Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Por que Caetano Veloso é tão citado? – II

LER & OUVIR

Cláudia Rodrigues (*)

Prezado Deonísio, por que você compara música com literatura?

A cultura oral é um bem mais democrático por natureza, abrange um número maior de pessoas. Já nascemos ouvindo, embora nem todos as pessoas sejam capazes de produzir sons agradáveis com instrumentos ou cordas vocais.

Cantar, compor, tocar instrumentos são artes infinitamente mais populares do que a escrita. Um escritor, um poeta e até um jornalista têm um trabalho solitário e um público discreto, que não conhece o rosto daquele a quem admira. Mesmo os jornalistas de televisão, mais conhecidos, ainda assim não têm o brilho de um músico, de alguém que arranca os sentimentos mais viscerais das pessoas, em tête-à-tête, causando milhares de sensações, que evidentemente não são as mesmas que se têm ao ler o mais emocionante dos livros. Simplesmente porque quem lê e escreve não lê e não escreve em público.

Ler e escrever são atos solitários. Ouvir, tocar, cantar é coisa pública, popular.

Mas é tão bom escrever, ler, viver solitariamente a angústia da escrita, perder horas de sono lapidando frases, sentir-se imortal por algumas horas e depois libertar-se das garras do narcisismo para comprar o pão fresco da padaria da esquina sem ser reconhecido. Ninguém sabe ? ou poucos sabem ? do que um escritor é capaz, em que monstro de glória ele se transforma enquanto produz um texto. É narcisismo puro, da mais pura adrenalina, tanto quanto deve sentir um músico ao pisar em um palco.

Bom o bastante

E que melancolia, que dor acompanha o final de cada texto. Sem confetes, sem glórias, os livros são esquecidos nas estantes e os autores, seus nomes, suas discretas biografias nas orelhas dos livros, ficam lá espremidas entre as páginas. É, ser músico e ser escritor não é a mesma coisa, apesar das semelhanças.

Dia desses entrei em um sebo e encontrei um livro muito antigo, era um bom livro, bem escrito há mais de 70 anos. As páginas estavam coladas, tive a nítida impressão de que eu era a primeira pessoa a abri-lo. Senti uma tristeza imensa, o autor provavelmente já morreu e, como a maioria dos autores, sem confetes, sem troféus, sem prêmios ou aplausos por ter exercido durante uma vida inteira o que mais gostou de fazer, a atividade para a qual teve maior habilidade.

E assim, Deonísio, temos de nos contentar, procurar viver sem invejar outros talentos, outras singularidades. Não são os prêmios que nos satisfazem, não são as glórias e nem a noite, confusa noite, a noite de autógrafos, aquelas poucas horas em que um escritor se sente como um músico, um ator, que causam o verdadeiro frisson no coração dos escrevinhadores.

O coração de um escritor, de um poeta, de um João Ninguém da escrita, só é feliz ali, durante a digitação das letrinhas. O resto é bobagem, é inveja, melancolia porque talvez nem nosso melhor amigo tenha ligado para dizer que achou aquela frase fantástica.

Caríssimo, seus textos são tão bons, não perca mais um milésimo de segundo invejando a fama, a glória e a inegável competência de um músico como Caetano Veloso, que não é o melhor, mas é bom o bastante, gosta do que faz e por sorte, destino ou talento mesmo, consegue unir belas palavras a belos sons.

(*) Jornalista

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Prezada Claudia Rodrigues,

Concordo inteiramente com o seu artigo. E acho que estamos de acordo. O problema é que os falsos letrados vivem citando Caetano Veloso, sabe por quê? Porque não lêem, somente ouvem! E em muitas universidades ? sobretudo naquelas onde o sujeito passa no vestibular ainda que seja analfabeto ? alguns docentes, ainda mais ágrafos que os discentes, ensinam suas disciplinas como se não tivesse havido cultura antes de Caetano Veloso.

Daqui a pouco os livros serão distribuídos em cedês, fitas etc, para serem apenas ouvidos e não lidos. Já estão lendo apenas pequenas partes em xerox de autores essenciais nos cursos.

Em resumo, o Brasil de vez em quando fica muito chato. Nas aulas, em vez da relação bunda-cadeira-hora, aluno aprendendo, professor ensinando, o que temos é filme, vídeo, música, jogral etc, não para levar as turmas ao livro, mas para compensar a falta que Gutenberg faz nas escolas!

Nas igrejas, outrora templos de recolhimento e transcendência, os novos fiéis se sacodem em lambadas religiosas para acompanharem os novos padres.

Por isso, é sinal dos tempos que até o presidente do STF, ao comentar a censura, cite Caetano Veloso, não para ilustrar um raciocínio e esclarecer aos vulgos que não lêem, que também um cantor pode dizer coisas interessantes, mas para dá-lo como única referência no campo do Direito! Além do mais, a frase não é do Caetano.

Você está certíssima: não tenhamos inveja alguma, nem de Caetano Veloso, nem de cantor ou compositor algum! Neste país onde as capitanias hereditárias ainda permanecem em nossas instituições culturais, daqui a pouco Caetano Veloso será eleito para a ABL, ele que é já é doutor honoris causa pela Universidade da Bahia.

Não tenho nada contra Caetano Veloso que, aliás, confessou à revista TRIP ser leitor da coluna semanal de Etimologia que faço na revista Caras. Tentei no artigo, correndo o risco de ter fracassado em texto tão curto, comentar as razões de o cantor e compositor ser tão citado.

Mas que culpa tem o cantor disso tudo? Nenhuma! Se esse for seu único pecado, ele pode ir à Santa Sé e comungar sem se confessar, como fez o presidente FHC por ocasião da canonização dsa ítalo-catarinense-paulista Madre Paulina. (D. da S.)