Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Números para americano ver

Cynthia Crossen, repórter e editora do Wall Street Journal, resolveu um dia desconfiar da sopa de números em que se banham diariamente os meios de comunicação americanos. Fez uma pesquisa sobre as pesquisas, com resultados arrasadores, e escreveu Tainted Truth – The Manipulation of Fact in America, traduzido no Brasil com o título de O fundo falso das pesquisas – A ciência das verdades distorcidas, Rio de Janeiro, Editora Revan, 1996, de que se dão aqui excertos do primeiro capítulo.

“Nós geralmente não levamos tão a sério uma afirmação vinda diretamente dos produtores de um determinado artigo. Muitas pessoas irão, certamente, continuar tomando seus remédios contra o colesterol, mesmo quando uma revista publica uma história dizendo ‘você pode reduzir sua taxa de colesterol em mais de 30%, fortalecer seu coração e acrescentar alguns anos à sua vida com uma dose diária de refrigerante X’. Nos Estados Unidos, tendemos a dar mais peso às pesquisas, estudos e apurações noticiados em veículos com maior credibilidade, como o New England Journal of Medicine, a revista Time, o New York Times, o show de notícias da Network ou o Wall Street Journal. Esses meios de comunicação ainda não perceberam o quanto são dúbias as pesquisas que publicam, garantindo-lhes uma certa aura de ‘credibilidade’.

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Cada vez mais, as informações que usamos para comprar, escolher, aconselhar, absolver e medicar vêm sendo criadas, não para expandir nosso conhecimento, mas para promover um produto, ou para promover uma causa. Se o resultado da pesquisa for contrário ao esperado pelos patrocinadores, ele certamente não será divulgado. Pesquisas têm se tornado subservientes, e seus patrocinadores, objetivamente práticos. A mídia, que freqüentemente pode divulgar determinados números brutos se assim o quiser, é reticente com estes dados, porque são incômodos, e porque muitos jornalistas são eles mesmos alérgicos aos números.

Em supermercados e drogarias, as pesquisas atuam como nossos médicos, pais ou farmacêuticos; nas salas dos tribunais, os estudos e pesquisas são hoje os advogados; são as pesquisas que acabam ditando a legislação e as práticas comerciais e de marketing. Na opinião pública, dados e pesquisas significam uma mudança de rumo, na qual as crenças são substituídas pelas crenças de umas poucas centenas de estranhos. Tão essencial para nossas vidas se tornou a informação que um novo vocabulário vem sendo criado para descrevê-la: ‘infovias’, ‘factóides’, ‘docudrama’’, etc. Mas isto são apenas conceitos em que admitimos claramente estar misturando realidade e fantasia. No entanto, muitas pesquisas patrocinadas ainda querem aparentar neutralidade.

Comprar e vender informações para melhorar negócios é apenas uma das formas pelas quais nosso senso de realidade é pervertido. Existe também uma crescente sensação de que nada pode ser definido como verdade a não ser que seja sustentado por uma pesquisa estatística, mesmo que seja um fato completamente óbvio.

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Que números possam mentir, e mintam, certamente não representa nenhum choque para quem vive nos Estados Unidos, onde a manipulação estatística tem uma longa e rica tradição. O censo de 1840 foi um amontoado de erros, fraudes e manipulações políticas amplamente direcionados pelos debates sobre a questão escravagista. Muitas das batalhas sobre a Lei Seca foram travadas em cima de estatísticas manipuladas.

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Políticos usam tantas estatísticas de forma errada que se tornaram famosos por isso. Os comerciais de televisão com discursos diretos de Ross Perot eram baseados em fatos falsos. ‘Taiwan gasta US$ 600 bilhões com seus programas de investimento público’, proclamou Perot, tentando envergonhar os Estados Unidos por seu programa anual de US$ 150 bilhões. A verdade: Taiwan está gastando US$ 50 bilhões por ano durante seis anos. Bill Clinton disse que 80 mil lobistas faziam fila nos corredores de Washington – uma cifra que teve como fonte um professor universitário, que posteriormente admitiu que tal número ‘saiu de sua cabeça’. O número real está provavelmente entre seis mil e 20 mil.

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Por trás da explosão da informação corrompida está, em primeiro lugar, o dinheiro. Durante algumas décadas após a Segunda Guerra Mundial, a pesquisa científica ficou sob a responsabilidade do governo e de instituições acadêmicas, o que permitia aos pesquisadores fazer e responder perguntas inteiramente livres de pressões comerciais ou de facções (embora muitos pesquisadores acadêmicos trabalhassem para os militares). Mas, no período mais recente, o número de cientistas à procura de emprego cresceu, enquanto o orçamento de pesquisa dos governos estaduais e do governo federal emagreceu. As próprias universidades enfrentam receitas cadentes e custos em ascensão. As companhias privadas, ao mesmo tempo, concluíam que era mais barato e dava maior prestígio manter pesquisadores acadêmicos e governamentais do que produzir pesquisas próprias, que podem ser suspeitas de tendenciosidade. Corporações, investidores, candidatos a cargos públicos, associações comerciais, lobistas, grupos de interesses específicos – todos podem comprar pesquisas para usar como quiserem. A liberdade de imprensa, disse uma vez o crítico A. J. Liebling, pertence apenas àqueles que possuem um órgão de imprensa. Nos negócios de informação, a verdade passou a pertencer aos que podem encomendá-la.”