Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Carlos Heitor Cony

MEMÓRIA / BILLY WILDER

"O cinema encantado de Billy Wilder", copyright Folha de S. Paulo, 12/04/02

"Não chega a ser saudosismo. Os mais atualizados de hoje, os que estão inseridos na modernidade e na cultura atual, daqui a alguns anos terão saudades do ?Big Brother?, do Ratinho, do funk e até mesmo do padre Marcelo Rossi. Coisas.

Em matéria de cinema, é natural que lamentemos o desaparecimento dos monstros sagrados, um deles morto no mês passado. Sobraram poucos: Bergman, Monicelli, Antonioni, Godard… que estão vivos, mas desativados. Como Thomas Mann, que viveu mais do que a sua obra, eles sobreviveram ao período da grande criação e, se conseguem rodar um novo filme, é por conta do hábito e, talvez, da necessidade de assinarem o ponto no cartão da vida.

Sendo assim, o último da série foi Billy Wilder, monstro realmente sagrado, que pediu o boné aos 95 anos, mas deixou uma obra imensa e intensa, cheia de himalaias que ficarão como pontos altos do cinema no século 20.

Ele superou pouco a pouco a categoria que os críticos lhe destinaram, a de excelente diretor profissional, e invadiu luminosamente o sombrio território do gênio. O nazismo, que tanto mal fez à humanidade, pelo menos trouxe um benefício isolado ao cinema americano, com a leva de artistas que emigraram e, ao contato com a fábrica lubrificada de um país industrializado, conseguiram produzir muito e bem.

Nascido na Áustria, com sólida formação humanista e técnica, Billy Wilder foi em muitos sentidos o cineasta completo, dominando os diversos gêneros, da comédia ao drama, da denúncia ao lirismo. Não se destacou logo porque sua obra não gritava, não tinha apelos demagógicos que entusiasmassem os críticos e o público. Era uma produção segura, honesta, perfeita em seus elementos dramáticos ou cômicos, mas gradualmente fomos percebendo que, por trás daquela continuidade de títulos, havia um gênio poderoso que escrevia alguns dos melhores momentos do cinema mundial.

Quem viu ??O Encouraçado Potemkin?, ??Cidadão Kane?, ??Tempos Modernos?, ??Oito e Meio?, ??Ladrões de Bicicleta?, ??O Anjo Exterminador?, ??Aurora?, ??O Gabinete do Dr. Caligari?, ??Metrópolis?, ??Paixão dos Fortes? e outros poucos, certamente ficou de joelhos, diante de uma obra instantaneamente prima.

Com Billy Wilder o processo foi diferente. Ele fez não uma obra-prima isoladamente, mas um conjunto que se tornou obra-prima. Antes de mais nada, tinha um estilo inconfundível, que aparentemente pertencia ao melhor cinema americano, mas somente aos poucos, na terceira ou quarta visão, percebia-se o talhe do grande cinema europeu. Pode até parecer um paradoxo que ??Quanto Mais Quente Melhor?, a melhor comédia do cinema americano (assim considerada por todos, menos por mim), tenha sido feita por um vienense.

Um drama açucarado, esplendidamente contado, como ??Sabrina?, só depois de certo tempo revela os macetes que o transformam de brilhante comédia romântica em filme realmente maior.

Não vou citar a extensa filmografia de Wilder, mas qualquer de seus filmes, mesmo os mais comuns, de repente explodem num ponto luminoso que tem a sua assinatura. Humor? Conhecimento da natureza humana? Domínio absoluto da narrativa? Acho que tudo isso junto e muito mais.

Destacaria dois pontos altos de sua obra, um merecidamente reconhecido, cuja ascensão na história do cinema já o coloca no mesmo pódio onde está ??Cidadão Kane?. O outro é uma comédia.

O primeiro é ??Crepúsculo dos Deuses?, que cresce com o tempo, pois antes de mais nada é uma obra sobre o tempo. Até certo ponto, é um ??Cantando na Chuva? às avessas, indo do presente para o passado, em forma não de comédia, mas de drama, ou mesmo de tragédia. O cadáver do roteirista medíocre boiando na piscina de Norma Desmond (??eu queria ter a minha piscina, eu a consegui, mas de forma diferente) é o DNA da máquina infernal em que se transformou o próprio cinema.

O trio Gloria Swanson-Willie Holden-Eric von Stroheim, naquela mansão sinistra do Sunset Boulevard, vive um drama que pode ser o de todos nós, que somos superados pelo tempo. Ao contrário de Kane, que era único, só ele, a decadência de Norma é a decadência de todos nós.

O outro filme que destaco em sua obra é ??Avanti… Amantes à Italiana?, um filme meio esquecido, em que ressurge a mesma dupla Wilder e I.A.L. Diamond no roteiro, com aquelas tiradas que somente eles podiam inventar.

Exemplo: o gerente do hotel se aconselha com o chefão da CIA. Recebeu dois convites, um para ser gerente no Sheraton de Damasco, quer saber como andam as coisas no Oriente Médio. O alto funcionário americano diz que Israel está se armando, que a União Soviética está despejando armamentos na região, que os árabes expulsarão os judeus ou os judeus exterminarão os árabes. Pede que esqueça a oferta do Sheraton.

O gerente então diz que tem outra oferta, a do Sheraton de Nova York. O homem da CIA abaixa a cabeça, olha para os lados e responde baixinho para não ser ouvido por ninguém: ?Vá para Damasco!?."

 

MEMÓRIA / HENFIL

"O filho e o cartunista", copyright O Povo in Boletim Imprensa Ética, 09/04/02

"Separados geograficamente, Henfil e Ivan encontravam-se pouco. O pai culpava-se pela ausência e tentava compensar com freqüentes e carinhosos recadinhos. Em entrevista, por telefone, o filho fala do trabalho do pai, do relançamento das tirinhas, da afinidade com o traço e das dificuldades de ser o filho do Henfil

No Pasquim, Henfil criou o Cemitério dos Mortos-Vivos onde eram enterrados aqueles que o cartunista julgava colaborar com a miserável realidade brasileira – fazendo alguma coisa ou, simplesmente, não fazendo nada. Era uma espécie de tribunal da causa justa, onde Henfil colocava a nu falhas de caráter, oportunismos de toda ordem e desvios ideológicos.

A lista de enterrados era extensa e eclética: o cantor Wilson Simonal, a cantora Elis Regina, o dramaturgo Nelson Rodrigues, o sociólogo Gilberto Freyre, os apresentadores de TV Flávio Cavalcanti, Hebe Camargo e J. Silvestre, os técnicos de futebol Zagalo, Flávio Costa e Yustrich, o jogador Pelé, as escritoras Rachel de Queiroz e Clarice Lispector… O túmulo do empresário Sílvio Santos constava do ?plano de expansão? do cemitério.

O cartunista arrependeu-se de alguns excessos, como no caso de Clarice Lispector e Elis Regina, mas se orgulhava de algumas boas lições que tinha dado com o cemitério.

O fato é que Henrique da Souza Filho também foi enterrado ?por falta grave na educação do filho?.

Segundo o escritor Dênis de Moraes, Henfil foi um pai distante, mas muito carinhoso com o filho. Como na maior parte do tempo estavam geograficamente separados, Henfil costumava enviar exemplares de revistas para Ivan com dedicatórias bem bonitas e humoradas: ?Filho Ivan, às vezes seu pai Henrique Filho se fantasia de Henfil só pras pessoas gostarem dele muito… (como ele gosta de você)?; ?Para o meu filho, Ivan, o trabalho do teu pai que espera só o filho crescer para ficar à toa na vida, enquanto o filho trabalha e compra tudo prele. Entendeu? Quem tem filho tem futuro bem vagabundo. Um beijo, Henrique?.

Hoje, aos 32 anos, Ivan Constanza de Souza trabalha com a preservação e a divulgação do acervo do pai. Também desenha, mas acabou deixando essa carreira de lado.

As lembranças do convívio irregular guarda consigo. ?Era uma relação profunda?, define. E o Ivan, que morou dos 15 aos 18 anos em Fortaleza, diz muito mais nesta entrevista por telefone.

O POVO – A idéia de relançar as tirinhas do teu pai surgiu depois do Pasquim?

Ivan Consenza de Souza – Na verdade a idéia já existia há algum tempo. Eu estava primeiro dando uma organizada na obra e isso acabou demorando um pouco. Tenho sentido que as pessoas estão preocupadas com a atualidade do material. Mas são tirinhas que atingem tão profundamente as causas sociais que não se perderam. A maioria das charges e tirinhas tratam da pobreza, da fome, do desemprego, da crise econômica. Ele tratava as causas dos problemas e essas são as mesmas. As pessoas envolvidas é que são diferentes.

OP – Você tem 15 mil originais do teu pai. Você fez algum trabalho de pesquisa pra reunir esse material?

ICS – Eu tenho mais de 15 mil originais. Esses são os que ele guardou. Ele costumava guardar, não entregava original a nenhum jornal, revista. Mas ainda tem muita coisa faltando. Essa parte de pesquisa eu quero fazer um pouquinho mais pra frente porque sei que ainda vou recolher muito material. Vou tentar conseguir doação de pessoas que tenham guardado. Ainda falta muita coisa. A obra não está catalogada. É um trabalho bem demorado de pesquisa, de campanha, de divulgação da obra dele que começa nesta republicação da obra. Acho que esse é um grande passo.

OP – Você tem uma preocupação grande em não deixar a obra do teu pai cair no esquecimento. Monta estande em feiras, promoveu o Circuito Henfil Universitário. O que você está fazendo atualmente e o que te motiva?

ICS – Faço exposições, tenho feito uma mostra em um evento cultural que tem no Jóquei Clube aqui no Rio, comecei a produzir uma série de materiais. As pessoas sempre pediam mas eu acabava não fazendo porque não tinha onde distribuir esse material. A partir desta exposição lá no Jóquei, que é quinzenal, eu passei a ter uma razão disso e acabei investindo, introduzindo outros materiais em cima da obra dele. Isso virou meio que ponto de referência aqui no Rio.

OP – E como é que está sendo a seleção das tirinhas que vão ser relançadas? Quais são elas?

ICS – São as tirinhas da Graúna, do Zeferino, em preto e branco. No domingo, são os fradinhos em tirinhas coloridas. E é até mais infantil. Normalmente são voltadas para um público infantil.

OP – Os fradinhos infantis?

ICS – É. Tem muito de humor sarcástico que hoje em dia parece molecagem, só. Porque as brincadeiras que ele fazia eram pra romper um preconceito muito forte que existia há 30 anos e hoje não existe mais.

OP – Chocando o certo pudor católico…

ICS – É o pudor. Os quadrinhos, os desenhos pra crianças hoje deixam esse humor negro dos fradinhos no chinelo.

OP – Até porque parece que ser politicamente incorreto hoje é bem aceito.

ICS – Hoje é mais comum. São muitos desenhos violentos e já não chocam mais. Antes, era uma coisa que acontecia mas não era comum a imprensa divulgar. E ele através das charges expressava as coisas que estavam acontecendo. Agora, a realidade do mundo pode ser passada. A imprensa tem liberdade de passar o que está acontecendo.

OP – Uma das grandes bandeiras do teu pai era a liberdade de expressão. Você citou aí que hoje a imprensa pode passar a realidade. Ela tem cumprido bem essa função? Era por esse tipo de liberdade que teu pai lutava?

ICS – A imprensa agora tem espaço pra divulgar as coisas que aconteceram e a censura é muito mais interna, de cada jornal. E muito também por parte do próprio público. Ele acaba ditando o que aceita e o que não aceita. Vira uma censura comercial.

OP – Além de divulgar o trabalho do Henfil e cuidar do acervo, você trabalha com o quê?

ICS – Eu estava fazendo uma parte de desenho também. Estava começando. Mas atualmente eu estou dedicado mesmo ao trabalho do meu pai. Preservação e divulgação dos originais, dos desenhos, dos livros… Divulgando em revista, organizando exposições, eventos… Tentando republicar as tirinhas no jornal.

OP – O teu desenho lembra em alguma coisa o do teu pai, tem temática política?

ICS – Muita gente fala que tem um pouco das coisas parecidas com as dele. Porque era minha grande referência. Não tem como fugir. Minha grande referência de desenho sempre foi ele. E o desenho dele é bem complicado de fazer parecido. Um trabalho bem peculiar, difícil de imitar.

OP – Além do traço sintético, acho que o que marca fortemente a obra do teu pai é a indignação.

ICS – É. Eu via muito isso. O interessante é que quando eu comecei a fazer, foi na época que eu morei aí em Fortaleza, fazia charge voltada para esse tipo de humor político, em cima de notícias que saíam em jornal e que tinham muito do trabalho que ele fez no início de carreira. E pra não dizer que eu puxei o trabalho dele, era o início da carreira que eu nem conhecia. Foi um trabalho que ele fez no início dos anos 60 pra uma revista…

OP – A Alterosa?

ICS – Isso. Antes da criação dos Fradim. Eu comecei a fazer igualzinho, não o desenho, mas a estrutura da charge, a maneira de passar a mensagem. Depois eu tive contato com as primeiras charges, depois da morte dele. Me deu aquele negócio. Foi aí que eu resolvi começar a fazer.

OP – Os teus desenhos circulavam entre colegas de colégio. Como era que funcionava?

ICS – Não. Eu ficava muito fechado, guardava muito pra mim. Mostrava para alguns amigos mais próximos mas… Tinha esse negócio da comparação muito forte com o trabalho dele e eu achava tudo o que eu fazia ruim.

OP – É difícil carregar essa herança?

ICS – É. Mas aí eu comecei a ver o início do trabalho dele, vi que os traços não eram tão bem definidos como eram agora. Vi que não adiantava eu comparar o início do meu trabalho com o trabalho já estruturado, de anos e anos de trabalho, já estabelecido.

OP – O Dênis de Moraes cita no livro que o teu pai era um tanto ausente embora fosse um bom companheiro nos momentos de encontro. Era isso mesmo?

ICS – Nós tínhamos uma relação muito profunda mas por conta do trabalho dele, na maior parte da minha vida moramos em estados diferentes, era muito complicado. Acho que quando a gente estava junto curtia muito um ao outro, tinha uma relação muito bacana mas tinha essa correria da vida dele de estar cada hora em um lugar.

OP – Teu pai era uma pessoa extremamente solidária, participava ativamente dos acontecimentos políticos, cobrava essa participação dos outros. Você é engajado em algum movimento social?

ICS – A maioria das charges que eu não tenho é material que ele fazia para campanhas políticas e sociais, pro movimento estudantil, sindicatos. Ele considerava que era a militância política e a contribuição social dele. Tenho coisas que ele fez pra LBA, pra campanha de doação de sangue, em defesa da cultura indígena, programa de desarmamento, um monte de coisas que ele levantava há 20, 30 anos e que são temas super atuais.

OP – Você é engajado em algum movimento social ou político?

ICS – A minha contribuição está em oferecer os desenhos, desenhar, eu já fiz shows aqui no Rio em homenagem a ele, chamei o pessoal do Gapa, fiz um livrinho na campanha contra a fome. Sempre que eu posso estou tentando ajudar. Pessoas que pedem desenho pra utilizar, campanhas que eu vejo e vou lá ofereço algum desenho. Colaboro cedendo isso. É a minha maneira de ajudar.

OP – Quando você lembra do seu pai o que é mais marcante?

ICS – Ele me falou uma vez da importância de no trabalho não se ater a uma coisa só. Foi em uma época em que a minha mãe estava passando por alguns problemas, a sociedade que ela tinha se desfez, e ela só tinha experiência em uma área. E ele falava: toda a minha vida eu procurei fazer muitas coisas. Trabalho em jornal, revista, televisão, escrevo livros, escrevo crônicas… Por exemplo, agora, eu estou desempregado e empregado ao mesmo tempo. Porque foi numa época em que ele tinha acabado de sair da Globo e da revista Isto É. Mas continuava em dois jornais, estava escrevendo um livro… Então é uma coisa que sempre me estimulou a fazer muitas coisas.

OP – Mas me parece que não era só estratégia do teu pai ter vários empregos. Na verdade, ele era um inquieto, produzia a toda hora e tinha que expor isso. Ter vários trabalhos era conseqüência…

ICS – Ele gostava de estar fazendo sempre, de estar produzindo, fazendo pra vários lugares, passando as mensagens que queria passar. Tem uma coisa que lembro muito dele é que durante uma época na vida que ele acordava bem cedo para ler os jornais começava a fazer as tirinhas diárias e depois do almoço, de meia em meia hora, tinha gente chegando para levar trabalho. Isso ia até oito horas da noite. Ele fazia uns vinte trabalhos por dia. Era uma produção muito grande.

OP – Tanto que você está aí com mais de 15 mil originais pra cuidar.

ICS – E eu acredito que existem mais de 20 mil. Porque esse trabalho pra sindicatos, campanhas, ele não guardava original. Ele chegava a recusar trabalho em jornal e revista porque as pessoas exigiam que ele entregasse o original. E ao mesmo tempo nos trabalhos políticos ele não tinha esse apego. Ele via como duas coisas muito diferentes. Nesses casos, ele se recusava a fazer quando as pessoas insistiam em pagar.

OP – Qual o teu personagem preferido?

ICS – Os fradinhos e a Graúna."