Monday, 14 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Que jornalismo é esse?

(Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)

Nos ensinam os bons manuais de Jornalismo, que notícia boa é aquela que traz um fato inusitado, de grande interesse na sociedade e que chega rápido aos cidadãos consumidores de informação – preferencialmente em tempo real. Também é sabido que o que potencializa os meios de comunicação é a amplitude da audiência. Quanto maior, melhor, pois isso gera prestígio e retorno publicitário. Entretanto, a maioria dos canais de televisão aberta do país ignorou o que acontecia na tarde de 8 de janeiro de 2023, quando uma turba de terrorista decidiu ocupar e depredar as sedes dos Três Poderes na Capital da República.

Jornais, revistas, agências de notícias nacionais e estrangeiras, portais informativos, prontamente enviaram seus profissionais para o front da notícia. Vários deles, em especial foto e cine jornalistas, foram alvo de agressões físicas perpetradas pelos terroristas. Os canais all news, como a Globo News, BandNews e CNN Brasil, suspenderam suas programações de domingo e passaram a transmitir em tempo real, com reportagens e análises, o que ocorria na Capital Federal. Este não foi, contudo, o comportamento dos canais abertos, que por serem gratuitos, possuem uma audiência muito maior. Portanto, levar a informação sobre aquele fato inusitado, de interesse de todos os cidadãos brasileiros, mais do que cumprir com a missão social do Jornalismo, era fazer jus às concessões que tais grupos econômicos receberam da sociedade.

Às 17 horas, quando o quebra-quebra terrorista já se desenrolava há pelo menos umas duas horas. As redes sociais estavam plenas de vídeos de autoria dos próprios terroristas e das forças de segurança. Esse material foi usado por alguns meios de comunicação como forma de superar a impossibilidade de ter equipes no palco dos acontecimentos. Na telinha, a TV Bandeirantes exibia Mastechef, no SBT, o programa no ar era o da Eliana; e a Record difundia Hora do Faro. Mesmo a TV Globo, em seu canal aberto, demorou a priorizar esse conteúdo. Somente às 17h19 a emissora deixou de veicular o Domingão do Luciano Huck e decidiu transmitir simultaneamente o conteúdo de sua coirmã Globo News. Buscamos saber os motivos de tal comportamento editorial com os responsáveis sobre o comando dos departamentos de Jornalismo de cada uma dessas emissoras. Indagamos se foi uma opção editorial, compromissos publicitários ou dificuldades técnico-operacionais, mas reinou o silêncio como resposta. 

Canais públicos

As três casas de Poder invadida por terroristas são detentoras de canais próprios de rádio e TV: TV Brasil, TVs Senado e Câmara, TV Justiça. Não tivemos a oportunidade de avaliar a programação da TV Câmara, mas no Senado e na Justiça é como se nada estivesse acontecendo lá fora. Numa Irônica coincidência, a TV Senado exibia o programa Que Brasil é esse? Na tela, não era nenhuma reportagem ou análise dos fatos que se desenrolavam. No lugar de comentários dos parlamentares, ação que poderia ser enviada por celulares, era exibida uma entrevista com Fafá de Belém. A ironia involuntária também se fez presente na programação da TV Justiça: estava no ar uma entrevista com o Procurador Geral da República, Augusto Aras, no programa “Interesse Público”.

Apenas a TV Brasil, canal público da Empresa Brasileira de Comunicação – EBC, alterou o conteúdo pré-programado para o fim de semana. As alterações se deram por meio da inserção de flashes (boletins informativos). Não houve uma interrupção total, como o ocorrido na TV Globo. Entre 16 e 18 horas, a TV Brasil veiculava o filme Insônia. Mais uma ironia do destino.

Os canais públicos foram igualmente procurados. O departamento de Jornalismo da TV Brasil informou que está elaborando um relatório completo sobre a programação veiculada. Não explicou ainda a opção editorial adotada. A secretaria de Comunicação do Supremo Tribunal Federal não retornou nossos questionamentos sobre o comportamento editorial da TV Justiça. Já a diretora da secretaria de Comunicação do Senado, Érica Ceolin, informou que chegou a mobilizar equipes de jornalistas para cobrirem em tempo real o que ocorria no Senado Federal, mas que ao chegarem na sede do Senado, a polícia legislativa da Casa, por questões de segurança, não autorizou que os profissionais entrassem para pegar os equipamentos. Até mesmo o supervisor técnico de plantão teve que se retirar. O Senado possui um amplo sistema de câmeras, algumas delas câmaras-robô, instaladas nas salas de Comissões, e outras de segurança, internas e externas – inclusive uma no topo do Anexo 1 – que poderiam ser operadas à distância e ter suas imagens transmitidas. Entretanto, segundo Erica Ceolin, não foi possível, sequer adentrar as instalações da emissora que fica no subsolo do Anexo 2 e a opção foi informar a sociedade pelo site da Agência Senado de Notícias.

Questionamentos

Os canais de televisão são concessões públicas. O concessionário privado tem a obrigação de bem informar a sociedade. A não transmissão em tempo real dos acontecimentos terroristas na Esplanada dos Ministérios, obriga-nos ao questionamento semelhante ao que é feito sobre a ação das forças de segurança do governo do Distrito Federal. Houve incompetência ou foi conivência? Por que as emissoras detentoras de tecnologia de ponta, helicópteros, drones, antenas de micro-ondas, câmeras instaladas em motos, ignoraram o ocorrido, talvez o fato mais importante do país desde a redemocratização? A pandemia da Covid mostrou que até mesmo com celulares é possível prover uma cobertura dos fatos.

Para a coordenadora do sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF, Juliana Nunes, os episódios desse domingo evidenciaram a importância de fortalecer a comunicação pública e governamental, bem como legislativa e judiciária. “Tudo para que a população seja devidamente informada e o patrimônio público, protegido. A sociedade brasileira precisa ter a correta dimensão dos crimes cometidos neste domingo” – complementa.

A história nos mostra que em vários momentos politicamente importantes do Brasil, as emissoras de televisão em transmissão aberta pecaram. Maior exemplo foi a campanha das Diretas Já e a reedição dos debates presidenciais entre Collor de Melo e Luís Inácio Lula da Silva. Algumas emissoras fizeram o mea culpa. Esperamos que o comportamento editorial adotado por diversos canais no fim de semana de 8 de janeiro não seja uma retomada do mau jornalismo.

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Chico Sant’Anna é jornalista, documentarista, doutor em Ciências da Informação e Comunicação, pela Universidade de Rennes 1, na França e pesquisador associado ao Núcleo de Mídia e Política – Nemp, da Universidade de Brasília.