Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Faltou combinar com os bandidos

MÍDIA & PAZ É +

Nelson Hoineff (*)

Não fui à passeata "Paz é +" (Rio, domingo, 12/5), mas li sobre ela nos jornais de segunda-feira. Pelos jornais, soube por exemplo que a socialite Gloria Severiano Ribeiro estava lá, firme, comandando a marcha. Li também que muitas janelas nas fachadas das avenidas Vieira Souto (Ipanema) e Delfim Moreira (Leblon) estenderam toalhas e lençóis brancos em apoio explícito à causa da paz. Li ainda que na passeata estavam a cantora Joanna (entoando com emoção o Hino Nacional), além de Xuxa, do ministro Francisco Dornelles, da ex-primeira-dama Rosinha Mateus e da governadora Benedita da Silva, de braços dados com seu marido Antonio Pitanga e o deputado estadual Carlos Minc.

O que me chamou atenção é que nunca ouvi falar que Gloria Severiano Ribeiro, ou Xuxa, Carlos Minc, Pitanga, Rosinha ou Benedita da Silva costumassem, no passado, sair por aí assaltando pessoas, de 38 em punho. Tampouco li nada sobre isso nos jornais. Pelo que sei, são todos eles personalidades pacíficas ? e como tal carecem da necessidade de reafirmar seus compromissos com a não-violência. Tal compromisso, pelo que entendo, deve ser estimulado é nos agentes da violência. E, no entanto, não vi nas reportagens menção à presença no "Paz é +" das centenas de bandidos que poucas horas antes promoveram um arrastão no Túnel Rebouças; nem dos que fecharam duas vezes na mesma semana o Túnel do Joá, assaltando sem muito pacifismo todos os motoristas presos na armadilha. Tampouco vi nas fotos da manifestação na ensolarada orla carioca os jovens da classe média que também no sábado roubaram um táxi na Tijuca e levaram o pânico a quem passava pela rua Marquês de Valença; muito menos os assaltantes que, uma hora e meia antes do "Paz é +", assaltaram o Shopping Sampaio, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, distribuíram tiros a esmo e mataram um policial.

Orientar a mídia pela serenidade e não pelo embrutecimento fascistóide é uma coisa: pretender ingenuizá-la é outra. A mídia não se divide entre os Afanázios que querem sair justiçando todo mundo e os que passam a mão na cabeça dos bandidos, pretendendo provar que os Fernandinhos Beira-Mar são pobres vítimas indefesas da sociedade. A truculência da mídia sensacionalista, que serviliza-se à polícia e ao poder, não é muito pior do que a omissão da mídia que vê o inusitado e não responde, que trata o grotesco da violência urbana no Rio e em São Paulo como se isso fosse absolutamente normal em qualquer lugar do mundo.

Há o lado da razão, que qualquer tipo de manifestação, por mais banal que seja, consegue milagrosamente entorpecer. Movimentos pela paz onde os protagonistas são as vítimas exalam um forte odor de hipocrisia e, o que talvez seja pior, de completa resignação da sociedade ao seu triste destino. Caminhar vestido de branco não é o que de mais útil deputados, governadores e primeiras-damas podem fazer, seja lá de que governo forem, para reduzir índices de violência que, no Rio de Janeiro, superam o de países conflagrados no Oriente Médio. E ao destacar o oba-oba de manifestações patéticas das vítimas onde os seus agressores sequer são lembrados, o que a mídia está fazendo na verdade é legitimar esses movimentos como úteis à redução da violência e estimular a manutenção das coisas como elas estão.

"Um sucesso"

Há exatos dois anos, assaltantes seqüestram o ônibus da linha 174 e, depois de um grande show midiático, provocam a morte da professora Geisa Firmo Gonçalves, com transmissão ao vivo e em cores. Em represália, a população marchou de branco, do Arpoador ao Leblon, na manifestação "Luto Pela Paz". Um ano depois, a fonoaudióloga Márcia Coelho foi brutalmente estuprada e morta em Santa Tereza. Os moradores também vestiram-se de branco e fizeram uma passeata pelo bairro.

A cena se repete, com macabra monotonia, a cada ano. E não é muito mais do que isso o que a população pode fazer. É a mídia, esta sim, que tem a possibilidade e a obrigação de dizer que não é mais possível conviver com esse estado de coisas. Que não é correto ficar indiferente em cidades onde, ao sair de casa, o cidadão tem enormes chances de não voltar sem ser assaltado, seqüestrado ou simplesmente morto, enquanto as estatísticas sobre violência são grotescamente camufladas por governantes em campanhas eleitorais.

O Jornal do Brasil diz que "o primeiro grande ato público do movimento ?Paz é +? foi um sucesso" e O Globo garante que "da socialite ao operário, [estavam] todos pela paz". Lembro do velho axioma de Vicente Feola explicando a Garrincha o esquema tático do time para o jogo contra a seleção soviética, na Copa de 58. Garrincha ouviu tudo calado e depois perguntou ao técnico: "Mas o senhor já explicou isso aos russos?"

E então me pergunto se a midia já explicou o sucesso da passeata também aos que promovem ou estimulam a violência.

(*) Jornalista, escritor e produtor de TV