BAO CHI, BAO CHI
Anna Veronica Mautner (*)
Bao Chi, Bao Chi, de Luís Edgar de Andrade, 284 pp., Editora Objetiva, Rio, 2002, R$ 29,90
Em meados dos anos 50, na última página do primeiro
caderno do O Jornal, órgão líder dos Diários
Associados, no Rio de Janeiro, aparecia, diariamente, ao pé
da página, no canto esquerdo, uma historinha – relato de
algum acontecimento que Luís Edgar de Andrade tinha observado
de corpo presente. "Esquina" era o nome da coluna. Todo
dia ele encontrava um fato que lhe parecia valer à pena contar.
Coisas e mais coisas acontecendo em volta dele. Mas nem sempre era
assim, apesar dele se surpreender sempre, muito mais do que o comum
dos mortais. Existiam dias que ele estava com cabeça vazia.
Nada para preencher seu espaço. Nenhum relato para suas historinhas,
quase aforismas. Aí, ele saía de olho aberto vasculhando
a cidade à procura de eventos sutis, cujo sentido ele captava
na base da pura sensibilidade ? sem ideologias e sem teorias. Só
coração e ética. O grande evento não
interessava. Ele sempre foi pescador da sutileza, de detalhe significativo.
Não concorria com a foto que podia dar manchete de primeira
página. Seu foco era a surpresa e não o susto.
Mais de 40 anos depois, eis Luís Edgar de volta ao seu velho estilo em Bao Chi, Bao Chi.
À primeira vista trata-se de um romance, cheio de diálogos entre personagens que vão se delineando justamente pelo dito. Glória, Miguel, Félix, vão tomando forma enquanto vão vivendo. E vão vivendo pelo que dizem. Sem recorrer a discursos psicológicos, sociológicos ou políticos, a questão da lealdade, do respeito humano, vai atravessando a narrativa. O julgar, condenar, ou mesmo aprovar, não é explícito. Os jornalistas estrangeiros observam, esperam, estacionados (pois não são imigrantes) num lugar estranho onde a liberdade de movimento é limitada por burocracias variadas (governo local, associações de imprensa, embaixadas e consulados), assim como o desempenho profissional, que depende da boa vontade, liberalidade, de todas estas instâncias. Assim estão os personagens e o narrador: à mercê de instituições, à mercê dos rumos da guerra e livres para o que dá para viver.
Eros e Tanatos
Luís Edgar consegue impregnar com uma subjetividade peculiar, só dele, uma trama inteiramente aprisionada num cotidiano. Deslocadas, as pessoas interagem e vão ver se na memória encontram traços do dia-a-dia. Lembra as amizades feitas nas férias e que acabam na despedida. A situação deles era diferente, estavam lá para fornecer aos seus jornais a visão personalizada de cada um. Luís Edgar participa das batalhas, espera por elas, ousa e teme. Nada mais apropriado para o seu jeito de viver: entra e sai, presente e distante, mantendo sempre a sua maneira de viver ? narrador/participante. Mistura-se aos eventos para não perder detalhes. Não descreve apenas o rumor e o vai-e-vem da batalha. Encontra em si a emoção que está vivendo, conseguindo, apesar disso, não sair da posição de narrador.
Entremeando o diálogo, por onde passa subjetividade e suspense, Luís Edgar, nesse seu primeiro romance, não perde o vai-e-vem que o caracteriza. O jovem cearense, recém-chegando ao Rio em 1950 e qualquer coisa, inventa um estilo e uma forma. Duas ou três linhas em quatro colunas. Seria esdrúxulo se não fosse tão comunicativo. Eis a sua invenção ? uma coluna (sempre uma visão particular) ao mesmo tempo "nota de rodapé", que é sempre uma referência externa, e erudita. Assim era sua coluna, assim é seu romance.
Do Vietnã, onde Luís Edgar esteve tanto tempo atrás, ele manteve, para relatar sua vivência, a estrutura de sempre. Trama (coluna), observação pessoal ao vivo, e ainda suas raízes cearenses. Pois, cá entre nós, ele continua interagindo com sua terra natal. É isto que permeia o caráter ? nota de rodapé. É este o movimento do livro, que podia ter vindo, pela lógica, muitos anos atrás. Mas não podia. No calor da hora, perderia a estrutura tripé.
Uma resenha devia trazer a história e contá-la até o fim. Tomei esta obra tardia como essência ou transcendência. Nada a ver com o senso comum nem com o bom senso. As pinceladas de tragédia aparecem de tantas em tantas páginas. Sob ameaça de morte, Glória fica grávida. Para Luís Edgar, cristão, Eros e Tanatos são inseparáveis.
Encontrei meu amigo. Não estranhei Luís Edgar. Acredito que os que se detiverem para lê-lo de fio à pavio terão o prazer de conhecê-lo, de viajar com ele e tornar-se aprendiz desta postura de entra e sai escrevendo as vivências ao vivo.
(*) Psicanalista