Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O pobre reino do consenso comum

De reparo em reparo, de crítica em crítica de males da imprensa brasileira, Renato Janine Ribeiro, professor titular de filosofia política da USP, chega a uma síntese: “A imprensa é programada para dar conta apenas do consenso”. E não perde a oportunidade de, bem a seu gosto, extrair das palavras reverberações originais: “Fomos rebaixados do senso comum para o consenso comum…”

Ao nivelar por baixo, explica Janine em entrevista a Mauro Malin, a imprensa forçosamente deixa escapar fatos e fenômenos onde pulsa a novidade.

“A novidade”, define, “é o que de certa forma nos bagunça. Hannah Arendt dizia: é o evento que perturba nossos conceitos. Hoje, ocorrem na sociedade muitas discussões das quais o leitor não fica sabendo”.

Exemplo recente: a eleição do novo reitor da USP (Universidade de São Paulo), Jacques Marcovitch, em novembro, teve cobertura deficiente. Não se transmitiu ao público o que estava em jogo na mais importante instituição de ensino e pesquisa do país1.

Renato Janine, leitor atento que colabora regularmente na grande imprensa, constata que jornais e revistas costumam chegar a assuntos importantes com um atraso preocupante. “Quando entrei na faculdade, nos anos 60, já sabia que Heidegger tinha sido nazista. Mas o assunto foi apresentado como novidade quando saiu o livro de Víctor Farías”2.

– Há um esgotamento, porque o discurso padrão da imprensa funciona na base do piloto automático – lamenta o professor da USP. – O que é portador do novo não tem espaço. Assim, as notícias são cada vez menos novidades do que o eram dez anos atrás.

Boicote solitário

Janine conta que decidiu deixar de abastecer seu carro em postos de gasolina da Shell depois de ler no jornal britânico The Guardian, há dois anos, informações sobre como a empresa poderia estar comprometida na devastação da Ogonilândia, região rica em petróleo do sul da Nigéria, e na execução do escritor Ken Saro-Wiwa, defensor dos direitos da minoria ogoni, e outros oito líderes (ver, abaixo, “Shell e martírio”).

“Na mídia brasileira, o assunto não teve repercussão nenhuma, como não têm repercussão fatos do Afganistão, da Nicarágua, de Myanmar – antiga Birmânia, que a Folha de S. Paulo decidiu, único jornal do mundo, chamar da forma adjetiva de Myanma em vez do nome próprio Myanmar – do Curdistão”, enumera Janine. “Tudo parece igual. Sinto-me mal, desrespeitado”.

O professor da USP tem toda a razão. Ele deu a entrevista antes da crise das bolsas de valores, quando se desfizeram, com grande atraso, fantasias a respeito dos chamados Tigres asiáticos. Há coisa pior. Muitas narrativas – por incompetência, preguiça ou parti-pris – afastam-se exageradamente dos fatos ou mesmo os contrariam. Editores reproduzem despachos de agências e de correspondentes sem examinar a qualidade jornalística e a plausibilidade do material. Isto foi objeto de séria denúncia reproduzida neste OBSERVATÓRIO por sugestão do jornalista Leão Serva (ver abaixo remissão para “Bósnia, uma cobertura fraudulenta”).

Recentemente, reportagem de Renan Antunes para O Estado de S. Paulo revelou algo de que muitas pessoas já desconfiavam: na Argélia, nem sempre são os integristas que cometem massacres, mas também grupos ligados ao governo militar. A imprensa, entretanto, passou anos tratando os assassinatos como uma série de chacinas cometidas quase mecanicamente pelas mesmas forças políticas, como se os integristas não se importassem com a repercussão de seus atos ou, importando-se, quisessem afirmar-se apenas pelo terror (ver abaixo remissão para “Matança explicada”).

“Já os integristas do Afganistão, como se sabe, foram financiados pelos Estados Unidos”, rememora Janine3. O professor da USP está convencido de que a imprensa deve “desvirginar a inocência do leitor. Não podemos ter uma percepção rasa. O mundo está ficando difícil, e é efetivamente muito mais diferenciado do que no retrato feito pela mídia”.

Saber o que se passa na Argélia, no Afeganistão, em Anjouan4 ou em Bougainville5 tem importância porque, “num quadro de economia globalizada, mas de homogeneização só aparente, a diferença é extremamente relevante”.

Surpresa no Oriente

O professor recorda que uma experiência vivida em 1992, durante viagem à Tailândia e à Birmânia, mudou algumas de suas concepções. Preparado para o contato com aquilo que se costuma chamar de sabedoria oriental, surpreendeu-se durante visita a um templo ao ver pessoas jogando moedas dentro de um recipiente, como oferenda dirigida especificamente, conforme o lugar, para passar num concurso, casar-se com moça bonita ou rica etc. “Isto é a velha venda de indulgências, tão nossa conhecida no Ocidente, pensei”.

Ao mesmo tempo, há diferenças que lhe chamaram a atenção: “A escrita da Birmânia, inventada para ser feita em folhas de bananeira, usa caracteres arredondados, de desenho singular. E os números lá são escritos com algarismos birmaneses, o que os torna completamente incompreensíveis para nós”.

As singularidades, os relevos numa superfície global aparentemente uniforme fazem diferença, e muita, quando se trata de examinar a maneira de cada país inserir-se na globalização, ou sofrê-la. Como acontece desde o século XV, para ficarmos nos chamados tempos modernos, uma pequena tribo tem margem de negociação estreita. Muitas desapareceram e nem das línguas que falavam ficou registro. “Já uma China tem como negociar. O Brasil, hoje, tem como negociar”, pondera.

A criação de uma consciência crítica a respeito da atividade da Shell na Nigéria serve para acompanhar de perto, por exemplo, um projeto da empresa em Camisea, Peru, onde se prevê a exploração de petróleo e gás natural por 40 anos. A região é rica em espécies vegetais e animais e habitada por 5 mil índios.

Em julho de 1997, o Wall Street Journal (citado em nota na Folha de S. Paulo) comentou: “Há muito ceticismo sobre quão verdadeira é a mudança na Shell. Desde o início do projeto houve vários incidentes envolvendo índios. As companhias petrolíferas estão sob pressão por estarem cada vez mais explorando poços em áreas de florestas tropicais, um dos mais sensíveis e ameaçados ecossistemas do mundo”.

Renato Janine desloca o foco para a Índia, onde são faladas 18 línguas principais, hábitos alimentares podem assumir a importância simbólica que outras civilizações atribuem a um templo, a relação com a divindade tem papel crucial na definição da identidade própria. “Entender como se lida com a identidade é indispensável”, adverte.

“Em 1857, a Revolta dos Sipaios explodiu quando equiparam soldados muçulmanos com um tipo de cartucho envolto em gordura de porco que era preciso morder para usar nas armas. Eles foram obrigados a infringir preceitos de sua religião. A revolta, como sempre acontece, teve diferentes causas, mas o estopim foi esse”, argumenta.

Muros que resistem

Na opinião de Renato Janine Ribeiro, muitas conclusões decorrentes dos fatos simbolizados na queda do Muro de Berlim ainda não foram tiradas.

Há forças de esquerda que “nada aprenderam e nada esqueceram”, como se dizia dos aristocratas emigrados durante a Revolução Francesa que voltaram ao país depois da Restauração monárquica de 18146.

“Talvez uns 10% a 20% tenham começado a pensar no que fazer diante daquele evento, uma lamentável vitória do capital”, avalia. “Estamos vivendo transformações em escala inédita, mas a novidade é absorvida negando-se-lhe o caráter de novidade. A mídia piora as coisas quando dá a tudo a aparência do déjà-vu“.

Os fatos sociais, porém, não se detêm à espera de teorias que os expliquem. Requer-se, portanto, todo um esforço de compreensão e reflexão para enfrentar problemas novos.

Na dificuldade de enfrentar de forma séria e continuada a discussão de determinados problemas, sobretudo os problemas decisivos, fica patente uma característica nefasta da mídia, a concepção circense – a cada entrada do apresentador no picadeiro, uma nova atração. Fenômeno que Renato Janine prefere resumir na seguinte constatação: “Passa-se de um assunto para outro sem jamais se completar a discussão daquilo que se está deixando para trás”.

Um exemplo que Janine dá é exatamente o da semana de trabalho. Até poucos anos atrás – “será coincidência que fosse antes da queda do Muro de Berlim e do recuo das forças de esquerda e dos trabalhadores?” -, quando se falava do avanço tecnológico e do progresso, era para dizer que ele permitiria a redução da jornada de trabalho.

“O progresso científico serviria para diminuir o trabalho e liberar o homem para o lazer”, diz. “Contudo, de repente tudo mudou e se começou a pontificar que esse mesmíssimo progresso deveria levar-nos a trabalhar mais e mais anos. Pode até ser verdade, mas o espantoso é que essa mudança é exposta sem nenhuma justificativa lógica ou sem nenhuma discussão jornalística”.

Na verdade, há pouco interesse em questionar análises e decisões tomadas pelo poder público. Mas, na opinião de Janine, a grande mídia não é subserviente ao poder. “O que acontece é o contrário”, afirma. “Acho que Fernando Henrique Cardoso está muito mais a serviço da Globo do que a Globo a serviço de FHC”.

“Quando se pensa em poder”, explica, “pensa-se muito em governo, mas há todo um poder difuso na sociedade, poder econ&ococirc;mico e social, extraordinariamente importante, capaz de desestabilizar os próprios poderes constituídos. Desse poder informal emanam, em incrível velocidade, regras de todo tipo, que têm grande e profunda influência na vida social”.

Na França, exemplifica o professor, é muito pouco provável alguém falar em “lei da oferta e da procura”: trata-se de um fenômeno que se descreve, não de uma lei. Aqui, entretanto, o conceito é empregado de forma corriqueira, sem que haja crítica a suas conotações ideológicas.

Em alguns grandes jornais, como a Folha de S. Paulo, o que já foi discussão viva transformou-se em rotina. “A página 3 da Folha transformou-se em abrigo de press-releases personalizados”, critica Janine. “A participação de quem tem opinião independente reduziu-se, em favor de políticos e empresários, que já sabemos de antemão o que vão dizer: nenhuma chance de surpresa lendo-os. E o importante para pensar não é justamente a surpresa, a novidade?”

– Estamos como na cena final do filme Casablanca, quando o chefe de polícia francês vira-se para os guardas, depois que o americano Rick mata o oficial nazista, e ordena: ‘Prendam-se os suspeitos habituais’. A mídia funciona na base do automatismo. Nos meios intelectuais, como sempre, não se faz a crítica frontal e aberta das idéias, prefere-se montar ‘armações’ pelas costas, ou, no debate, argüir detalhes. A verdade – conclui Renato Janine Ribeiro – é que o país padece terrivelmente de falta de discussão.

 

Notas

1) O mesmo ocorre agora em relação à eleição para reitor da Unicamp.

2) Em 1989, o chileno Víctor Farías publicou Heidegger e o nazismo, livro apresentado na imprensa brasileira como a primeira denúncia das ligações de Martin Heidegger (1889-1976) com o regime hitlerista. Embora haja até hoje obras populares de referência que não mencionam tais ligações – caso da enciclopédia contida no CD-Rom Microsoft Bookshelf -, já em 1972, na Grande Enciclopédia Delta Larousse, editada no Rio de Janeiro sob a direção de Antônio Houaiss, o problema é aflorado: “Heidegger rejeita a tradição humanista e seus princípios coincidiram tática e temporariamente com os do nazismo”.

3) Pela primeira vez, O Estado de S. Paulo de 14/12/97 deu essa notícia, que já havia saído algumas vezes na imprensa européia, mas discretamente.

4) Anjouan é uma das quatro ilhas – as outras são Grande Comore, Mohéli e Mayotte – que formam o arquipélago de Comores, localizado no canal de Moçambique, oceano Índico. Quando foi proclamada a independência da República Federal Islâmica de Comores, em 1975, a população de Mayotte decidiu por meio de plebiscito permanecer sob governo francês. Agora, um movimento separatista tenta a volta de Anjouan ao status de colônia francesa. Em setembro de 1997, o exército de Comores interveio e houve 30 mortes.

5) Um movimento separatista iniciado em 1989 na Ilha de Bougainville foi reprimido pelo governo de Papua Nova Guiné (Oceania) militarmente e com bloqueio econômico, imposto em 1990, que inclui medicamentos e ajuda humanitária destinada a áreas controladas pelo Exército Revolucionário de Bougainville. Segundo informações obtidas no site Community Air Abroad (ver URL abaixo), houve desde então, nessas áreas, 5 mil mortes por doenças que poderiam ter recebido tratamento adequado. Em 27/3/97, a Folha noticiou que Julius Chan, primeiro-ministro de Papua Nova Guiné, se demitiu sob pressão do Exército e da população, acusado de tentar contratar mercenários estrangeiros para combater os rebeldes de Bougainville.

6) “Ils n’ont rien appris, ni rien oublié“. A frase é atribuída a Talleyrand, segundo Paulo Rónai (Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985).