ECOS DO VIETNAM
Luiz Egypto
Bao Chi, Bao Chi, de Luís Edgar de Andrade, 284 pp., Editora Objetiva, Rio, 2002, R$ 29,90
"Bao chi, bao chi" quer dizer "somos jornalistas, somos jornalistas". Era a expressão, ou o grito, que os correspondentes de guerra no Vietnam usavam para se identificar em situações de perigo iminente, confiando numa pretensa imunidade frente a vietcongs ou tropas regulares sul-vietnamitas . Às vezes dava certo, outras não. Deu certo para Luís Edgar de Andrade, que sobreviveu às aflições da guerra e tomou dessa espécie de salvo-conduto verbal o título de seu romance de estréia, Bao Chi, Bao Chi.
Repórter de longo curso, ex-correspondente em Paris no início dos anos 60, Luís Edgar decidiu ir para o Vietnam no começo de 1968, logo após ser demitido do Jornal do Brasil, onde chefiava a editoria Internacional. Seus despachos de guerra foram publicados nas revistas Manchete e Fatos & Fotos, e nos diários Correio da Manhã (Rio) e Folha da Tarde (São Paulo) ? todos já desaparecidos.
O vírus do romance inoculou-se no repórter, que hoje supervisiona os programas jornalísticos da TVE?Rede Brasil, no Rio. Diz Luís Edgar: "Não posso pensar na aposentadoria propriamente dita (quer dizer, parar de trabalhar) porque tenho três filhas para acabar de criar. Mas gostaria de me dedicar doravante (é a primeira vez que uso essa palavra) à literatura". Pela qualidade do primeiro romance, a literatura saberá agradecer.
Eis sua entrevista ao Observatório da Imprensa.
Como e por que decidiu cobrir a guerra do Vietnam?
Luís Edgar de Andrade ? Quando voltei para o Brasil, em 1965, chamado por Alberto Dines, a fim de chefiar a Editoria Internacional do Jornal do Brasil, o jornal dedicava uma página por dia à Guerra do Vietnam. Foi nesse tempo que a atriz Dina Sfat disse aquela frase inesquecível: "A Guerra do Vietnam invade, dia a dia, as nossas vidas". É um resumo dos anos 60 para a minha geração. Mas, em dezembro de 1967, o então vice-presidente do Jornal do Brasil, Manoel Francisco do Nascimento Brito, passou uma semana em Saigon a convite dos americanos. Na volta deu uma entrevista em Nova York, dizendo: "Os Estados Unidos ganharam a Guerra do Vietnam". Azar dele porque a ofensiva do Tet começou em seguida. Ao ser demitido do JB, a 31 de dezembro, comprei uma passagem Rio-Saigon, a prestação, na Air France. Luiz Carlos Barreto foi meu avalista. Grande Barreto! Não lhe passou pela cabeça o risco do prejuízo. Eu poderia ter voltado para casa num saco de gelo como os 56 mil americanos mortos em combate no Vietnam.
Quanto tempo trabalhou na Ásia como correspondente?
L.E.A. ? Parti do Rio às pressas, em fevereiro de 1968, por causa dessa ofensiva. Para humilhação dos Estados Unidos, os vietcongs tinham entrado na embaixada americana em Saigon e atacado ao mesmo tempo todas as capitais de província no Vietnam do Sul. Fiquei um mês em Bangkok, na Tailândia, tentando o visto, enquanto a luta corpo a corpo continuava em Saigon. Ao descobrir que o governo sul-vietnamita não me daria o visto, desembarquei como turista em trânsito, com direito a 72 horas de permanência. Acabei ficando seis meses, ao cabo dos quais fui tentar, no Laos e no Camboja, o visto do Vietnam do Norte. Inútil porque quem ia a um dos Vietnans não entrava no outro. Minhas matérias foram publicadas em Manchete, Fatos & Fotos, Correio da Manhã e na Folha da Tarde, a edição vespertina da Folha de S. Paulo. Quando voltei para o Rio, em meados de novembro, os amigos não me reconheceram. Estava barbudo como um rabino.
Por que deixou a barba crescer no Vietnam?
L.E.A. ? Os correspondentes de guerra, credenciados junto às Forças Armadas dos Estados Unidos, eram obrigados a usar farda e capacete na zona de operações. Como os soldados fazem a barba todo dia, deixei a minha crescer, supondo que seria uma proteção. Imaginava que os vietcongs, ao verem aquele barbudo de uniforme, pensassem que se tratava do capelão militar ou, quem sabe, um jornalista recém-chegado. Pena que eu fosse o único correspondente de barba. Ninguém tinha barba naquele tempo. Refiro-me aos civis. Os militares, no Vietnam, talvez por essa razão, sempre me olharam com desconfiança, de cima para baixo. Coitado! Além de sul-americano, barbado.
Como surgiu a idéia de escrever Bao Chi, Bao Chi?
L.E.A. ? Fiquei amigo, em Saigon, do português José da Câmara Leme, que escrevia para um jornal de Lisboa. José não era jornalista mas escritor. Tinha feito a Guerra da Argélia como soldado da Legião Estrangeira. Voltou condecorado pela França com a Croix de Guerre. O resultado foi o romance Chegar já é em si bastante. Quando ele entrava, desengonçado, no bar do Hotel Continental, em Saigon, para tomar no fim do dia sua garrafa de cerveja San Miguel, os colegas americanos sussurravam com inveja nas outras mesas: "Olha o português que veio ao Vietnam para escrever um romance". Pobre José. De volta a Lisboa, só teve tempo de reunir os artigos no livro Repórter no Vietname. Sua foto, na orelha da capa, é de minha autoria. Ao saber que morreu, num desastre de carro, em Portugal, senti-me na obrigação de escrever o romance dele.
Seu texto tem sabor de reportagem, pitadas de crônica e um final surpreendente. Por que optou pelo romance ao invés de escrever suas memórias de correspondente?
L.E.A. ? O escritor Michael Herr, que estava conosco em Saigon, disse que o jornalismo convencional não foi capaz de cobrir a Guerra do Vietnam, da mesma forma que as armas convencionais eram incapazes de vencê-la. Michael Herr deu à guerra um tratamento literário ? literário demais para o meu gosto ? no seu elogiadíssimo Dispatches. Quando houve a paz, em 1974, o correspondente inglês Gavin Young teve um pensamento que me ficou no inconsciente: "A Guerra do Vietnam espera por seu romancista". Na minha volta a Saigon, 30 anos depois, vi meninos descalços vendendo O Americano Tranqüilo, de Graham Greene, a um dólar em edição pirata. É a glória. Se um dia, daqui a dez anos, traduzido em inglês, Bao Chi, Bao Chi for oferecido aos turistas americanos, na calçada do Hotel Continental, em edição pirata, juro que direi, vivo ou enterrado, o que o coronel Luan exclamou no capítulo XIII: "Amigos, agora sou imortal".
O livro é detalhista quando descreve ambientes, cidades, bairros e ruas. Parece que, ao escrevê-lo, você consultava, de vez em quando, o velho bloco de anotações.
L.E.A. ? Quando comecei a escrever Bao Chi, Bao Chi, Carlos Heitor Cony e eu trabalhávamos no mesmo prédio ? eu no quarto andar, ele no décimo. Mostrei-lhe os primeiros capítulos, ainda datilografados. O Cony, um dia, me gozou porque eu estava na dúvida se o altar de São Roque fica à direita ou à esquerda de quem entra na catedral de Saigon. Parece mentira, mas acabei voltando ao Vietnam, com minha mulher, para esclarecer essa e outras questões como o gosto do molho nuoc-man usado na cozinha vietnamita. Mesmo com outro nome ? agora se chama Ho Chi Minh ? Saigon ainda cheira a nuoc-man. Mas há odores, me desculpe, impossíveis de reconstituir. Por exemplo, aquele cheiro adocicado de cadáveres apodrecendo, quando o vento de Cholon chegava, no fim da tarde, à janela do meu quarto no Hotel Majestic, à rua Tu Do.
Em que medida a obsessão pelo factual e a narração em terceira pessoa, típicas do repórter, inspiram ou incomodam o romancista?
L.E.A. ? A primeira dificuldade, ao iniciar Bao Chi, Bao Chi, foi abdicar do estilo jornalístico. Não há nada mais diferente de uma reportagem do que um romance. Mas como distinguir? Nesse ponto o Cony me ajudou. Houve um capítulo, no início, o do José Hamilton Rodrigues, que me obrigou a reescrever cinco vezes: "Ainda não está bom. Isso é reportagem". Cheguei a ter aulas, durante um ano, com o Esdras do Nascimento, na Estação das Letras, para absorver a técnica de romance. Quanto à narração na terceira pessoa, é outra coisa. Bao Chi, Bao Chi começou a ser escrito na primeira pessoa: eu, eu, eu. Mudei para a terceira a fim de desvincular, com mais facilidade, o romancista Luís Edgar de Andrade do seu protagonista.
O que o jornalista Miguel Joaquim de Arruda, de Bao Chi, Bao Chi, tem a ver com o jornalista Luís Edgar de Andrade?
L.E.A. ? O jornalista Luís Edgar de Andrade trabalha na TV Educativa do Rio de Janeiro e escreve artigos, sempre que pode, no Observatório da Imprensa. No resto do tempo é outra pessoa: um romancista. Miguel Joaquim de Arruda e Luís Edgar de Andrade, todos os dois nasceram no Ceará. Ambos arriscaram a vida no Vietnam, mas um nada tem a ver com o outro. Os heróis de romance, como resumiu o autor francês François Mauriac, nascem das núpcias que o romancista contrai com a realidade.
O nome de alguns personagens desse romance deixam pistas sobre seus inspiradores na vida real. Exemplo: José Airton Rodrigues por José Hamilton Ribeiro. Por que só o Peter Arnett e a Oriana Fallaci aparecem como Peter Arnett e Oriana Fallaci?
L.E.A. ? Peter Arnett não é personagem. Está citado, nos diálogos, duas ou três vezes, da mesma forma que o general Westmoreland, o general De Gaulle ou o presidente Johnson. Quanto a minha amiga Oriana Fallaci, ela se chamava Ornela Visconti até a terceira revisão de Bao Chi, Bao Chi. Tornou-se Oriana Fallaci, há menos de um mês, quando ressurgiu dos mortos ? pelo menos para mim. Quatro ou cinco anos atrás, eu soube em Roma que estava doente, muito doente, com um câncer, em estado terminal. Sem notícias dela, meti na cabeça que tinha morrido. Mas Oriana é uma força da natureza como o trovão e as inundações. De repente, em meados de abril, vi nos jornais italianos, pela internet, a polêmica em torno de um artigo que escreveu sobre a questão palestina. Fiquei tão feliz que pedi à Sônia Peçanha, revisora-chefe da Objetiva, para pôr Oriana onde estivesse Ornela. Resta o José Hamilton, a quem peço desculpas pelo clone José Airton. Foram 11 páginas, nas quais, sem exagero, trabalhei três meses.
Você começou a escrever Bao Chi, Bao Chi numa máquina Olivetti…
L.E.A. ? …mas, pouco depois, uma de minhas cunhadas, a Lourdes, psicanalista, deu um computador às sobrinhas. Faz sete anos. O bicho ficou na sala como um visitante que se esqueceu de ir embora. Eu olhava de longe, com medo de me aproximar. Até que, um dia, o Espírito Santo baixou em mim e aprendi o word sozinho. Escrever, escrever e reescrever… Confesso que, se tivesse de dedicar meu romance a alguém em especial, poria na página 5: "Aos inventores do computador, sem o qual eu não teria sido capaz de terminar este livro".