Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Um clássico para o ensino de ética no jornalismo

Os jornais erraram na cobertura, os vídeos são incompletos. Para avaliar o que realmente ocorreu na mesa-redonda Arena Sportv de quinta-feira (3/8) era preciso assistir ao programa do início. O debate reservou uma surpresa para os assinantes: um ‘barraco’ no pior estilo da imprensa irresponsável. Os comentaristas do programa analisavam a vitória do São Paulo sobre o Chivas Guadalajara por 3 x 0, na véspera, elogiando especialmente a participação do goleiro Rogério Ceni, que defendeu pênalti em momento delicado do jogo.

A comentarista Milly Lacombe, uma das melhores da Copa do Mundo, discordou. Diante da insistência dos companheiros de mesa em exaltar o goleiro, foi subindo nervosamente o tom da crítica. ‘É um dissimulado’. Depois (transcrição de memória), disse: ‘É medíocre na saída de gol, medíocre quando baixa os braços, medíocre quando se ajoelha…’. Os elogios continuaram, e a jornalista então perdeu o senso de responsabilidade e a cabeça (a partir daqui as cenas podem ser vistas em vídeo de 8m32 do Kibe Loco, no YouTube.com): ‘O meu medo… eu não consigo, por exemplo, deixar de me lembrar que o Rogério falsificou uma assinatura do Arsenal para conseguir aumento no São Paulo. Ele forjou um documento’.

‘Nesse terreno eu não entro, porque aí é especulação’, rebateu imediatamente o veterano Armando Nogueira. Um minuto depois Milly Lacombe já recuava: ‘Se estou errada peço desculpas’. Quando anunciou que Rogério Ceni estava ao telefone, ao vivo, o apresentador Cleber Machado, que até então fizera tímida observação de que a história tinha sido ‘mal contada’, baixou de vez o nível ao comentar com risadinhas que o programa tem ‘uma audienciazinha qualificada’. Até aquele momento Machado não percebera a gravidade do episódio.

Escola Base atualizada

Mas Ceni ligou para informar à jornalista que reunisse as provas, pois teria de apresentá-las posteriormente. Não pronunciou a palavra ‘Justiça’ uma só vez. Até se estendeu mais do que provavelmente pretendia, entrando num diálogo improdutivo com a comentarista, a voz cada vez mais trêmula, e se perdeu um pouco em sua justíssima posição.

Milly Lacombe recuou mais ainda, numa postura de negação que em divã de analista denotaria desamparo, mas no ar soou apenas patética: em tom agudo, dizia que não chamou Rogério Ceni de medíocre, que não o acusara de falsificador, exigia dele que contasse sua versão. Mas o estrago estava feito, as acusações dela repicavam frescas nos ouvidos do assinante. As tentativas de panos quentes de Machado, despreparado para circunstância tão grave, ecoavam gaguejantes.

O episódio atualiza o caso da Escola Base, até hoje mal resolvido. Pode virar um clássico nos estudos de ética nas escolas de Jornalismo. Evento desta natureza, em que um comentarista de televisão faz tão séria acusação ao vivo, sem certeza alguma, apenas de ouvir dizer, indica que estão cada vez mais próximos do abismo os limites éticos do exercício da profissão.