Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Autodeterminação de informação e direito ao anonimato

Todo jornalista sabe que tem como um dos limites à liberdade de informação o chamado Direito à intimidade ou à vida privada. O Direito à intimidade aparece como uma das grandes conquistas dentro dos Direitos da personalidade, e seu nascimento é relativamente recente. Mas o avanço tecnológico atual faz com que esse Direito assuma outras vertentes, novas facetas que vale que o profissional da imprensa conheça, porque ainda circundam a liberdade de informação.

Direito natural ou conquista histórica?

Muitos dos Direitos Fundamentais atuais surgem dentro de um nítido processo histórico. São Direitos novos, alguns deles chamados de Terceira Geração, de caráter difuso, a exemplo do meio ambiente. Também a intimidade, por algumas circunstâncias que aqui se vai demonstrar, parece ser uma conquista nova.

Mas talvez seja interessante tangenciar uma questão filosófica que o jurista propõe, toda vez que se depara com um direito novo: os Direitos Fundamentais do ser humano vão surgindo (ou desaparecendo) com o tempo, ou pode-se dizer que eles existam independentemente de sua afirmação na lei?

A questão não é simples de se resolver, e tampouco é nova. Antígona já expunha nitidamente seu dilema: obedecer ao Direito do governante ou ao Direito dos Deuses, que era natural. Pois hoje o dilema permanece, e os chamados jusnaturalistas são categóricos em afirmar que os legisladores nada mais fazem que descobrir – na medida do possível – os direitos que são naturais do ser humano, para afirmá-los em um contexto positivo, na lei.

Nesse sentido, a intimidade, como Direito da Personalidade, poderia ser compreendido como natural do próprio ser humano, e imprescindível ao desenvolvimento de sua personalidade. O fato de que tenha sido recentemente afirmado na legislação não significa que exista somente há pouco, mas que uma combinação de necessidade e consciência do legislador fez com que fosse expressamente afirmado no grau atual de evolução do Direito. Grau, aliás, que sempre deixa a desejar.

Origem do Direito à intimidade: a imprensa

O marco principal para a origem do direito à intimidade é um artigo publicado pelos norte-americanos Samuel Warren e Louis Brandeis, na Harvard Law Review do ano de 1890. O senador Samuel Warren teria considerado que a imprensa da cidade de Boston havia divulgado dados reservados sobre certas circunstâncias produzidas durante o casamento de sua filha. O pai pediu então conselho ao jurista Louis Brandeis (que posteriormente seria alçado a presidente da Corte Suprema de Justiça dos Estados Unidos) para que afirmasse se o Common Law oferecia norma que protegesse a intimidade dos cidadãos. A análise dos precedentes permitiu a Brandeis afirmar que o Common Law reconhecia um direito genérico a privacy, o que se deduzia dos distintos casos de violação à propriedade (breach of property), violações de confiança (breach of confidence), violação de direito de autor (breach of copyright) e também de difamação.

Nesse sentido, surgiu o direito à intimidade como autônomo ao direito à honra, e estreitamente ligado à atividade jornalística, bem como – já àquele tempo se ressaltava – à evolução tecnológica. [Desde sua introdução, o artigo relaciona as então novas tecnologias à necessidade de refletir sobre a privacidade ‘Recent inventions and business methods call atention to teh next step wich must be taken for the protection of the person, and for securing to the individual what newspaper enterprise have invaded the sacred precincts of private and domestic life; and numerous mechanical devices threaten to make good the prediction that ‘what is whispered in the closet shall be proclaimed from the house-tops’. Warren, Samuel D. , Brandeis, Louis D., The Right to Privacy, Harvard Law Review, Vol. IV, nº 5, 1890 (disponível na íntegra em www.estig.ipbeja.pt)]. Pelas necessidades da época, o Direito à intimidade era definido como um direito de estar só, de exercer a personalidade longe da vista da sociedade.

O exercício atual da intimidade ultrapassa a – devida ou indevida – intervenção da imprensa, mas não deixa de ser um dos principais elementos de entrave para o absoluto exercício da informação.

O Direito à intimidade na Legislação atual

Leis e tratados atuais consagram o Direito à intimidade e à vida privada.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, aprovada pela Assembléia Geral das ONU, determina, em seu artigo 12, que ‘Ninguém será objeto de ingerências arbitrárias em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de ataques a sua honra ou sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou ataques’. O termo ingerência arbitrária destaca a possibilidade de outras intromissões que possam haver sem a arbitrariedade, a exemplo daquelas determinadas pelo juiz, em observância a direitos consagrados. Pouco tempo depois, em 04 de novembro de 1950, a Convenção Européia de Direitos do Homem consagrava, sobre o direito à vida privada (art. 8º), que ‘não pode haver interferência da autoridade pública no exercício desse direito salvo que esta interferência esteja prevista por lei e constitua uma medida que, em uma sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem econômico do país, a defesa da ordem e da prevenção das infrações penais, para a proteção da saúde e da moral, ou para a proteção dos direitos e liberdade de outros’.

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em seu artigo 11.2, dispõe que ‘ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação’.

A declaração 3348 da ONU, em 1975, determinou aos estados que tomassem medidas para proteger a população dos efeitos do mal uso dos avanços tecnológicos e científicos, ‘including their misuse to infringe upon the rights of the individual or of the group, particularly with regard to respect for privacy and the protection of the human personality and its physical and intellectual integrity’ [Michael, James: Privacy and human rights: an international and comparative study,with especial reference to developments in infomation technology, Dalmouth Unesco, Hampshire, Inglaterra, 1994, p.21].

No contexto nacional, a Constituição Federal defende a vida privada no inc. X de seu art. 5º. O Código Civil, de 2002, dispõe sobre a inviolabilidade da intimidade no seu art. 21. O Código Penal, cuja Parte Especial é de 1940 preferiu usar apenas o termo liberdade individual (Capítulo VI), que não é o mesmo. Mas poucos se lembram de que foi a Lei de Imprensa, de 1967, a primeira a preocupar-se em matizar o direito à intimidade diante o interesse público pela notícia (art. 49, § 1º).

Hoje, então, o Direito à Intimidade é previsto na legislação, e o cidadão não tem problemas em procurar a sua defesa, se houver violação desse Direito da Personalidade. Claro que esse direito não pode intimidar de todo o profissional da imprensa, que tem a seu lado a liberdade de informação.

As novas perspectivas do Direito à Intimidade.

Com as novas tecnologias, o Direito à Intimidade expande. Ultrapassa o mero direito de reserva, o direito de estar só e passa a compor o atual ‘Direito à autodeterminação informática’. A origem desse instituto é alemã, em uma sentença de seu Tribunal Constitucional, de 1983. Ele declarou que algumas perguntas feitas pelo Censo de então, se consideradas isoladamente, não representavam risco à personalidade. Porém, quando combinadas, eram capazes de fornecer um quadro completo e detalhado de uma pessoa afetada.

A autodeterminação informática seria o direito de a pessoa controlar os dados que se encontram disponíveis acerca de si próprio. Com a informática avançada, a combinação de dados oferece a possibilidade de monitoramento de toda a vida privada, que antes não existia. E pode servir a interesses econômicos e políticos, motivo pelo qual muitos dos juristas defendem que ela, a autodeterminação informática, constitui direito autônomo, ou seja, desvinculado da própria intimidade.

E, como novos problemas afirmam novos Direitos, muito se especula no sentido de que o novo Direito, em virtude da internet e desses novos meios de combinação de dados, seria o Direito ao Anonimato. O caso Google, na recusa de atender à intimação do governo dos Estados Unidos para revelar informações sobre os usuários que utilizavam sua caixa de busca, é ilustração dessa nova perspectiva da Intimidade.

Ou seja, muito há ainda o que se pensar e evoluir sobre esse novo Direito do Homam..

Conclusão

Com a nova combinação de dados, e seu acesso rápido, o Direito à Intimidade vai deixando de ter a intromissão da imprensa como seu maior vilão. O Estado e os grandes grupos econômicos passam a poder representar esse risco, na manipulação de Dados. Por isso, se ‘Em 2015, o Brasil talvez possa contar com uma das mais avançadas estruturas de governo eletrônico em todo o mundo’ [Siqueira, Ethevaldo, 2015: como viveremos, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 264 ], como prevê Ethevaldo Siqueira, há que se preocupar em limites estritos para a combinação e cruzamento automáticos de dados, pelos órgãos privados e, principalmente, públicos. No estrangeiro, medidas severas – ao menos na lei – são tomadas para garantir a integridade da vida privada diante desses novos riscos (vide, no Parlamento europeu, a Diretiva 95/46/CE).

E tal preocupação é também da imprensa, que, se tem cuidado para não ofender a intimidade alheia, não pode deixar de cobrar atitudes do governo em controlar suas próprias bases de dados, na garantia desse Direito Fundamental.

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Advogado especializado em direito de imprensa, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP, pesquisador convidado pela Universidade de Valladolid e autor, dentre outros, de Responsabilidade Penal na Lei de Imprensa: Responsabilidade sucessiva e Direito Penal Moderno e de Argumentação Jurídica