Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

EBC no Programa de Desestatização: mais um passo para desestruturar a Comunicação Pública no Brasil

Foto: ABR

Depois de sucessivas ingerências governamentais na gestão, inclusão de conteúdos meramente propagandistas na programação das emissoras e repetidos casos de censura a matérias e reportagens sobre direitos humanos, o Governo Federal decide aprofundar a desestruturação do caráter público da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) ao, por meio do Decreto Presidencial nº 10.669/2021, incluí-la no Programa Nacional de Desestatização.

Apesar de a medida ser de abril deste ano, o desprezo do atual governo pela EBC é antigo. Neste sentido, vale lembrar que, ainda em 2018, poucos dias após eleito, Jair Bolsonaro afirmou publicamente a sua intenção de “extinguir” ou “vender” a EBC. Empossado presidente, não foram raras as declarações com teor semelhante.

Criada há menos de 15 anos, a EBC representa uma dívida histórica do Estado brasileiro com a possibilidade de um setor das comunicações plural e diverso.

É preciso lembrar que, no Brasil, a radiodifusão foi consolidada a partir da mídia comercial em expansão facilitada pela aliança entre os proprietários da mídia privada e os governos. Esse traço histórico atrelou a compreensão da própria comunicação a uma visão excessivamente comercial e, consequentemente, vinculada à publicidade e ao lucro enquanto objetivo final.

Sabe-se que a existência da mídia comercial é legítima e a sua atuação vem resguardada pela Constituição Federal de 1988. Todavia, não pode prevalecer de forma absoluta, pois enquanto direito e mesmo pressuposto para a consolidação de regimes democráticos, requer ambientes que priorizem a diversidade e o pluralismo.

É, portanto, na relação com a própria noção de democracia que se constitui a EBC. Em documento sobre as telecomunicações e a radiodifusão no Brasil, publicado no ano passado, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico declarou que “a EBC foi criada com uma intenção semelhante à de outros sistemas públicos nacionais de radiodifusão. Especificamente, teve como objetivo fortalecer a democracia no Brasil, acrescentando mais uma voz ao discurso público. Dessa forma, complementaria o conteúdo de emissoras comerciais e seria independente de controle do governo” (OCDE, 2020, p. 220). [1]

Optando ignorar este papel da EBC para a democracia, o secretário-executivo do Ministério das Comunicações, Vitor Menezes, durante Audiência Pública na Câmara dos Deputados, no último dia 28 de junho, disse que a pretensão do Governo é “tornar as empresas públicas deste país o mais eficiente possível” e que a inclusão da EBC no plano de desestatização é para “avaliar quais as alternativas de parceria com a iniciativa privada poderia o Estado ter”, com vistas “a garantir a sua sustentabilidade econômico-financeira”.

Ainda que a busca por lucros não deva ser um objetivo da Comunicação Pública, quem ouve/lê as palavras de Vitor Menezes pode até acreditar que a EBC dá prejuízo ao Governo Federal, o que não é verdade.

Em recente estudo sobre orçamento da EBC, o pesquisador Octavio Pieranti demonstra que, entre as empresas públicas congêneres de 17 países por ele analisados, a brasileira foi a que teve o menor orçamento por habitante. Além do custo baixo, Pieranti alerta para a “diminuição do percentual do orçamento destinado a investimentos nos últimos anos. A empresa vem sendo limitada ao pagamento de seus funcionários e de despesas operacionais regulares” (PIERANTI, 2020, p. 7). [2]

A respeito disto, importa mencionar também que a Lei nº 11.652/2008 garantiu um mecanismo de autonomia econômico-financeira da EBC, a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), criada a partir da redução de uma parcela das receitas do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). Porém, do total arrecadado, somente foram reservados R$ 2,8 bilhões em todos os anos de contribuição à EBC, sendo que quase nada foi repassado à empresa.

Na defesa de um ambiente comunicacional plural e diverso que, repita-se, é imprescindível para a democracia e para que os indivíduos exerçam outros direitos, entidades populares, sindicatos e Comissão de Empregados da empresa têm realizado uma ampla campanha para sensibilizar a população e as instâncias institucionais sobre a importância da preservação e do fortalecimento do caráter público da EBC.

Dois Projetos de Decreto Legislativo, protocolados por partidos de oposição ao Governo Federal, têm sintonia com essas articulações da sociedade civil: o PDL 148/2021, de autoria dos deputados Bohn Gass e Erika Kokay, ambos do PT; e o PDL 153/2021, apresentado pela bancada do PSOL.

Os dois PDL’s, que buscam sustar a aplicação do Decreto de inclusão da EBC no Plano de Desestatização, destacam que a privatização ou extinção da EBC revelam-se como inconstitucionais, ao comprometer o sistema público de comunicação, previsto no artigo 223 da Constituição Federal de 1988.

Aliás, é importante destacar que a EBC não pode transferir as suas emissoras de radiodifusão. Isso porque, dentre outros motivos, a EBC não dispõe de outorgas. Ela é reconhecida como entidade que executa o serviço em nome da própria União. Não houve delegação para executar os serviços. Operam por meio de autorizações especificas, sendo que a Portaria nº 4, de 17 de janeiro de 2014, do Ministério das Comunicações, consagra que a EBC pode operar serviços de radiodifusão por meio de consignações. Consignação é o simples reconhecimento de que aquela entidade opera em nome do Executivo [3].

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Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professor e pesquisador de Políticas de Comunicação.

Tatiana Stroppa é advogada, doutora em Direito, professora e pesquisadora das liberdades comunicativas. São, respectivamente, coordenador e vice-coordenadora do GT Políticas e Governança da Comunicação da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).

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Notas

[1] Avaliação da OCDE sobre Telecomunicações e Radiodifusão no Brasil 2020, OECD Publishing, Paris, 2020. Link para acesso: https://doi.org/10.1787/0a4936dd-pt

[2] PIERANTI, Octavio P. A radiodifusão pública é “cara demais”? Uma avaliação do orçamento da EBC. 2020. Link para acesso: https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/12736 

[3] PIERANTI, Octavio P. O processo sem fim: como a Radiobrás e EBC, por mais de 30 anos, tentaram desistir de emissoras e fracassaram. Brasília: Universidade Federal de Brasília, 2021.