Quinta-feira, 6 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

As lições da guerra em Gaza para o jornalismo contemporâneo

(Foto: CHUTTERSNAP na Unsplash)

A esmagadora maioria dos jornalistas palestinos mortos na guerra em Gaza perdeu a vida ao exercer sua profissão no meio da população civil. Eles não foram identificados porque os drones, misseis e os jatos de combate de Israel não conseguiram, ou não quiseram, detectar os coletes usados por repórteres, fotógrafos e produtores palestinos com a inscrição PRESS (imprensa).

A convivência com as pessoas comuns e o uso intensivo de bombardeios à distância criaram o ambiente para uma letalidade recorde entre os jornalistas palestinos atuando em Gaza e na Cisjordânia. A combinação pode ser explicada pela coincidência de dois fatores:

  1. A crescente automação do armamento bélico ampliou enormemente a distância entre as forças envolvidas no conflito, o que aumentou a incidência de ações em que os combatentes não tem contato direto com  o oponente.
  2. A proibição israelense de ingresso de correspondentes estrangeiros nos territórios palestinos obrigou a grande imprensa internacional a recorrer a free lancers e fixers1 palestinos.

Nada menos que 274 jornalistas, 269 deles de nacionalidade palestina2, foram mortos pela Força de Defesa de Israel (Israel Defense Force- IDF) durante a ofensiva terrestre e ataques aéreos contra alvos palestinos na Faixa de Gaza. Nos dois anos de guerra morreram 3,5 vezes mais jornalistas do que em toda a guerra no Vietnam, que durou 20 anos e é considerada o maior conflito bélico da era moderna.

O brutal contraste na mortalidade de jornalistas entre as guerras do Vietnam e Gaza indica que a cobertura noticiosa de combates assumiu características diferenciadas na era digital. As regras estabelecendo que ataques e mortes de jornalistas durante combates são considerados crimes de guerra pela ONU3 foram simplesmente ignoradas pela própria grande imprensa ocidental.

Isto acabou colocando o jornalismo diante de uma nova realidade em matéria de cobertura de conflitos bélicos, o que obriga os profissionais e pesquisadores  a uma complexa reflexão sobre como produzir notícias em conflitos bélicos contemporâneos. Fatores como a necessidade de estar junto das pessoas, a falta de regras universais e as novas estratégias militares baseadas na automação e na guerra cognitiva4 criam condições para um aumento exponencial dos riscos a da complexidade informativa a que estão sujeitos repórteres, fotógrafos, cinegrafistas e equipes de apoio.

Apesar dos desmentidos formais do governo israelenses, depoimentos e investigações feitas por organizações e empresas jornalísticas ocidentais ficou claro que houve intencionalidade em muitos ataques da IDF que resultaram na morte de jornalistas árabes em Gaza. O bombardeio do hospital Nasser onde morreram cinco repórteres palestinos é considerado paradigmático.

O caso foi investigado pela rede de televisão norte-americana CNN que concluiu ter havido uma intenção deliberada de atingir jornalistas.  Um primeiro ataque aéreo contra o quarto andar do hospital Nasser, o único ainda em funcionamento pleno em Gaza, gerou mortes e uma grande confusão no atendimento às vítimas. Dez minutos depois, quando vários jornalistas correram para o local buscando informações, dois tanques israelenses dispararam contra o mesmo quarto andar matando cinco jornalistas palestinos contratados por empresas jornalísticas europeias, árabes e norte-americanas. Segundo a CNN, os repórteres e fotógrafos caíram numa armadilha ao desempenharem sua função de informar  enquanto a IDF alegava que havia “terroristas” entre os jornalistas. A rede de TV norte-americana salientou que não era segredo que os free lancers e fixers se concentravam no alto do hospital Nasser porque era o melhor acesso à internet, na hora de enviar notícias.

O antagonismo étnico e ideológico fez com que os soldados israelenses deixassem de distinguir jornalistas, guerrilheiros, influenciadores e pessoas comuns. Quem não vestisse uniforme eram visto como palestino e automaticamente tratado como terrorista inimigo.

Gastar sola de sapato

É uma situação nova e complexa porque, na era digital, o jornalismo tende a se identificar com os ambientes sociais onde atuam, por conta da necessidade de identificar demandas informativas do público bem como produzir narrativas adaptadas à cultura local. Isto faz com que o jornalista acabe se transformando em um membro da comunidade, o que pode complicar muito a sua situação pessoal quando irrompem conflitos violentos.

Esta mesma situação acontece em bairros da periferia de grandes cidades onde a população local está submetida ao controle do crime organizado.  O exercício do jornalismo nestas condições só é possível quando o profissional se mistura com as pessoas para obter informações que o ajudem a descrever o que está acontecendo com um mínimo de objetividade e credibilidade. Sem esta imersão, o repórter ou fotografo é facilmente envolvido pela narrativa das forças de segurança.

O jornalismo produzido dentro de redações perde terreno pelo trabalho feito diretamente na realidade. Pode-se dizer que é uma espécie de volta à velha metáfora “gastar sola de sapato”. Mas não se trata apenas de uma volta romântica ao passado. O engajamento nas comunidades é considerado a ferramenta mais eficaz para reduzir o efeito da desinformação gerada por quem é alheio à realidade local ou tem interesses antagônicos.

Esta nova realidade criada pela imersão do jornalista nas zonas de conflito cria uma situação que envolve diretamente também as empresas e organizações jornalísticas. Quem distribui ou publica informações sobre uma guerra ou rebelião passa a ter que assumir algum tipo de proteção a repórteres ou influenciadores digitais atuando em zonas de alto risco pessoal.  Não é um ato de generosidade e sim a defesa de indivíduos que garantem a viabilidade do negócio da notícia.

É uma responsabilidade tanto das comunidades beneficiadas como das empresas jornalísticas que contratam free lancers porque sem o fluxo de informações gerado por quem está no campo, elas perdem credibilidade, são superadas pela concorrência, além de ficarem vulneráveis à propaganda oficial. Quando há omissão na defesa e proteção do jornalismo em zonas de conflito, as empresas e organizações se tornam cúmplices da mortandade de profissionais como acontece em Gaza, sem falar no fato de que a ausência de notícias confiáveis provoca a desorientação das pessoas e aumenta o risco de elas serem empurradas para situações letais.

  1. Jargão jornalístico para um profissional de suporte à atividade de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. Não é necessariamente um jornalista profissional. ↩︎
  2. Dados da Comissão de direitos Humanos da ONU, mencionados pelo jornal britânico The Guardian ↩︎
  3. Mais detalhes em https://guide-humanitarian-law.org/content/article/3/journalists/  ↩︎
  4. A guerra cognitiva é uma estratégia militar que usa a propaganda e a desinformação para semear dúvidas, insegurança e desorientação no adversário visando dificulta-lo, ou impedi-lo, de tomar decisões adequadas aos seus objetivos. ↩︎

Publicado originalmente em objETHOS.

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Carlos Castilho é jornalista, doutor em Mídias do Conhecimento (UFSC) e pesquisador associado do objETHOS