposas, conhecidos, empregos, sua história e cultura foram vilipendiadas, e combatem como quem já perdeu quase tudo – só não foram derrotados psicologicamente e estão muito mais decididos.

A guerra de guerrilha

A logística também entra no tripé (psicológica, logística, militar) e é fundamental que seja destruída. Não há inimigo que consiga combater sem água, alimentos, roupas, comunicação, abrigo, armas, combustível e todo suporte logístico. Quem dá esse suporte é o que se chama de população civil. Daí se conclui que não importa o que a população civil faça: se trabalha na fábrica de botões para fardamento ou produz armas, é colaborador. É lógico que há níveis de colaboradores mas, militarmente, todos estão ajudando. Todos colaboraram com a sustentação desse Estado e todos que colaborarem com o Estado inimigo serão inimigos. Falar de população civil é balela que militar fala e jornalista e a população acabam engolindo. É responsável pelo seu Estado e pelo seu administrador (governo), portando não há população civil inocente; ou, se for inocente, no mínimo é responsável. A destruição de alvos ‘civis’ se enquadra tanto na destruição da parte logística como na destruição psicológica do inimigo.

‘Guerra com precisão cirúrgica’ – lá vem outra balela, muito noticiada. Apesar de hoje a guerra ter mudado (ela ‘progrediu muito’), quem faz o domínio de uma área ou região é ainda a infantaria. Após o ataque de artilharia, aéreo e outros que se fizerem necessários, é a infantaria que avança. Infantaria significa soldados a pé, munidos de armas de mão, facas, baionetas, granadas e equipamentos possíveis de serem carregados a pé, com apoio ou não de veículos e armas de médio poder de fogo. O território vai ser conquistado passo a passo; procurem dados a respeitos dos tipos de ferimentos da Primeira Guerra do Golfo (EUA x Iraque), e verá que o maior número de mortos e feridos se deu por armas brancas (facas, baionetas, porretes etc. na região do Kuait, região que teve que ser retomada).

Se a população não aceitar a invasão, a guerra de guerrilha se instala, tendo como desvantagem para o invasor não saber quem é o inimigo, já que ele está disperso na população ou é a população (o inimigo está mais decidido, não tem mais nada a perder e está invisível).

No front

Muitas vezes, quando se inicia um conflito armado, vem a história (estória) de que este conflito é por pouco tempo. Enumere os conflitos militares que duraram menos de alguns anos e os que duraram dezenas de anos. Não dá para um jornalista publicar uma notícia dessas sem um mínimo de crítica. Ele estará servindo a um dos lados, o que tiver interesse nessa informação.

‘Crianças, mulheres e inocentes estão sendo mortos’, isto sempre é noticiado. Lembrem-se da destruição psíquica e logística e verá que eles podem estar englobados nestes tópicos. Após alguns anos de guerra, o número de soldados diminui e há necessidade de se convocar soldados cada vez mais jovens. Não raro, há soldados de 9 ou 10 anos de idade, às vezes menos. No teatro de operações, matar crianças significa diminuir a quantidade de soldados do inimigo (a guerra durará anos e crianças estão/estarão no front). Atirar em criança de 10 anos, para quem está no front, pode ser atirar num soldado, não faz diferença; atirar nas de 6 anos eliminará um soldado que em 5 anos terá 11.

A guerra é muito mais suja do que se pensa. Portanto, lembre-se: ‘Aprendendo um pouco sobre a guerra você nunca mais vai ver uma do mesmo jeito.’

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Biólogo, Campinas, SP