Monday, 14 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Mauro Dias

O IMPÉRIO DO GROTESCO

"A sedução permanente do grotesco", copyright O Estado de S. Paulo, 19/5/02

"O grotesco tem lugar assegurado na história e é recorrente na vida, nas artes e na mídia contemporânea, de acordo com o livro O Império do Grotesco (Mauad, 156 págs., R$ 26,00), dos professores Muniz Sodré e Raquel Paiva, ambos da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadores do CNPq. Tem lugar assegurado porque é possível rir do ?terrível? e das ?proporções escandalosas das formas, transformando-as em veículos de irrisão e de provocação aos cânones do esteticamente correto.?

Sim, diz Muniz Sodré, todo juízo de gosto é voltado para o sublime, para o homem da cintura para cima, o olhar para o céu. ?Mas há a estética da cintura para baixo, também, a estética do carnaval, dos jogos populares, do circo, da feira? – de tudo o que se refere à terra, aos dejetos fisiológicos, aos animais. ?É o que se chama de mau gosto e não foi entronizado pela academia?, diz. Afinal, a academia, as escolas de arte dão pouca atenção para isso porque seu público, a burguesia, não gosta disso.?

Chave teórica – O que Muniz Sodré e Raquel Paiva pretendem é, diz ele, categorizar o grotesco na história da estética no Ocidente. Muniz acredita ter encontrado uma chave teórica nova para entendê-lo: ?A sociedade ocidental evolui afastando-se do animal – não faz sexo na beira da estrada, não come com as mãos, não arrota ou expele gases à mesa. Essas atitudes pertencem ao grotesco e reaproximam o homem do animal.?

Mais: ?O grotesco é a distorção, o escândalo da forma que produz uma risada, mesmo que uma risada nervosa e crítica. Com o passar do tempo, a palavra foi expandindo seu sentido, passando a indicar o estranho, o esquisito. Machado de Assis, creio que em Quincas Borba, vê como grotesca a curva exagerada da barriga da mulher grávida; a graça de Nelson Rodrigues está no grotesco e Dalton Trevisan, que é o maior contista brasileiro, é por inteiro grotesco, como foi Lima Barreto.?

Muniz Sodré acredita que exista uma tradição do grotesco, no Brasil, que se anuncia no cinema, na literatura, nas diversas formas de expressão – os Fradinhos, do cartunista Henfil, eram grotescos, como os generais desenhados por Jaguar, nos anos do regime militar, que não podiam ser censurados, porque não representavam ninguém em particular, nem a farda era a do Exército brasileiro, mas que dispensavam legendas, com suas condecorações exageradas e fisionomias decadentes.

?Só que essa tradição é malvista pela crítica, que vem das escolas de letras, onde não se fala a não ser do sublime?, diz o professor. ?Tanto que não existe, no Brasil, um livro sobre o grotesco? – ou, considerando melhor, não existem muitos livros sobre o grotesco em parte nenhuma. Ainda que o próprio Muniz Sodré tenha publicado, em 1972, o livro A Comunicação do Grotesco, que falava especificamente da mídia. Mas o livro foi considerado – e o autor concorda – sociologicamente pouco acadêmico. ?Foi chamado de ensaio sociologicamente fraco, e era: seu enfoque era jornalístico e ensaístico, mesmo que tenha sido adotado pela Escola Superior de Guerra?, lembra.

Há muito ele queria retomar o tema, de forma mais aprofundada. Foi Raquel Paiva quem lhe injetou o ânimo necessário. Juntos, querem mostrar que a idéia de estética não está só na arte, mas também no comportamento. É grotesca a festa da socialite para seu cachorrrinho, é grotesca a pose de Fernando Henrique Cardoso inaugurando um monumento de colunas ?quase gregas? ao lado de Antonio Carlos Magalhães. O escandaloso, o risível, é visto como grotesco.

O Império do Grotesco estuda a aproximação entre o homem e o bicho. ?Toda a crítica acadêmica critica a tensão entre o homem e a máquina, o homem e o dinheiro, etc.?, diz Muniz Sodré. Os autores pretendem sintonizar aquilo que não se sabe direito se é bicho ou se é homem – um homem quando briga é um pouco bicho, quando berra, quando bate. O livro constitui-se no ?julgamento estético da tensão da diferença entre o homem e o animal.?

A televisão captou e capta com intensidade cada vez maior essa tensão. ?Do Chacrinha para cá, o universo televisivo é permeado pelo grotesco teratológico?, Muniz afirma. Mas não é só a televisão. ?O carnaval, no início, era grotesco – os foliões jogavam fezes e urinas uns nos outros, nos entrudos?, lembra.

Voz do mercado – A mídia, quando quer buscar público, apela para o grotesco, o ?baixo? – a cultura popular é o grotesco.

E é preciso não confundir: o pagode de butique é música de baixa qualidade, mas não é grotesco; a dança da garrafa pode ter um elemento de grotesco, na caricaturização do sexo. ?Mas isso é rebaixamento cultural?, Muniz avalia.

?Quando Caetano Veloso e Gilberto Gil defendem o pagode, dizendo que é a voz do povo, seguem a regra do mercado, já que na indústria cultural o juízo crítico não é bem-vindo. Pois Caetano e Gil, por bons que sejam, e são, ainda que Caetano tenha escrito canções pífias, pertencem ao mercado e, para eles, o juízo crítico não é bem-vindo.?

Muniz imaginava que a TV fechada, por assinatura, fosse significar alternativa culturalmente relevante, mas acredita que não esteja sendo assim: ?A TV segmentada está sendo tomada pelo grotesco: rebaixamento de padrões, no sentido de afastamento da coisa civilizatória, ou seja, em direção ao animal.?

Dá-se, diz, uma infantilização dos padrões, uma regressão – e esse é um ponto de vista de classe – comportamental em direção à animalidade – porque são feitas em público coisas que só os animais fazem. ?A TV tem imensa responsabilidade na formação das crianças, cuja informação se dá por imagens, não por discursos elucidativos?, diz. ?A TV é um capital coletivo muito grande para que lhe seja permitido fazer tanta porcaria?, prossegue.

?Podia haver conformação crítica mais adulta da questão. A TV está abusando do grotesco e estamos fabricando um mongolismo cultural impressionante.?

O fenômeno não é só brasileiro. ?Assim me parecia, nos anos 70; morei na França, e não via na televisão francesa o que via na brasileira. Mas o fenômeno se intensifica quando há a hibridização cultural provocada pelas migrações – como falar ao mesmo tempo para tantas culturas diferentes?

Toma-se o que é comum a todas elas, o grotesco, que une os horizontes simbólicos. De que outra forma você administraria isso? Pondo no ar um programa islâmico? Claro que não?, Muniz raciocina. O grotesco salva."

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"Autores alertam para fenômeno na TV brasileira", copyright O Estado de S. Paulo, 19/05/02

"O grotesco é recorrente nas artes, na vida privada e pública, na televisão, no cinema – uma presença cada vez mais forte, sobre a qual há poucos estudos sérios e um quase nada de textos acadêmicos. Há 30 anos, em A Comunicação do Grotesco, Muniz Sodré alertava para o fenômeno, num texto ensaístico e voltado para a presença do grotesco na televisão.

Em O Império do Grotesco, escrito em parceria com Raquel Paiva, aprofunda o estudo e amplia o campo da análise. Examina o grotesco não como um fenômeno autônomo (ou meramente um fenômeno ditado pelas leis do mercado, quando aparece na mídia, principalmente a televisiva), mas como categoria estética.

Para estabelecer o grotesco como categoria estética, vão à sua origem, na primeira parte do livro. Primeiro, estabelecem que a civilização ocidental evolui distanciando o homem do animal – na arte, no comportamento. Em oposição, o grotesco aproxima o homem do animal. Nesse sentido, tem ponto de contato com o barroco. D?Ors: ?Chamamos de Barrochus Rupestris o estilo ?grottesco?, ou ?pedregoso?, espécie muito curiosa, caracterizada por uma forte dose de naturalismo rústico (….)?.

Também Deleuze: ?A alma do barroco tem com o corpo uma relação complexa:

sempre inseparável do corpo, ela encontra neste uma animalidade que a aturde, que a embaraça (…), mas também uma humanidade orgânica ou cerebral que lhe permite elevar-se (…)?. Mas o grotesco não quer a elevação. Ao contrário do barroco, escrevem Muniz Sodré e Raquel Paiva, não está empenhado na restauração da razão clássica, nem abraça qualquer moral progressista: ?O grotesco funciona por catástrofe. Trata-se da mutação brusca, da quebra insólita de uma forma canônica, de uma deformação inesperada.?

O grotesco é dissonante e não admite conciliação; dele, decorrem ?o espanto e o riso, senão o horror e o nojo?. Um exemplo claro: ?Seria impensável um concerto musical grotesco, mas não, evidentemente, o concerto barroco.?

Identifica-se o ?olhar grotesco? em obras como O Jardim das Delícias, de Bosch, ou O Colosso, de Goya, em Bruegel, o Velho, em Rafael, nos ornamentos do Vaticano. Em textos de Hoffmann, cabeças humanas ?arrastavam-se sobre patas de gafanhotos presas em suas orelhas?. O bufão da corte do Rei Lear é ?ridículo e engraçado? com seus anacrônicos protetores genitais, chamando a atenção, de forma grotesca, para a parte baixa do corpo – a que se opõe à elevação canônica da arte ocidental.

O livro cita duas fontes de referência, quase únicas, para o entendimento do grotesco como categoria estética: A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin, e O Grotesco, de Wolfgang Kayser, ambos da segunda metade do século passado. Mas Bakhtin limita-se ao contexto de Rabelais, e Kayser fica na pintura e na literatura.

O Império do Grotesco mostra, em capítulos direrentes, quem estudou o fenômeno, seus gêneneros e espécies, e como ele aparece na literatura, no cinema e na televisão.

Especialmente a televisão brasileira, dizem os autores, criou programas no formato de feira livre – montando ?o espetáculo das anomalias humanas – aleijões, deformidades, aberrações da natureza, manifestações de idiotia, etc.? Dava-se isso, ainda na adolescência da televisão brasileira, e com ?organizações dos textos e composições dos personagens? diferentes, na TV comercial (Flávio Cavalcanti, Chacrinha, Silvio Santos, Jota Silvestre e outros) e até na TV pública (o programa O Homem do Sapato Branco, da paulista TV Cultura), com incidência crescente, de lá para cá. Os autores afirmam que é necessário medir a profundidade da abjeção e mergulhar nela, de nariz tapado, ?para que cada instante em busca de oxigênio seja uma respiração crítica?."

 

LITERATURA E ENGAJAMENTO

"Engajamento, questão permanente da arte", copyright Folha de S. Paulo, 19/05/02

"Ainda é possível falar, hoje, depois de todo o desprestígio que acomete a política, em uma literatura engajada? Invertendo a perspectiva: será que podemos dizer que livros como as Catilinárias, de Cícero, escritas em época tão remota, ou As Provinciais, de Pascal, do século 17, ou ainda as Cartas Persas, de Montesquieu, do século 18, já eram exemplares da literatura engajada? Para o crítico francês Benoît Denis, autor de Literatura e Engajamento – De Pascal a Sartre (Edusc/Editora da Universidade do Sagrado Coração, Bauru, trad. de Luiz Dabogert Roncari, 331 págs., R$ 34), a idéia de engajamento na literatura está, a rigor, circunscrita ao século 20 – só aparece, na verdade, depois do célebre caso Dreyfus. Antes disso, ele afirma, podemos falar, apenas, em literatura de combate, mas não em engajamento. Por isso, é com muito cuidado que devemos pensar hoje na idéia de uma literatura engajada.

A idéia de uma literatura engajada se refere a uma escrita que atua diretamente no campo político. Por isso – e o realismo socialista levou essa tendência ao extremo -, e em muitos casos, ela se confunde com o panfleto e a propaganda. Esta é a idéia que Jean-Paul Sartre, o mais célebre dos engajados, nos legou: a de uma literatura útil e que se volta sem pudores para o imediato. Ainda assim, a idéia de uma literatura que avança sobre o político e o social é muito antiga. Ocorre que, ultimamente, ela entrou em decadência. ?Constata-se?, Denis diz ainda, ?que a noção de engajamento sofreu um desgaste importante.? Basta pensar, por exemplo, na poesia brasileira: há pouco mais de três décadas, poetas como Moacyr Felix e Thiago de Mello, que praticam uma poesia grudada ao real, e justamente por isso, eram considerados grandes poetas; hoje, ao contrário, e pelo mesmo motivo, sua poesia é freqüentemente desprezada, tida às vezes como simplista e até panfletária.

O crítico francês Roland Barthes nos ajuda a pensar esses paradoxos, dizendo que a história da literatura parece se limitar ?a um vai-e-vem esgotante entre o realismo político e a arte pela arte?. Em torno desse binômio realismo/purismo, se aceitarmos um pouco de simplificação para aspirar a um pouco mais de clareza, se desenrolariam os debates que a literatura foi capaz de gerar ao longo dos últimos séculos. Contudo, a literatura só aparece mesmo como um campo autônomo, Benoît Denis nos lembra, em meados do século 19. Na virada do século 19 para o 20, além disso, acontece a ?invenção? do intelectual – e o intelectual engajado viria a ser sua versão mais nobre. A partir da Revolução de Outubro, em 1917, o tema do engajamento se dissemina pelo Ocidente. Com ele, o debate interminável e tantas vezes maçante entre os comunistas e os artistas de vanguarda – impasse que a idéia de uma literatura engajada vem, no entreguerras, tentar resolver. A idéia de Sartre é muito vigorosa: ?Nós queremos que o escritor abrace estreitamente a sua época?, ele escreveu. ?Ela é feita para ele e ele é feito para ela.? A idealização, como se vê, é um componente fundamental do engajamento sartreano, já que a literatura deve ser ?salva? pelo engajamento. Mas é o mesmo Sartre quem vai dizer, na conclusão do ensaio O Que É a Literatura?: ?O mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem.? Há, portanto, que pisar no chão.

No ensaio que chega agora às mãos do leitor brasileiro, Benoît Denis vem defender a idéia de que o desgaste sofrido pelas noções de política e de literatura engajada pode ter, ao contrário do que se imagina, alargado a perspectiva de engajamento. Na verdade, a polêmica em torno da literatura engajada não é só uma discussão a respeito de conteúdos (textos progressistas, conservadores, ou libertários); mais que isso, a idéia de uma literatura engajada, tal qual Sartre defendeu, veio tocar na relação mais profunda, e em geral menosprezada, entre a literatura e o real.

Impasse – Para tratar desse impasse, que embora pareça hoje um pouco fora de moda, persiste sem solução, no interior da experiência literária, Denis se apóia sobretudo na figura polêmica de Jean-Paul Sartre. Até porque O Que É a Literatura?, o célebre ensaio de Sartre, não foi superado, ainda hoje, e apesar de seu caráter panfletário e muitas vezes simplista, como o livro que enfrentou com mais coragem o problema do engajamento na literatura. ?Os seus exageros e o seu dogmatismo mesmo permitem identificar as arestas mais acentuadas e os limites de uma procura mais complexa do que se possa crer?, diz. Embora tenha produzido, em geral, livros retóricos e artificiais, a literatura engajada se refere a uma questão – a da relação entre a literatura e a política – que é muito antiga. As respostas, mesmo aquelas dadas por Sartre em seus livros, Denis argumenta, podem ter sido, quase sempre, ineficazes e até banais; mas sua insuficiência não anula a importância da pergunta.

O livro de Benoît Denis pode ser lido, também, como uma história do engajamento na literatura. O mais importante, entretanto, é a áspera luta de idéias que ele se põe a descrever. Pensar no engajamento, Denis diz, ameaça a representação moderna, e ainda hoje dominante, de uma ?literatura pura?. Nessa perspectiva, a literatura engajada seria, no máximo, uma ?literatura de circunstância? e desde já mortalmente ferida por esse laço com o transitório. No entanto, um filósofo como Blaise Pascal já bradava: ?Nós somos comprometidos!? Dizia também em seus Pensamentos, referindo-se à dignidade trágica do homem: ?O homem não é mais que um caniço, o mais frágil da natureza; mas é um caniço pensante.? E por isso não pode abdicar desse elo que o liga à realidade.

Denis mostra como foi no século 18 e no ambiente do Iluminismo que, ao lado dos filósofos, os escritores adquiriram prestígio social. Já os poetas conquistaram sua influência um pouco depois, contrapondo-se às Luzes, que para eles estavam associadas à revolução e ao terror. É com eles, os poetas, que se instaura o período romântico. A ruptura mais radical entre o escritor e a política, contudo, vai se dar com Baudelaire, através de quem, diz Denis, o escritor se retira simbolicamente da sociedade. ?O homem de letras cede lugar ao escritor?, ele distingue então, deixando com o primeiro o engajamento e a crítica, e com o segundo a independência e a imaginação. Só em 1898, quando Émile Zola escreve seu célebre Eu Acuso, texto que vem a ter uma intervenção decisiva no célebre caso Dreyfus (envolvendo o capitão Alfred Dreyfus, acusado erradamente de espionagem a favor da Alemanha), o laço entre a literatura e o social, depois de longo período de distância, é retomado. ?O projeto naturalista de Zola?, Denis recorda, ?é concebido com um cuidado de realismo e de objetividade quase científicos? – tese e método que estão expostos em seu ensaio célebre O Romance Experimental.

Entreguerras – Tal intervenção brutal na realidade só será retomada, o autor prossegue, no século 20 e durante o entreguerras, quando se dá um ?retorno maciço das preocupações políticas na literatura?. Só que já não se trata mais do ?engajamento idealista para a defesa dos valores universais?, como no caso Dreyfus; mas sim de um ?engajamento militante, ou útil, em virtude do qual o intelectual aceita colocar o seu prestígio ao serviço de uma formação política?. De um lado surgem as vanguardas, centradas no Manifesto do Surrealismo, de Breton; de outro, guias ?espirituais? e moralistas como André Gide. Por fim, aparecem André Malraux e sua ?literatura de situações extremas?; como descreve Denis, ?um aventureiro dotado de uma real coragem física e de uma propensão à mitomania?.

Essas várias experiências de engajamento vêm a ter seu apogeu com Jean-Paul Sartre e seus companheiros existencialistas. A política ganha, com eles, a frente da cena. Contudo, Denis esclarece, a supremacia sartreana é muito mais a de um ?discurso sobre a literatura?, do que de uma ?estética literária?. Em outras palavras: Sartre cria uma nova maneira de ver a literatura, e não uma nova maneira de escrever. ?Havia em Sartre o desejo de conciliar a positividade de um discurso político e ideológico preferido com a clareza e a negatividade própria da literatura?, Denis afirma. Daí a tensão extrema que percorre todo o projeto sartreano, artista mas não-artista, livre mas engajado (isto é, preso), sonhador mas militante. São paradoxos que ainda hoje persistem. E que se colocam como um grave obstáculo para todos aqueles que, ao escolherem a literatura, esforçam-se para não perder de vista o mundo que os cerca."

 

JORNALISMO MÓRBIDO

"A fase mórbida do jornalismo nas telas", copyright Folha de S. Paulo, 19/05/02

"No começo dos anos 90, um jornal carioca carregou nas tintas do sensacionalismo e passou a publicar na capa fotos de cadáveres mutilados.

Eram vítimas de acertos entre gangues, essas coisas comuns no submundo do crime. O sucesso do jornal nas bancas foi crescendo juntamente com o destaque dado às fotos tenebrosas.

Em um momento desse processo, os responsáveis pelo diário começaram a receber telefonemas de marginais, que indicavam para a reportagem onde encontrar ?presuntos? mais mutilados. Ou seja, os requintes na tortura e mutilação dos corpos cresceram para merecer uma boa foto no jornal. Cabeças decepadas e esquartejamentos passaram a ser comuns. Muito provavelmente para o autor mandar recado a outros desafetos ou por vaidade mesmo.

Essa fase mórbida do jornalismo popular carioca explodiu. O mais sangrento deles chegou a vender 60 mil exemplares em banca, mas a fartura não durou muito. Afinal, a natureza humana é atraída pela perversidade, mas não tem estômago para aturá-la por muito tempo. Ainda bem.

A TV passa hoje por essa febre. O noticiário policial – que já era compulsório na grade de quase todas as emissoras – está ganhando uma morbidez sensacional por causa da concorrência.

Já não basta enfiar o microfone na boca de presos embrulhados em suas próprias camisas nos corredores das delegacias. As histórias escabrosas são contadas em detalhes pelo apresentador, reprisadas pelos repórteres e repercutidas com parentes das vítimas (sempre induzidos a soltar lágrimas e embargar a voz nos depoimentos). Quando não há imagens disponíveis (muitas vezes o crime aconteceu há dias), os enredos são simulados por elencos mambembes.

Essa receita serve para quase todos: Cidade Alerta, da Record; Datena Repórter Cidadão, da Rede TV!; Linha Direta, da Globo; e Brasil Urgente, da Bandeirantes. Uma ressalva deve ser feita. O programa de Roberto Cabrini, apesar de ter o mesmo apelo dos concorrentes, investe também em reportagens investigativas de relevância.

A série que mostrou, no Brasil Urgente, o envolvimento de policiais de diversos escalões no controle de uma rede de extorsão, incluindo o delegado que apareceu como herói na mídia quando prendeu o seqüestrador Andinho, é exemplo de como deveria ser o noticiário policial. Ou seja, responsável: ao denunciar a corrupção nas instituições policiais, a TV dá uma contribuição à sociedade porque obriga o Poder a limpar seus porões dos elementos nocivos.

Feita a ressalva, o terreno dedicado ao ?jornalismo? policial está mais sangrento do que nunca. E ele não é amenizado quando entra pela porta dos programas vespertinos como Falando Francamente (SBT), Note Anote (Record), Canal Aberto (Rede TV!) ou Hora da Verdade (Band).

A impressão é a de que o Brasil é uma terra sitiada. E que é perigoso para qualquer um sair às ruas infestadas por seqüestradores, assaltantes, estupradores de crianças, drogados violentos e assassinos.

O cotidiano cruel que se vê pela TV, mais do que arrepiar os de espírito mais sensível, pode estar influindo na má qualidade da vida do telespectador. O detalhamento de práticas criminosas – mandamento número um do decálogo desses programas – melhora a audiência do espetáculo, mas também pode (como fez o diário carioca) estar estimulando a bandidagem a sofisticar sua atuação."