Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mundo Xuxa

“Carta do leitor Bernhard Kraus, pároco da paróquia São Bonifácio (São Paulo, SP): ‘Que a Xuxa vai ter nenê não é nenhum milagre ou coisa do outro mundo. Ao contrário do que possa parecer, desejo-lhe uma ótima gestação, que curta bastante esse período, e que a Nossa Senhora do Bom Parto lhe acompanhe e lhe dê uma boa hora. Agora, fazer de um fato destes meia página de reportagem e ainda na primeira página não lhe parece exagerado?’

O protesto do leitor resume vários outros enviados à Folha para criticar o destaque dado pelo jornal à recém-anunciada gravidez da apresentadora Xuxa. Algumas dessas manifestações críticas foram publicadas no Painel do Leitor, sem comentários. A notícia da gravidez saiu na segunda-feira passada. A primeira página da Folha estampava um grande quadro na parte superior. ‘Xuxa anuncia na TV que está grávida” era o título, acompanhado de uma foto da apresentadora e do namorado Luciano Szafir no Domingão do Faustão exibido no dia anterior.

O destaque obedece a uma tendência já antiga no sentido de acompanhar com atenção tudo o que acontece na televisão, mais ainda na TV Globo -especialmente aos domingos. A premissa é que os brasileiros despendem grande parte do seu tempo assistindo televisão, o que é ainda mais verdade nos fins-de-semana. A Folha não poderia ignorar tamanha presença da TV na vida do público.

O argumento é questionável, pois nada assegura que as pessoas só se interessam pelo que sabem e vivem. As edições de segunda-feira da Folha sempre ofereceram oportunidade para que tivessem destaque reportagens mais aprofundadas do que as das edições dos outros dias.

Nas segundas, valendo-se do vácuo noticioso dos fins-de-semana, o jornal se permitia destacar temas especiais e arriscar enfoques alternativos.

Era o momento de provocar encontros acidentais de leitores com notícias que, embora relevantes, em geral não teriam condições de vencer a competição com as manchetes quase obrigatórias (os anúncios, os pacotes, as declarações bombásticas) dos outros dias úteis, por assim dizer.

O que provoca agora reações dos leitores não é o abandono da publicação de reportagens especiais das segundas-feiras; é o destaque desmedido – e até dominante – que o jornal dá à fofoca; é o endosso e a rendição passiva ao jogo mercadológico das celebridades, à novelização do noticiário.

Tanto é assim que, ao longo de todas as edições da semana, a continuou acompanhando – mais discretamente, é verdade – os desdobramentos do anúncio de Xuxa. Os pais do namorado criticaram o fato de ele ser apresentado à maneira de um objeto, usado apenas como fornecedor dos meios para que Xuxa possa ter um filho.

Avaliações críticas e distanciadas foram raridade no cômputo final. Quase nada sobre a influência da atitude de Xuxa sobre o público, especialmente sobre milhões de crianças e jovens que a seguem.

Apenas notícias sobre números de audiência, disputa por mercado e fofoquinhas. No máximo, uma avaliação das estratégias mutantes (mas nem tanto) da TV Globo para cativar o telespectador dominical. Será que, a esta altura, a mídia ainda tem condição de exercer a fundo uma vigilância crítica sobre ela própria?”

Reproduzido da coluna do Ombudsman, Folha de S. Paulo, 14/12/97.